Conduta ética no trabalho com a propriedade intelectual e cultural indígena: Austrália lança novos protocolos
Patricia Adjei, Responsável, Artes e Cultura das Primeiras Nações, Conselho de Artes da Austrália, Sydney, Austrália
A expressão artística e cultural única das Primeiras Nações da Austrália está profunda e firmemente ligada aos mais de 75 mil anos de tradição e prática contínua, e sua singularidade é reconhecida tanto na Austrália quanto internacionalmente.
No entanto, como acontece em muitos países, ainda existe uma lacuna significativa na proteção jurídica das expressões e conhecimentos culturais tradicionais na Austrália. Atualmente, a lei australiana de direitos autorais protege apenas obras de artistas indígenas individualmente, no entanto, não há uma lei para coibir especificamente o uso indevido, a distorção ou a alteração da propriedade intelectual (PI) e cultural indígena de propriedade da comunidade ou que faça parte do patrimônio de um grupo.
Negociações internacionais no âmbito do Comitê Intergovernamental da OMPI sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore (IGC, na sigla em inglês) buscam instituir um arcabouço legal internacional para tratar dessas questões. Enquanto aguardam o resultado do trabalho da IGC, muitos países, incluindo organizações na Austrália, vêm desenvolvendo formas práticas de apoio às comunidades indígenas na proteção de seus interesses de PI.
A salvaguarda do conhecimento tradicional e das expressões culturais indígenas de maneira responsável é fundamental para garantir que o patrimônio cultural indígena seja conservado e possa ser transmitido de geração em geração.
Na Austrália, a música indígena compõe-se de um extenso acervo de histórias, canções e estilos de canto e dança oriundo de comunidades indígenas de todo o país. Das Ilhas Tiwi à Terra de Arnhem no Território do Norte, passando pela região de Kimberley na Austrália Ocidental e pelos estados de Victoria e Tasmânia, a proteção destes estilos históricos de expressão cultural das comunidades é limitada.
Novos protocolos favorecem a conduta ética no trabalho com as culturas indígenas
No final de setembro de 2020, o Conselho de Artes da Austrália (também denominado Conselho da Austrália), órgão nacional de financiamento e assessoria das artes do Gabinete Governamental Australiano para as Artes, lançou a última edição dos Protocolos para Uso Da Propriedade Intelectual e Cultural Das Primeiras Nações nas Artes. Os protocolos visam a preencher a lacuna jurídica existente e proporcionar proteção ao conhecimento tradicional, reconhecendo e promovendo o respeito pela prática dos costumes.
A salvaguarda do conhecimento tradicional e das expressões culturais indígenas de forma responsável é fundamental para garantir a conservação do patrimônio cultural indígena.
Os protocolos abordam considerações legais, éticas e morais fundamentais para o uso de material cultural indígena no setor artístico australiano. Foram atualizados pela última vez em 2007. A nova edição revisada, de autoria do advogado australiano indígena Terri Janke, consolida cinco guias em um só, com estudos de caso abrangendo artes visuais, música, literatura, dança, teatro, expressões multiartísticas, artes emergentes e experimentais e projetos baseados em eventos.
O guia de protocolo atualizado estabelece dez princípios para respeitar os conhecimentos e as expressões culturais tradicionais australianas:
- Respeito
- Autodeterminação
- Comunicação, consulta e consentimento
- Interpretação
- Integridade cultural e autenticidade
- Sigilo e confidencialidade
- Atribuição
- Partilha dos rendimentos
- Culturas contínuas
- Reconhecimento e proteção
Protocolos na prática
O guia mostra a implementação dos dez princípios por meio de 14 estudos de caso. Dentre eles, podemos citar o Mission Songs Project, criado pela musicista e produtora australiana das Primeiras Nações, Jessie Lloyd. O projeto buscou revitalizar canções indígenas australianas contemporâneas da década de 1990 e criar um espaço em que os indígenas australianos que viviam em assentamentos do governo ou não governamentais pudessem compartilhar e resgatar suas histórias e expressões culturais. O músico sênior das Primeiras Nações Archie Roach e a professora universitária australiana das Primeiras Nações Marcia Langton da Universidade de Melbourne atuaram como consultores culturais seniores do projeto.
Durante um período de dois anos, Jessie Lloyd reuniu-se com velhos indígenas e membros seniores da família e aprendeu as canções e tradições musicais que haviam sido transmitidas oralmente, consultando comunidades para gravar e publicar canções de propriedade da comunidade das antigas missões aborígenes dos estados de Queensland, New South Wales e Victoria. Trabalhar diretamente com os contadores de histórias – os detentores do conhecimento – revelou-se decisivo para garantir a autenticidade e a integridade cultural da obra. O projeto culminou com a produção de um álbum musical – The Songs Back Home (2017) –, um site e um songbook de corais, além de apresentações em diferentes festivais, como Yirramboi, festival indígena de Melbourne, Festival Folclórico de Woodford na região de Queensland e Festival de Sydney. No exterior, Jessie Lloyd apresentou seu trabalho no Canadá, no México e nos EUA.
O estudo de caso traz detalhes sobre como a artista observou escrupulosamente os dez princípios estabelecidos no guia ao longo de sua pesquisa, garantindo que o projeto celebrasse com sucesso a resiliência, a resistência e a reabilitação de comunidades indígenas de uma maneira culturalmente apropriada.
Formação prática da OMPI para povos indígenas e comunidades locais
A OMPI criou um programa de formação prático intensivo para os povos indígenas e as comunidades locais destinado à proteção de música, interpretações, arte, desenhos e outras expressões culturais tradicionais (ECT).
O Projeto de Patrimônio Criativo da Organização compreende um programa de formação em documentação cultural e gestão de PI para ajudar as comunidades a:
- criarem direitos de propriedade intelectual em seu patrimônio cultural (na forma de fotografias digitais, material audiovisual, registos sonoros e bases de dados);
- exercerem controle e tomarem decisões informadas sobre o acesso e a utilização por terceiros; e
- permitirem que as comunidades (se assim o desejarem) obtenham rendimentos da comercialização de seus bens culturais de uma forma que corresponda a seus valores.
O programa foi conduzido com a comunidade Maasai e tem dois componentes: um curso técnico prático sobre como registrar e documentar expressões culturais e um curso sobre direitos de propriedade intelectual e a maneira de utilizá-los.
O programa também disponibiliza vários recursos úteis para as comunidades que desejam participar do programa e para quem procura trabalhar com elas. Os recursos incluem um conjunto de códigos de práticas, diretrizes e melhores práticas para registro, digitalização e disseminação de ECT.
Para maiores informações sobre o programa, clique aqui.
O guia descreve as melhores práticas atuais, além de ser um recurso inestimável para quem trabalha com artistas australianos das Primeiras Nações ou atua no setor artístico e cultural australiano das Primeiras Nações. Também é uma ferramenta útil para quem deseja aprender mais e construir conhecimento sobre o patrimônio cultural indígena nos setores artístico e criativo em geral.
Os protocolos visam a preencher a lacuna jurídica existente e a proporcionar proteção ao conhecimento tradicional, reconhecendo e promovendo o respeito pela prática dos costumes.
O guia traz cláusulas específicas sobre o conhecimento tradicional e a expressão cultural em gravações e em outros contratos, assegurando que o consentimento seja assegurado pelo músico ou comunidade australiana das Primeiras Nações envolvida e que os royalties sejam repartidos com as comunidades em questão quando um álbum, uma canção ou um projeto for de propriedade comunitária. Uma série de cláusulas e amostras de contratos para projetos relacionados com o uso de expressões culturais tradicionais estão disponíveis para artistas australianos e organizações artísticas no Centro de Direito Artístico da Austrália.
Os dez princípios estabelecidos no guia integram artigos da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas . O Artigo 31 da Declaração, por exemplo, refere-se especificamente ao direito dos povos indígenas de conservar, promover, controlar e exercer seus conhecimentos tradicionais, expressões culturais tradicionais e recursos genéticos. O Artigo 18, por sua vez, trata do consentimento e da consulta quando terceiros externos à comunidade desejarem usar material cultural indígena e trabalhar com comunidades indígenas.
O Conselho de Artes da Austrália está utilizando os protocolos atualizados com referência para o trabalho, as tomadas de decisão, a pesquisa e a promoção da segurança cultural no âmbito de nossa atuação. De acordo com a legislação em vigor – Lei do Conselho de Artes da Austrália –, nosso mandato consiste em fornecer apoio e assessoria a artistas e organizações artísticas australianas das Primeiras Nações. Para tanto, o Conselho criou um painel de estratégia para as artes das Primeiras Nações que dá conselhos estratégicos à nossa equipe de artes aborígines e dos ilhéus do Estreito de Torres.
O Conselho da Austrália financia artistas e organizações artísticas australianas, além de apoiar e defender especificamente todas as práticas artísticas de artistas e organizações artísticas australianas das Primeiras Nações. Estas práticas compreendem as artes das Primeiras Nações, artes emergentes e experimentais, artes visuais, literatura, música, dança, teatro e artes comunitárias, bem como desenvolvimento cultural na Austrália. O guia atualizado prestará apoio às atividades financiadas pelo Conselho da Austrália destinadas a australianos indígenas e comunidades indígenas, além de seu patrimônio cultural. Instaura um quadro e uma metodologia, desde o desenvolvimento do conceito até a entrega do projeto. Além dessas atividades, o guia pode interessar qualquer pessoa que trabalhe com artistas australianos indígenas ou no setor de artes australianas indígenas, incluindo:
- Artistas indígenas e não indígenas;
- Organizações e artistas internacionais;
- Pessoas que atuam em áreas relacionadas com práticas artísticas indígenas;
- Agências da Commonwealth e do governo estadual/territorial da Austrália;
- Governos/conselhos locais;
- Agências industriais e grandes organizações;
- Galerias, museus e centros de arte;
- Instituições de ensino e formação; e
- Mídias indígenas e mainstream australianas selecionadas.
O trabalho da Comissão Intergovernamental (IGC, na sigla em inglês) da OMPI e os projetos de disposições em discussão refletem questões suscitadas por representantes indígenas, dentre os quais muitos indígenas australianos. Os protocolos atualizados do Conselho da Austrália refletem os costumes da Austrália Indígena e podem servir como uma base útil para orientar as discussões internacionais no âmbito da IGC. O guia trata do trabalho em andamento da IGC e, embora não seja juridicamente vinculativo, pode oferecer uma orientação política valiosa para os Estados membros da OMPI.
Os novos protocolos, que também trazem uma lista de controle do projeto e modelos úteis, já estão disponíveis no site do Conselho da Austrália e no da Divisão de Conhecimentos Tradicionais da OMPI.
A Revista da OMPI destina-se a contribuir para o aumento da compreensão do público da propriedade intelectual e do trabalho da OMPI; não é um documento oficial da OMPI. As designações utilizadas e a apresentação de material em toda esta publicação não implicam a expressão de qualquer opinião da parte da OMPI sobre o estatuto jurídico de qualquer país, território, ou área ou as suas autoridades, ou sobre a delimitação das suas fronteiras ou limites. Esta publicação não tem a intenção de refletir as opiniões dos Estados Membros ou da Secretaria da OMPI. A menção de companhias específicas ou de produtos de fabricantes não implica que sejam aprovados ou recomendados pela OMPI de preferência a outros de semelhante natureza que não são mencionados.