O Projeto Inventor Artificial
Por Ryan Abbott, Professor de Direito e Ciências da Saúde na Universidade de Surrey, Reino Unido, e Professor Assistente Adjunto de Medicina na UCLA, Califórnia, EUA
Em agosto de 2019, nossa equipe (ver abaixo) anunciou dois pedidos internacionais de patente para "invenções geradas por IA". Isto é, invenções geradas por uma inteligência artificial (IA) de forma autônoma, em circunstâncias nas quais acreditamos não haver pessoa física, segundo a definição clássica, que possa ser considerada a inventora. Estes pedidos designam a AI na qualidade de inventor, e o proprietário da IA, como depositante do pedido e possível titular de eventuais patentes concedidas. O Instituto Europeu de Patentes (IEP) e o Instituto de Propriedade Intelectual do Reino Unido (UKIPO) também já avaliaram o pedido segundo o critério dos méritos. Ambos concluíram que os pedidos preenchem os requisitos de patenteabilidade, na medida do possível, tendo em conta a técnica anterior à publicação dos pedidos. Os mesmos também foram depositados no âmbito do Tratado de Cooperação em matéria de Patentes, que facilita o processo de obtenção de proteção por patente em mais de 150 países, e encontram-se atualmente pendentes do exame num número crescente de países.
Estado da situação
Diversas pessoas afirmam ter obtido patentes para invenções geradas por IA, desde pelo menos a década de 1980, mas ninguém até hoje revelou o papel da IA no pedido da aplicação. De maneira geral, os institutos de patentes não se opõem a atividades de invenção autodeclarada. Alguns dos primeiros depositantes de pedidos para invenções geradas por IA disseram que seus advogados os aconselharam a designarem a si mesmos inventores.
É importante que se adotem políticas públicas relativas às obras geradas por IA.
Não há praticamente nenhuma lei referente às invenções geradas por IA. A maioria das jurisdições exige que os pedidos de patentes designem como inventor uma pessoa física. O objetivo deste requisito é proteger e reconhecer os direitos de inventores humanos. Porém, o inventor não é necessariamente o titular da patente. Na realidade, a maioria das patentes pertence a empresas. Os direitos patrimoniais podem ser transferidos de um indivíduo a uma empresa mediante atribuição contratual ou por força da lei. Por exemplo, em muitas jurisdições, a titularidade é automaticamente transferida ao empregador se a invenção for criada dentro do quadro empregatício. Até mesmo quando o inventor não é titular da patente, a exigência por lei de que se designe como inventor uma pessoa física garante que a pessoa em questão receberá o devido crédito. Contudo, as leis foram elaboradas sem se prever a futura possibilidade de atividade inventiva por parte de máquinas.
Desenvolvimento recentes na lei de direito autoral a respeito da IA
O debate a respeito das obras geradas por IA e a lei de direito autoral tem evoluído. Em 1988, o Reino Unido tornou-se o primeiro país a conceder proteção de direito autoral explícita a IA ou obras "geradas por computador". Em casos em que uma obra passível de proteção por direito autoral é criada sem a autoria de qualquer pessoa física, o "produtor" da obra é considerado seu autor.
O Instituto do Direito Autoral dos Estados Unidos adotou uma abordagem inversa. Aplica, desde pelo menos 1973, uma "política de autoria humana", que proíbe a proteção por direito autoral de obras não geradas por um ser humano. Torna-se bastante tentadora a perspectiva de se assumir crédito por uma obra gerada por IA, como uma música ou obra de arte, que tenha presumivelmente algum valor comercial. Com certeza, a IA não se queixaria.
Na PI, bem como em muitas áreas do direito, o fenômeno de a IA assumir o papel das pessoas promete causar perturbações profundas.
A política de autoria humana ganhou visibilidade com o caso das Selfies de macaco , que envolveu uma série de autorretratos tirados por uma macaca nigra indonésia chamada Naruto. People for the Ethical Treatment of Animals (PETA) intentou uma ação em nome de Naruto, alegando que o animal deveria ser o titular dos direitos autorais sobre as fotografias. O caso foi, no entanto, arquivado porque o Congresso dos Estados Unidos não tinha autorizado, de acordo com a Lei do Direito Autoral do país, que animais intentassem ações. Por conseguinte, os méritos do requisito relativo à autoria humana nunca foram testados em tribunal.
Por que é necessária a proteção de invenções geradas por IA?
Deve ser possível proteger por meio de patentes obras geradas por IA, pois isto promoverá inovação. A perspectiva de deter uma patente não motivará uma IA diretamente, mas incentivará algumas das pessoas que desenvolvem, possuem e usam IA. Portanto, a permissão de patentes para obras geradas por IA promoverá o desenvolvimento da IA inventiva, o que em última instância resultará em mais inovações para a sociedade.
Além disso, as patentes promovem a divulgação de informações e a comercialização de produtos de valor social. As patentes para obras geradas por IA preenchem estas funções tão bem quanto que as demais. Inversamente, não permitir proteção para invenções geradas por IA significaria que, mais tarde, talvez as empresas não pudessem usar IA para criar invenções, nem mesmo quando a IA se tiver tornado mais eficaz do que o ser humano na resolução de certos problemas. Este cenário também incentivaria a prática de esquemas ludibriosos para com institutos de patentes, por meio da não declaração de depósito baseados em invenções geradas por IA.
Além da concessão de proteção para invenções geradas por IA, a IA deve ser designada como inventor quando estiver inventando efetivamente, pois isto protegerá os direitos de inventores humanos. Permitir que uma pessoa seja designada como autor de uma invenção gerada por IA não seria injusto para com a IA, que, afinal, não tem qualquer interesse em ser reconhecida. Porém, permitir que pessoas assumam crédito por um trabalho que não tenham realizado levaria à desvalorização da atividade inventiva humana. O trabalho de alguém que simplesmente usa uma IA para solucionar um problema seria posto no mesmo nível daquele de alguém que de fato inventa algo novo.
Obviamente, a IA não seria detentora de uma patente. Não é o que estamos sugerindo. E não tenho conhecimento de ninguém que defenda essa posição com seriedade. Os sistemas de IA não dispõem nem de direitos jurídicos nem morais e, consequentemente, não gozam do direito à propriedade. Além do mais, seria significativamente oneroso, sem quaisquer benefícios, alterar as leis para permitir o direito de propriedade da IA. No entanto, muitas das objeções ao Projeto Inventor Artificial infelizmente focam-se no direito patrimonial da IA.
Novamente, a designação da IA como inventor não implicaria oferecer direito às máquinas, mas protegeria os direitos morais de inventores humanos convencionais e a integridade do sistema de patentes. Como já foi discutido, é frequente o inventor de um objeto patenteado não ser o titular da patente. Assim, nós também acreditamos que o proprietário de uma IA deve ser o titular de todas as patentes de invenções geradas pela IA, em coerência com os princípios gerais da propriedade, bem como com as regras que se aplicam a outras áreas da lei da propriedade intelectual (PI), tais como a proteção do segredo comercial.
Pessoas físicas, IA e autoria inventiva
Argumentou-se que para qualquer obra gerada por IA, existe uma pessoa física que pode ser considerada a inventora. Não é um argumento convincente. Quando alguém instrui uma IA para solucionar um problema, esta pessoa pode ser considerada a inventora se formular ou estruturar o problema de uma determinada maneira que exija habilidade inventiva, mas não quando o problema for óbvio ou já tenha sido compreendido.
Da mesma maneira, um programador ou desenvolvedor de IA pode ser considerado o inventor quando tiver desenvolvido uma IA para solucionar algum problema específico ou quando lhe tiver sido solicitado empregar suas habilidades na seleção de dados de capacitação ou insumos. Por outro lado, o programador provavelmente não é inventor se apenas tiver contribuído para as capacidades gerais de resolução de problemas da IA, sem ter conhecimento do problema específico ao qual se está aplicando a IA ou da produção, em última instância, da mesma. A relação é ainda mais tênue quando há muitos programadores dispersos no tempo e espaço envolvidos no desenvolvimento da IA.
Por último, a pessoa que reconhece a importância da produção de uma IA pode também ser considerada inventora, especialmente se a IA sugerir muitas opções possíveis e a pessoa tiver de empregar habilidade inventiva para selecionar a melhor solução. Contudo, o mesmo princípio não nos parece apropriado se a importância da produção da IA for óbvia e não houver necessidade de maior atividade humana.
A necessidade de políticas adequadas para resolver desafios de PI
É importante que se adotem políticas públicas relativas às obras geradas por IA. Atualmente, a IA inventiva talvez seja um elemento de inovação relativamente insignificante em termos econômicos. Mas a IA vem aperfeiçoando-se de maneira exponencial, ao contrário dos pesquisadores. Isto significa que, mesmo num prazo curto a médio, a IA inventiva pode tornar-se um elemento importante da pesquisa e desenvolvimento. Quanto isto acontecer, será seriamente problemático não termos regras definidas sobre: a proteção de invenções geradas por IA; quem, ou o quê, deve ser designado como inventor; e quem detém essas invenções e suas respectivas patentes.
A designação da IA como inventor não implicaria oferecer direito às máquinas, mas protegeria os direitos morais de inventores humanos convencionais e a integridade do sistema de patentes.
A IA inventiva apresenta novos desafios a outras áreas do direito da PI, tais como a norma da "pessoa competente na matéria", utilizada para avaliar o passo inventivo, uma medida chave da patenteabilidade de uma invenção. Há mais sobre isso em Everything Is Obvious (Ryan Abbott, 66 UCLA L. REV. 2, 23-28 (2019)). Em linhas gerais, esse teste busca determinar se um pesquisador mediano consideraria óbvia a invenção contida num pedido de patente, à luz das informações relevantes existentes. Se for o caso, a patente será recusada. Visto que a IA aumenta cada vez mais as capacidades de trabalhadores medianos, estes se tornarão mais sofisticados e instruídos. Esta evolução da pessoa competente, por sua vez, deve elevar o nível da patenteabilidade, de maneira semelhante à forma como conceito evoluiu na Europa, para incluir pessoas competentes nas áreas em que a norma é a pesquisa realizada em equipe.
Em algum momento no futuro, quando a IA passar da automatização de pesquisadores humanos à automatização da atividade inventiva em larga escala, a IA inventiva talvez chegue até a representar a pessoa competente. No entanto, pode ser difícil determinar cognitivamente aquilo que uma IA consideraria óbvio. Isso pode exigir a mudança do teste do passo inventivo para focalizar fatores econômicos em vez de cognitivos: tais como necessidades há muito identificadas mas nunca solucionadas, invenção convergente, ceticismo profissional, e assim por diante. Pode até mesmo exigir que se focalize na habilidade da IA para reproduzir a matéria da invenção apresentada num pedido de patente. Ainda mais lá na frente, como não há limite claro à inteligência futura das máquinas, talvez um dia tudo venha a ser óbvio para uma IA superinteligente.
Na PI, bem como em muitas áreas do direito, o fenômeno de a IA assumir o papel das pessoas promete causar perturbações profundas. No meu livro prestes a ser lançado, The Reasonable Robot: Artificial Intelligence and the Law (meados de 2020, Cambridge University Press), eu investigo, em traços mais largos, como o fato de a IA se comportar à moda humana irá pôr em causa padrões jurídicos vigentes, elaborados para regular o comportamento das pessoas. Eu sustento que um princípio de neutralidade jurídica, segundo o qual a lei não distinga pessoas e IA quando ambas estiverem realizando as mesmas atividades, terá a tendência de melhorar o bem-estar humano.
Além de mim, a equipe do Projeto Inventor Artificial inclui Robert Jehan na Williams Powell, Malte Koellner na Dennemeyer, Reuven Mouallem na Flashpoint IP, Markus Rieck na Fuchs IP e Peggy Wu na Top Team. O inventor artificial envolvido nesses pedidos, DABUS, foi desenvolvido pelo Dr. Stephen Thaler.
Convite para comentários: impacto da IA na política de PI
OMPI:
A OMPI está procurando desenvolver, por meio de um processo aberto, uma lista de questões relacionadas com o impacto da inteligência artificial (IA) sobre a propriedade intelectual (PI), que pode constituir uma base para futuros debates estruturados.
Os Estados membros e todas as outras partes interessadas estão convidados a fornecer comentários e sugestões sobre um projeto de documento. São bem-vindos comentários sobre qualquer aspecto do sistema de PI afetado pela IA.
Institutos de Patentes e Marcas dos Estados Unidos
No final de 2019, o Instituto Americano de Patentes e Marcas (USPTO) também solicitou comentários públicos a respeito da proteção tanto por patente como por direito autoral para obras geradas por IA, que servirão de auxílio na elaboração de políticas nessas áreas.
Links relacionados
A Revista da OMPI destina-se a contribuir para o aumento da compreensão do público da propriedade intelectual e do trabalho da OMPI; não é um documento oficial da OMPI. As designações utilizadas e a apresentação de material em toda esta publicação não implicam a expressão de qualquer opinião da parte da OMPI sobre o estatuto jurídico de qualquer país, território, ou área ou as suas autoridades, ou sobre a delimitação das suas fronteiras ou limites. Esta publicação não tem a intenção de refletir as opiniões dos Estados Membros ou da Secretaria da OMPI. A menção de companhias específicas ou de produtos de fabricantes não implica que sejam aprovados ou recomendados pela OMPI de preferência a outros de semelhante natureza que não são mencionados.