Quando o Direito Internacional Privado e a Lei da Propriedade Intelectual se Encontram: Um Guia para Juízes
Por Annabelle Bennett, Ex-juíza, Tribunal Federal da Austrália, Sydney, Austrália, e Sam Granata, Juiz, Tribunal de Apelação, Antuérpia, e Tribunal de Justiça do Benelux, Luxemburgo
Na economia moderna, as transações comerciais tornaram-se mais complexas, as cadeias de valores tornaram-se mais globais, e o movimento de capital intangível – como propriedade intelectual (PI), tecnologia protegida, desenhos, marcas e obras criativas – tornaram-se mais móveis.
Neste contexto, os casos judiciários relacionados com a violação dos direitos de PI envolvendo bens e serviços de utilização global podem ter um impacto mundial. Enquanto os direitos de PI se aplicam dentro de fronteiras territoriais, a natureza interconecta da economia moderna faz com que os juízes encarregados de disputas relacionadas com os direitos de PI se encontrem, cada vez mais frequentemente, na encruzilhada entre a lei da PI e o direito internacional privado, que diz respeito às relações entre partes privadas por entre fronteiras nacionais.
Tomemos, por exemplo o seguinte cenário:
Empresa A e Empresa B, cujas sedes se situam respectivamente na Bélgica e Austrália, concluem um contrato de licença para a distribuição das mercadorias produzidas por meio do uso da tecnologia patenteada por Empresa A na Bélgica e Austrália. A licença é regida pela lei belga. Surge uma disputa por uma suposta violação da licença e Empresa A intenta uma ação judicial na Bélgica, onde tem sede. Em vez, ou além, de fazer reivindicações de acordo com o contrato de licença, Empresa A acusa Empresa B de violação da patente na Bélgica e Austrália. Empresa B, por sua vez, alega que as patentes são válidas em ambos os países.
Confrontados com este caso, os juízes podem primeiro esperar que as partes cheguem a um acordo antes de uma deles ter de decidir, mas se não houver vontade de resolução por acordo, os juízes irão confrontar-se com questões do direito internacional privado.
A crescente importância do direito internacional privado
O direito internacional privado torna-se mais relevante quando se lida com os desafios ocasionados pela mobilidade ampliada da PI e a natureza globalizada das transações comerciais. A intersecção entre a PI e o direito internacional privado atraiu considerável atenção acadêmica e judicial, pois levanta importantes questões sobre que tribunal tem jurisdição para adjudicar disputas internacionais sobre PI, que lei deve ser aplicada e se julgamentos estrangeiros relacionados à PI podem ser reconhecidos e executados.
Reconhecendo a necessidade de apoiar o trabalho dos juízes e advogados no mundo todo navegando por essas questões, a OMPI e a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) uniram forças para desenvolver um guia prático de PI e Direito Internacional Privado por juízes para juízes.
Um guia para juízes por juízes
When Private International Law Meets Intellectual Property Law: A Guide for Judges, fornece a especialistas de uma das duas áreas do direito um panorama confiável sobre como estas áreas estão entrelaçadas. Ao redigir o guia, não tivemos a intenção de oferecer um tratamento exaustivo do direito em todas as áreas, mas buscamos esclarecer a operação do direito internacional privado em assuntos de PI, com referências ilustrativas a uma seleção de instrumentos internacionais e regionais e de leis nacionais.
A finalidade do Guia é ajudar a garantir que os juízes se encontrem numa melhor posição para aplicar as leis de sua própria jurisdição, embasados no conhecimento das principais questões relativas à jurisdição dos tribunais, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução dos julgamentos, e à cooperação judicial em disputas internacionais sobre PI.
A intersecção entre a PI e o direito internacional privado [...] levanta importantes questões sobre que tribunal tem jurisdição para adjudicar disputas internacionais sobre PI, que lei deve ser aplicada e se julgamentos estrangeiros relacionados à PI podem ser reconhecidos e executados.
Ele não defende qualquer abordagem específica para questões substantivas do direito nem oferece quaisquer soluções em casos individuais. Destacando as principais questões nesta complexa área, visamos a auxiliar juízes e advogados em muitos países diferentes a tomar decisões de posse de todos os fatos. Elaborado para oferecer a máxima facilidade de uso, o Guia emprega uma linguagem direta, acompanhada de diagramas e exemplos práticos, para ajudar na explicação de conceitos chaves que possas ter aplicação. Por ser o Guia destinado a um público mundial, empenhamo-nos em abordar as análises de questões internacionais, apresentadas sob as perspectivas do direito romano-germânico e do direito consuetudinário.
Explorando a intersecção entre direito internacional privado e lei da PI
O Guia conduz o leitor pelas questões que caracterizam a intersecção entre o direito internacional privado e a PI. Os primeiros capítulos incluem um panorama geral das diferentes áreas da PI e do direito internacional privado, e abordam a intersecção entre elas. Também exploram os vários quadros jurídicos que regulam esta intersecção. Por exemplo, examinamos as regras do direito internacional privado que regem as relações de PI focando os instrumentos internacionais e regionais, e como estas regras estão integradas em tratados de PI e sistemas de registro. Nesta parte do Guia, direcionamos o leitor a alguns instrumentos não vincunlantes que lidam com PI e direito internacional privado (iniciativas de quase-direito).
O Guia também fornece um roteiro passo a passo para juristas que lidam com questões internacionais de PI.
Por exemplo, primeiramente será exigido do tribunal que trate de questões relativas à alçada. O tribunal onde a ação é iniciada deve primeiro decidir se é um local apropriado para se determinarem dos procedimentos. Isto requer que se considere que tipo de conexão as partes, a matéria e a solução almejada têm com o Estado.
A questão de um tribunal ser ou não competente para decidir uma disputa de PI – em outras palavras, se tem jurisdição sobre a disputa – será decidida de acordo com as regras do direito internacional privado do Estado onde se situa o tribunal.
Estas regras também podem ser afetadas pelo direito internacional privado regional ou internacional ou por instrumentos de PI. É possível que tribunais em mais de um Estado tenham jurisdição para decidir uma disputa. Em outras palavras, isso permite ao autor da queixa escolher um tribunal, prática por vezes chamada de "forum shopping".
Após determinar sua jurisdição, o tribunal precisará determinar a lei aplicável ao caso internacional de PI. No Guia, identificamos os pontos que o tribunal deve considerar nesta etapa. Enquanto tentamos oferecer uma abordagem neutra à questão, explicamos que o tribunal deve estar ciente de que leis nacionais podem interagir com este processo e observar que alguns passos podem cruzar-se com alguns pontos sendo analisados para se determinar a jurisdição. O figura 2 traz um panorama gráfico da abordagem por passos descrita no Guia.
Tentamos responder a perguntas que podem surgir sobre se e como o julgamento do tribunal pode ser reconhecido e executado em outro Estado. Tais perguntas muitas vezes surgirão quando a parte contra quem se requereu um julgamento estiver localizada em outro Estado ou possua ativos localizados em outro Estado. Fazemos uma distinção entre os tribunais que estão envolvidos nas etapas de execução: (i) o tribunal que realizou o julgamento (tribunal de origem) e (ii) o tribunal do Estado solicitado a reconhecer ou executar o julgamento da corte de origem (tribunal destinatário)
Por fim, o Guia trata de questões relacionadas à cooperação administrativa ou judicial. Em transações ou disputas internacionais civis ou comerciais, podem-se encontrar dificuldades nas seguintes hipóteses: o acusado ou uma testemunha está domiciliado, ou a prova está localizada, fora do Estado onde a ação foi intentada; um Estado estrangeiro emite os documentos públicos necessários, ou ações paralelas sobre a mesma disputa foram intentadas em diferentes Estados. A razão disto é que cada Estado possui seu próprio sistema jurídico e administrativo.
Uma cooperação mais estreita entre as autoridades de diferentes Estados pode eliminar obstáculos derivados da complexidade dos diferentes sistemas nacionais. No Guia, direcionamos o leitor a convenções desenvolvidas pela Conferência de Haia de Direito Internacional Privado com o objetivo de facilitar a cooperação por meio de diferentes mecanismos.
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