Recalibragem da inovação: a ciência no centro do desenvolvimento da África*
Por Nathalie Munyampenda, Diretora Geral, The Next Einstein Forum**, Quigali, Ruanda
*Este artigo foi publicado pela primeira vez no Número Especial da Revista da OMPI para a Conferência sobre Propriedade Intelectual, Inovação e Agregação de Valor para Competitividade Comercial e Desenvolvimento Sustentável na África, ocorrido em Harare, Zimbábue, em novembro de 2019.
Se você pedir a qualquer menina ou menino em qualquer cidade africana que diga o nome de um africano famoso, a resposta deverá variar de Sadio Mané ou Mo Salah a Wizkid. Alguns talvez fiquem com o olhar ausente sonhando em estrelar no próximo filme do Pantera Negra ou em fundar uma Wakanda (terra natal fictícia do Pantera Negra) de verdade. Se perguntar à mesma menina ou menino o que quer ser quando crescer, é bem provável que ela, ou ele, fale toda empolgada de seu desejo de ser cantora, atleta, ou de seguir as pegadas de Aliko Dangote, o empresário mais rico da África, ou de Mark Zuckerberg. Nós almejamos a ser aquilo que valorizamos. A maioria das crianças não mencionará cientistas ou inventores. Por quê? Porque a ciência ou o "empreendimento científico" não é nada "descolado". Não é a primeira escolha de carreira que vem à mente. É isto que o Next Einstein Forum (NEF) está trabalhando para mudar.
Então por que é importante que mudemos essa narrativa? Cada ano, cerca de 11 milhões de jovens entram para o mercado de trabalho na África. Estamos formando mais pessoas no ensino superior do que gerando empregos. Novos empregos exigem novas indústrias. A África está rapidamente se tornando o continente das startups, o que é bom, mas não suficiente. A África precisa de unicórnios, empresas que gerem indústrias e empregos e tenham um impacto transformativo nas economias africanas. Mas como é que isso acontece?
Uma visão panafricana para a economia digital
Nos últimos 18 meses, estamos trabalhando numa visão panafricana e num roteiro para a economia digital. Acreditamos que a economia digital é um grande motor único de inovação na África. O que descobrimos em nossas mesas redondas com atores dos setores público e privado foi que a África carece de um quadro para a inovação colaborativa, para acelerar a economia digital e os possíveis ganhos dela decorrentes. Precisamos definir o que é inovação e como ela pode transformar nossas economias e sociedades.
Nossa mensagem é simples. Se quisermos nos beneficiar da economia digital, precisamos ver a educação como uma cadeia de valor que requer diferentes intervenções a cada nível. No NEF, definimos cinco pilares para acelerar o impacto transformativo da economia digital ou, em outras palavras, acelerar o processo de tirar ideias do laboratório e escalá-las para o mercado.
O primeiro e o segundo pilares estão relacionados com a necessidade de infraestruturas básicas e digitais. Para muitos, pode parecer que as infraestruturas digitais (inclusive os esforços de última milha) de alguma maneira eliminam a necessidade de melhorar as infraestruturas básicas. Trata-se de uma suposição redutora. A África precisa intensificar esforços para construir e melhorar suas infraestruturas. A possibilidade de comprar produtos brutos online de agricultores que se encontram a 500 quilômetros de distância, em outro país, pode parecer a solução perfeita, mas ainda são necessários uma boa rede de rodovias e um atendimento ao cliente eficaz para se tomar posse desse produto de maneira econômica e para acelerar o crescimento comercial.
Financiamento da inovação
O terceiro pilar enfoca fatores que apoiam um ambiente ou ecossistema favorável. Sem uma política sólida e um ambiente regulatório que reúnam, de maneira ativa, os setores público e privado e a sociedade civil, numa fase inicial, continuaremos a avançar a passo de tartaruga. Então, como podemos acelerar o processo?
Em primeiro lugar, precisamos explorar que tipos de novos instrumentos e parcerias de financiamento são necessários para apoiar a passagem do laboratório para o mercado, a nível panafricano. Até agora – muito embora isso provavelmente mude em breve – não se implementou nenhum mecanismo para financiar projetos-pilotos e de demonstração na África, de maneira sistemática. Não existe nenhum fundo abrangente para a pesquisa e inovação na África.
Em segundo lugar, precisamos melhorar o grau de conscientização sobre como os direitos de propriedade intelectual (PI) podem agregar valor à inovação e criatividade e fomentar o crescimento de empresas. Um recente estudo da OMPI, abrangendo os 19 países africanos que compõem a Organização Regional Africana da Propriedade Intelectual (ARIPO), mostra que a consciência do valor da PI no continente é muito baixa. Precisamos inverter isto.
E em terceiro lugar, precisamos criar um quadro de inovação aberto, e desenvolver, em seu âmbito, sólidos mecanismos de transferência tecnológica em nossas universidades e faculdades, a fim de garantir que os novos conhecimentos por elas gerados se traduzam em produtos e serviços necessários para solucionar os desafios locais. Se quisermos tirar proveito de todo o benefício da PI, precisamos derrubar as barreiras que impedem uma maior conscientização sobre PI, e suprir a necessidade de se criarem e financiarem adequadamente escritórios de transferência tecnológica eficazes, de maneira sistemática.
O Next Einstein Forum está desenvolvendo um índice do estado da ciência e da inovação por todo o continente, a fim de investigar o que é necessário para se obter êxito na inovação, e usar esses conhecimentos para recalibrar as formas como definimos inovação e como asseguramos a sua capacidade transformativa. O papel da PI no aproveitamento do valor da inovação constitui um importante aspecto que será analisado neste exercício. Vamos lançar a nova edição do índice em março de 2020, no NEF Global Gathering em Nairóbi, Quênia.
Mudar a forma como aprendemos
Os dois últimos pilares de nosso quadro para inovação enfoca a tecnologia e o talento. Assim como o resto do mundo, precisamos melhorar a forma como aprendemos a fim de empoderar nossas crianças, dando-lhes oportunidades para adquirir habilidades multidisciplinares que lhes permitam ser tanto funcionários como empregadores excelentes. E é claro, precisamos realizar um esforço deliberado para assegurar que as meninas permaneçam nos ramos da ciência e tecnologia. Isto não significa apenas que fazer um curso universitário seja uma meta final. Precisamos prever nossas necessidades futuras – tendo em mente o impacto que uma maior automação terá sobre nossas vidas – e precisamos investir na garantia de talentos para criar cadeias de valores e indústrias.
No nível terciário, precisamos preparar os estudantes para o mundo do trabalho e assegurar sua empregabilidade. Mas também precisamos fazer com que algumas de nossas mentes mais brilhantes se mantenham na pesquisa. Sem bons pesquisadores e engenheiros, sempre estaremos sujeitos a tecnologia criada por outros e para outros. Deve haver um esforço deliberado e uma mudança cultural em toda a África por um compromisso com a pesquisa científica e a tecnologia. A pesquisa deve tornar-se a profissão de gente descolada.
No nível da pós-graduação, precisamos estabelecer parcerias com o setor privado ou encontrar outras formas inovadoras de financiar a pesquisa em áreas prioritárias. Desenvolver novos instrumentos de financiamento é uma das necessidades mais urgentes do continente. É ainda mais crucial na fase de comercialização, em que muitas vezes se precisa de milhões de dólares para testar um conceito, lançar um produto e ampliar a produção.
A economia digital é um grande motor único de inovação na África.
Então quais devem ser nossas áreas prioritárias? No NEF, incentivamos os governos a se interessarem por sua vantagem competitiva, sobretudo agora que está ganhando forma a Zona de Livre Comércio Continental Africana. Precisamos melhorar nossa capacidade de reunir recursos e focar melhor em tecnologias capacitantes fundamentais, principalmente nas necessidades imediatas em matéria de cibersegurança, big data, inteligência artificial e aprendizado de máquina, computação em nuvem e 5G. Isto não deve ser feito de maneira isolada. Mais uma vez, as prioridades nacionais e aqueles envolvidos no fortalecimento das cadeias de valor devem considerar todos os aspectos do quadro para a inovação, inclusive como ele deverá ser financiado. Todos os atores envolvidos devem estar coordenados e precisam assegurar que suas respectivas contribuições são orientadas para o aproveitamento dos benefícios econômicos dessas tecnologias.
Fazer da ciência uma matéria descolada
Onde se enquadra o NEF? Uma iniciativa do Instituto Africano de Ciências Matemáticas (AIMS), o NEF tem uma ambição ousada: que o próximo Einstein venha da África. Como nosso presidente e CEO, Thierry Zomahoun, gosta de dizer: "não se trata de um discurso motivador, mas de nosso modelo".
O AIMS está formando os maiores talentos científicos da África, oferecendo cursos de mestrado em ciências matemáticas e inteligência de máquina a africanos de 43 países. Também contratamos brilhantes jovens pesquisadores de todo o mundo, trazendo-os à África para trabalhar em problemas mundiais reais através da matemática. E treinamos professores do ensino médio para que possam ensinar matemática com uma metodologia mais interessante e atraente, a fim de manter meninas e meninos nos ramos da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM).
Com mais de 1.900 ex-alunos AIMS aplicando a matemática à agricultura, saúde, comércio e logística, fintechs, economia circular, energia e eletricidade, e mais ainda, temos grandes esperanças de que a África em breve passe de continente das startups para sede da inovação transformativa. A questão do aproveitamento da PI permanece um desafio crucial, para o qual devemos elaborar um plano claro que angarie grande apoio público.
Infografia
Infografia: Cinco Pilares do Quadro para a Economia Digital
DownloadInfografia: Principais tecnologias capacitantes para a Economia Digital
DownloadNo NEF, já estamos vendo os frutos de nossas atividades de engajamento público para fazer da ciência uma matéria descolada. Nossos programas, principalmente nosso Programa NEF Fellows, que reconhece os melhores cientistas de suas próprias áreas, servem de valiosos exemplos, e nossa Semana Africana da Ciência, interativa e organizada em mais de 30 países africanos, estão mudando o jogo, demonstrando o impacto que os cientistas podem ter no desenvolvimento da África e do resto do mundo. Os jovens ficam muitas vezes surpresos de saber que um químico industrial como o Professor Peter Ngene, nigeriano residente nos Países Baixos, possa conceber um sensor ocular para detectar a intolerância à lactose, ou que um geneticista como o Dr. Vinet Coetzee, da África do Sul, possa criar um método não invasivo e econômico para detectar a malária. Precisamos mudar as histórias que contamos sobre cientistas, e essas histórias precisam ser fundamentadas em fatos e impacto.
A Semana Africana da Ciência ocorrerá este ano em 35 países. Utilizaremos atividades interativas de ciências bem como encontros com cientistas industriais, para dar rosto aos cientistas e ao importante trabalho que fazem em nossos países. Este programa é coordenado por nossos defensores locais de STEM, embaixadores do NEF, jovens cientistas, tecnologistas e empresários, que fazem com que cada semana da ciência seja única e contextualizada.
Por último, para tornar o trabalho científico acessível, publicamos uma revista online, a Scientific African Magazine que torna compreensíveis para os elaboradores de políticas e para o público as pesquisas publicadas em nossa revista especializada, Scientific African. Os artigos são escritos por jornalistas científicos talentosos na arte de simplificar os conceitos mais complexos.
Trabalhar juntos e melhor
Nosso trabalho para desenvolver o quadro para a inovação mostrou-nos uma série de coisas. Primeiro, salientou a importância crucial de atores em todas as cadeias de valor trabalharem juntos, a fim de identificar barreiras e oportunidades e encontrar meios para abordá-las de maneira colaborativa. Segundo, conhecemos a importância de se recorrer a mecanismos de financiamento inovadores para suprir as necessidades financeiras. Terceiro, está bem claro que a África não vai alcançar a linha de frente se não criarmos nossa própria tecnologia. Precisamos de pesquisadores, engenheiros e outros talentos técnicos. Nossas exigências em matéria de talento para as indústrias de hoje e amanhã precisam ser mapeadas, e os recursos assegurados de maneira sistemática para alcançarmos as metas relativas aos talentos. Há anos, cientistas e pesquisadores africanos estão envolvidos em laboratórios e instituições de pesquisa de destaque em todo o mundo, realizando pesquisas de ponta em muitas áreas estratégicas, inclusive na indústria aeroespacial, cibersegurança, semicondutores, saúde e mais. Precisamos criar um ambiente para que esta inovação ocorra na África. Quarto, precisamos de um plano claro para potencializar a PI e promover um maior uso do sistema de PI. E quinto, precisamos conquistar a adesão dos cidadãos africanos à ideia de que a ciência é essencial para o desenvolvimento. A importância disto é crucial. Precisamos promover um entendimento mais vasto das razões pelas quais são necessários grandes investimentos nestas áreas e de como cada africano pode fazer parte do renascimento científico e tecnológico do continente. Isto e um forte compromisso político elevarão a África a novos picos.
A Revista da OMPI destina-se a contribuir para o aumento da compreensão do público da propriedade intelectual e do trabalho da OMPI; não é um documento oficial da OMPI. As designações utilizadas e a apresentação de material em toda esta publicação não implicam a expressão de qualquer opinião da parte da OMPI sobre o estatuto jurídico de qualquer país, território, ou área ou as suas autoridades, ou sobre a delimitação das suas fronteiras ou limites. Esta publicação não tem a intenção de refletir as opiniões dos Estados Membros ou da Secretaria da OMPI. A menção de companhias específicas ou de produtos de fabricantes não implica que sejam aprovados ou recomendados pela OMPI de preferência a outros de semelhante natureza que não são mencionados.