Quando os videogames cumprem com a legislação de PI
Anna Piechówka, Conselho de Propriedade Intelectual, CD PROJEKT RED, Varsóvia, Polônia
Durante anos, o desenvolvimento de videogames tem sido um dos setores de crescimento mais rápido da indústria do entretenimento — e pode-se dizer com certeza que a pandemia da COVID-19 não diminuiu esse ritmo. Muito pelo contrário, segundo a avaliação da Newzoo de outubro de 2020, o mercado mundial de jogos para 2020 terá gerado receitas de 174,9 bilhões de dólares, um aumento de 19,6 por cento em relação aos números de 2019. Significativamente, esta avaliação de finais de 2020 é em 15 bilhões de dólares mais elevada do que a que foi feita antes da pandemia em março.
O número global de jogadores também continua crescendo e, segundo o Relatório do Mercado Global de Jogos da Newzoo para 2020, deverá ultrapassar a casa dos 3 bilhões até 2023. Durante o ano passado, tornou-se claro que os videogames são um campo incrivelmente importante para a interação social. A pesquisa da Newzoo mostra que a socialização é a segunda razão mais popular para as pessoas passarem mais tempo brincando com jogos durante a pandemia. À medida que um número mais elevado de pessoas se reúnem em plataformas de jogos, os próprios jogos começam a oferecer características e experiências semelhantes aos meios de comunicação social ou a eventos da vida real — e até mesmo substituindo estes últimos. Isto foi visto em abril de 2020, quando 12 milhões de espectadores se reuniram no Fortnite Battle Royale para assistir a um concerto ao vivo, em pleno jogo, de Travis Scott. Foi um momento marcante para a interação social no âmbito dos videogames.
Graças ao desenvolvimento da tecnologia, ao design, a complexidade e a diversidade dos jogos de vídeo estão evoluindo rapidamente. Os jogadores podem agora escolher entre uma vasta gama de formatos e gêneros, e é comum que os jogos AAA (os desenvolvidos com os orçamentos mais elevados do setor) ofereçam dezenas, ou até mesmo centenas de horas de conteúdo de histórias. Também em termos gráficos, os videogames estão se tornando mais realistas. Podem captar cada minuto de detalhe, como a imagem pessoal dos protagonistas, que cada vez mais utilizam atores famosos de Hollywood ou influenciadores.
Graças ao desenvolvimento da tecnologia, o design, a complexidade e a diversidade dos videogames estão mudando rapidamente.
Da mesma forma, como ocorre com outras criações artísticas, o núcleo dos videogames sempre foi sua propriedade intelectual (PI). Em comparação com as obras tradicionais protegidas por direitos de autor, os videogames são geralmente muito mais complexos. São um conglomerado de muitos elementos diferentes, tais como programas de computador, conteúdo audiovisual, imagens, desenhos, obras literárias, locuções, música, interpretações artísticas, marcas registradas e muitos outros. Gerir as especificidades dos videogames representa um verdadeiro desafio quando se trata de proteção da propriedade intelectual.
Um desafio ainda maior surgiu como resultado do rápido desenvolvimento do mercado de videogames, e da revolução nos próprios videogames. Também é de notar que os videogames são geralmente distribuídos em todo o mundo, o que significa que, como regra, regulamentações específicas em todas as jurisdições relevantes devem ser levadas em consideração. Entretanto, do ponto de vista da lei de PI, numerosos aspectos dos videogames permanecem pouco claros. Podem ser um problema para os desenvolvedores de videogames, editores e até mesmo para os jogadores em alguns casos. Vamos dar uma olhada em algumas das questões mais interessantes relacionadas à PI que este setor tem visto até agora.
Uso de marcas como parte dos videogames
Os videogames têm-se dirigido ainda mais para um realismo mais profundo. É uma tendência que, em parte, tem sido facilitada pela capacidade técnica de tornar realistas até mesmo os mais ínfimos detalhes. É natural, portanto, que os desenvolvedores escolham incluir elementos do mundo real, tais como objetos da vida real, marcas ou paisagens em seus jogos. Pode-se ver isso em jogos baseados em guerra. Para criar uma experiência mais imersiva para os jogadores, os desenvolvedores muitas vezes baseiam esses jogos em eventos históricos, utilizando réplicas de armas reais, veículos militares, aeronaves, uniformes e equipamentos. Muitos desses objetos entram no jogo juntamente com marcas registradas, que podem proteger seu nome de produto ou logotipo, por exemplo. Isto suscita a questão geral sobre se a criação artística de um jogo de vídeo justifica o uso dessas marcas registradas.
O exemplo dos jogos baseados na guerra não é coincidência. Este gênero passou por um pesado escrutínio e viu múltiplas disputas em relação à representação de objetos da vida real. Por exemplo, um caso emblemático de PI em 2020 envolveu uma disputa a respeito do uso de veículos militares Humvee na série Call of Duty. Este caso recebeu um acordo de primeira instância por um tribunal distrital de Nova Iorque em março de 2020. O tribunal decidiu que o uso das marcas relacionadas ao Humvee do AM General pelo desenvolvedor Activision Blizzard é protegido pelo direito à liberdade de expressão da Primeira Emenda dos Estados Unidos. Na sua análise, o tribunal usou o teste de Rogers estabelecido no caso Rogers v. Grimaldi em 1989. Esse teste permite a rejeição de alegações de violação de marca se a marca tiver sido utilizada para fins artísticos e não tiver induzido os consumidores em erro. Como concluiu o tribunal distrital: “Se o realismo é um objetivo artístico, a presença em jogos de guerra modernos de veículos empregados por militares reais promove, indubitavelmente, promove esse objetivo”.
Embora o caso Humvee seja um avanço definitivo para a indústria do jogo, seus efeitos só podem ser estendidos aos Estados Unidos, onde se aplica o teste Rogers. A maioria das outras jurisdições em todo o mundo carece de disposições que permitam expressamente o uso de marcas registradas para fins artísticos. Entretanto, esta falta de isenções legais diretas não significa automaticamente que o uso de marcas registradas em videogames em qualquer lugar fora dos Estados Unidos constitua uma infração. Existem outros meios legais de fazer isto, mas seu resultado é mais difícil de prever. Por exemplo, em 2012, um tribunal parisiense considerou que o uso do logotipo da Ferrari em um modelo de carro da série Grand Theft Auto é admissível com base na liberdade de expressão e na ausência de risco de confusão para o consumidor.
Ovos de Páscoa
Outro aspecto interessante da PI diz respeito aos ovos de Páscoa, o termo utilizado para descrever o conteúdo secreto escondido em um videogame por seus desenvolvedores — tipicamente como uma piada ou referência. Os ovos de Páscoa mais comuns referem-se a outros videogames, mas também podem fazer referência a outras obras culturais, eventos da vida real, pessoas, jogos anteriores criados pelo desenvolvedor ou, literalmente, qualquer outra coisa. Podem assumir muitas formas, desde referências conceituais em diálogo, citar paráfrases, nomes, citações diretas, replicação ou alteração paródica de um elemento, imagem ou característica secreta no jogo. Um exemplo pode ser encontrado em The Witcher 2: Assassins of Kings, em que os jogadores podem encontrar um corpo morto, vestido de branco, ao lado de um palheiro. É uma referência à série de videogames Assassin's Creed. Em outro exemplo, Diablo 3 tem a opção de combater os unicórnios gigantes do estilo My Little Pony, e em Call of Duty: Black Ops 2, após completar uma ação específica em um determinado período de tempo num mapa específico, o jogador pode optar por jogar alguns jogos de ativação da velha guarda em um Atari 2600.
Devido à sua própria natureza, os ovos de Páscoa geralmente envolvem algum nível de apropriação da obra protegida por direitos de autor de outra pessoa. Sua avaliação legal (e a determinação de que não estão infringindo) muitas vezes varia e depende da quantidade e da substancialidade da parte tomada. Em geral, quando a apropriação é apenas conceitual, nenhum risco de violação deverá ocorrer, pois a lei de PI não protege meras ideias. Por outro lado, cada vez que uma parte específica de outra obra for utilizada, os ovos de Páscoa muito provavelmente interferirão com os direitos exclusivos do proprietário dos direitos de autor. Se tal interferência constituir uma infração, será uma outra questão, e a resposta a este contexto dependerá da capacidade de classificar o uso específico da obra protegida por direitos de autor sob isenções estabelecidas de proteção aos direitos de autor.
Uma exceção bem reconhecida aos direitos de autor é a doutrina do uso justo, que é estabelecida no sistema de direitos de autor dos EUA, mas usada aqui como um termo coletivo que abrange instituições legais similares em diferentes jurisdições. Os princípios de uso justo, entretanto, variam substancialmente de um sistema legal a outro e de uma jurisdição a outra. Nos países de direito comum (Common Law), as limitações do uso justo1 são tipicamente definidos por um conjunto de normas abertas − tais como circunstâncias a serem levadas em consideração por um tribunal ao decidir se o uso é realmente justo. Tais circunstâncias podem incluir a finalidade e o caráter do uso, o escopo do uso, a natureza da obra protegida por direitos de autor e a quantidade e a substancialidade da parte utilizada. Enquanto os sistemas jurídicos de direito civil (Civil Law) não incorporam tais princípios e geralmente usam exceções restritas e específicas, como citar pequenas porções da obra de outro para fins de explicação, análise crítica, educação, paródia, ou uso normalmente justificado pelo gênero particular.
Falando de um modo muito geral, geralmente é mais fácil encontrar uma justificativa para um típico ovo de Páscoa de videogame em jurisdições que utilizam normas abertas como a doutrina do “uso justo”, já que tal abordagem é muito mais flexível e aberta a novas tecnologias. Entretanto, nem todo ovo de Páscoa pode evitar uma acusação de violação de direitos de autor, mesmo neste sistema − o que apresenta algum risco para os criadores de videogames.
A gestão das especificidades dos videogames apresenta um verdadeiro desafio quando se trata de proteção da propriedade intelectual.
Conteúdo gerado pelo usuário
A socialização nos videogames não termina com a comunicação entre os jogadores ou com a participação em eventos on-line. Como as mídias sociais, muitos videogames incentivam os jogadores a criarem e a compartilharem o chamado conteúdo gerado pelo usuário (UGC, na sigla em inglês). O UGC pode assumir inúmeras formas, incluindo arte produzida por fãs, vídeos let's play, ou mods (modificações das características de um videogame), incluindo novos personagens, objetos, construções, histórias e muitos mais. O compartilhamento de tal conteúdo pode ocorrer em plataformas associadas ao jogo, tanto de propriedade do desenvolvedor ou de terceiros, como no próprio videogame. Alguns videogames são até mesmo baseados na ideia de participação do jogador.
Quanto mais os legisladores e os tribunais reconhecerem que as características criativas dos videogames devem ser protegidas tanto quanto as das obras culturais tradicionais, mais fácil será para os criadores avaliar antecipadamente os riscos legais potenciais, e – criar.
Por um lado, o UGC ajuda a construir comunidades fortes em torno de um jogo, o que traz valor para os jogadores e desenvolvedores. Por outro lado, pode ser um campo de minas legal para ambos os lados. Do ponto de vista do jogador, criar e compartilhar o UGC baseado em videogames sempre envolve o uso da PI do jogo de uma forma ou de outra. Os jogadores têm que cumprir os regulamentos sobre o uso de PI listados no “contrato de licença de usuário final” ou termos de serviço, que variam entre jogos e, na maioria dos casos, deixam algum espaço para dúvidas. Por sua vez, os desenvolvedores têm de projetar em torno de todas as regulamentações para evitar o compartilhamento de conteúdo ilegal ou indesejável em suas plataformas e também suportar o risco de que sua própria PI seja associada a conteúdos potencialmente indesejáveis. Um risco principal relacionado à abertura de seu próprio produto ao UGC é a potencial violação dos direitos de PI de outros, ou seja, jogadores misturando conteúdo protegido por PI de diferentes videogames. Em um exemplo recente a partir de março de 2020, a Sony foi forçada pela Nintendo a eliminar o UGC com o famoso protagonista da Nintendo, Mario, do videogame publicado pela Sony. Por um lado, o UGC ajuda a construir comunidades fortes em torno de um jogo, o que traz valor para os jogadores e desenvolvedores. Por outro lado, pode ser um campo de minas legal para ambos os lados. Do ponto de vista do jogador, criar e compartilhar o UGC com base em videogames sempre envolve o uso da PI do jogo de uma forma ou de outra. Os jogadores têm que cumprir os regulamentos sobre o uso da PI listados no “contrato de licença de usuário final” ou termos de serviço, que variam entre jogos e, na maioria dos casos, deixam algum espaço para dúvidas. Por sua vez, os desenvolvedores têm de projetar em torno de todas as regulamentações para evitar o compartilhamento de conteúdo ilegal ou indesejável em suas plataformas e também suportar o risco de que sua própria PI seja associada a conteúdo potencialmente indesejável. Um risco principal relacionado à abertura de seu próprio produto ao UGC é a potencial violação dos direitos de PI de outros, ou seja, jogadores misturando conteúdo protegido por PI de diferentes videogames. Em um exemplo recente a partir de março de 2020, a Sony foi forçada pela Nintendo a eliminar o UGC com o famoso protagonista da Nintendo, Mario, do videogame publicado pela Sony Dreams. Como seria virtualmente impossível para os desenvolvedores limpar o uso de cada peça de UGC, este setor certamente verá muito mais exemplos desses tipos de casos.
Síntese
A partir deste conjunto bastante restrito de questões potenciais, fica claro que criar um videogame é um desafio de PI e que os videogames são um enorme desafio para a própria legislação de PI. Como é o caso de outras indústrias em rápido desenvolvimento, é difícil para as normas legais acompanharem as mudanças tecnológicas. Por conseguinte, algum nível de incerteza legal é inevitável. Entretanto, quanto mais os legisladores e os tribunais reconhecerem que as características criativas dos videogames devem ser protegidas tanto quanto as das obras culturais tradicionais, mais fácil será para os criadores avaliar antecipadamente os riscos legais potenciais, e – criar.
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