Construindo um futuro melhor com plásticos reciclados
Paul Omondi, escritor independente
Com uma solução inovadora, que transforma plásticos usados em material de construção, a jovem empreendedora queniana Nzambi Matee está causando impacto na paisagem urbana do Quênia. Em entrevista recente à Revista da OMPI, ela conta como o ativismo da falecida ambientalista e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz Wangari Maathai a inspirou a criar a Gjenge Makers para fabricar blocos de pavimentação alternativos, acessíveis e sustentáveis.
De onde veio a ideia de usar a reciclagem como um empreendimento viável, e por que a opção pelo setor de construção civil?
A reciclagem tornou-se uma indústria necessária no mundo de hoje e assumiu grandes proporções. Precisamos pensar o que fazer com os produtos e materiais que produzimos quando eles chegam ao fim de seu ciclo de vida útil. Não há como levar tudo para os aterros sanitários. A natureza está nos obrigando a ser mais eficientes em nossos processos. A reciclagem é fundamental para fazer da economia circular uma realidade. E eu quero provar que as pessoas que dizem que a reciclagem é cara e se resume a um mercado de nicho estão erradas. Optei pela construção civil porque é indispensável que as pessoas tenham onde morar; essa é uma das mais importantes necessidades humanas.
Além disso, a conservação ambiental é uma questão que me mobiliza demais, por inspiração da falecida Wangari Maathai, que em 2004 se tornou a primeira mulher africana a ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Ela obteve muitas conquistas com seu ativismo. E, para fazer a minha parte na conservação do meio ambiente, resolvi usar a ciência e a engenharia. São as ferramentas que a minha formação me deu.
O que significa o nome “Gjenge”?
Gjenge é uma adaptação da palavra suaíli jijenge, que significa “construa você mesmo”. É uma ideia perfeita para o nosso negócio, já que estamos no ramo da construção civil – queremos realmente “construir”. Nosso sonho é ver as pessoas construindo um futuro sustentável, pois ninguém quer viver em um ambiente poluído e degradado. E é aí que entram os nossos blocos de pavimentação.
Vocês se consideram agentes da transformação. Qual é a mudança que vocês querem que aconteça?
Em Nairóbi, no Quênia, onde atuamos, é raro você ver um pedaço de sucata na rua, porque o nosso sistema de reciclagem de metais está bem estruturado. Meu projeto é organizar a reciclagem de outros materiais, especialmente os plásticos, da mesma maneira. Essa é a mudança que queremos produzir, com impactos tanto ambientais como sociais. Já reciclamos mais de 20 toneladas de plástico e criamos mais de 100 empregos para catadores de lixo, mulheres e grupos de jovens.
Quando era mais jovem, você se via comandando esse tipo de empreendimento?
Sou formada em física. Estudei geofísica e ciências naturais, mas agora estou me dedicando mais às ciências naturais. Também estudei engenharia mecânica e hidráulica por conta própria, e foi assim que vim parar no comando de uma empresa de materiais de construção civil. Eu sempre quis oferecer soluções construtivas e contribuir de alguma maneira para a conservação do meio ambiente. A Gjenge me permite realizar essas duas aspirações.
Como garantir o recrutamento dos melhores talentos?
Nossa empresa tem 26 funcionários trabalhando em tempo integral, incluindo engenheiros eletrônicos, hidráulicos, mecânicos e de produção. Treinamento é a palavra-chave. Nossa equipe passa por treinamentos constantes em nossos processos industriais e operações comerciais. Também estamos criando um departamento de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para nos mantermos sempre à frente das tendências e continuar inovando, oferecendo novas soluções e agregando valor ao mercado.
Conte um pouco sobre as atividades de pesquisa e desenvolvimento e também sobre as campanhas publicitárias que culminaram na criação da Gjenge.
Passamos quase três anos pesquisando e desenvolvendo o nosso produto antes de começar a comercializá-lo. As atividades de pesquisa e desenvolvimento são fundamentais para nós, pois somos pioneiros no setor e estamos abrindo caminho para outros atores com produtos de qualidade e processos que oferecem soluções inovadoras para a construção de moradias de baixo custo ambientalmente sustentáveis.
Quanto a campanhas publicitárias, temos a sorte de contar com parceiros que acreditam na nossa visão. A maior parte das nossas campanhas ficou por conta desses parceiros, se bem que a publicidade boca a boca também é uma ferramenta poderosa e funcionou muito bem conosco. Também recebemos apoio de organizações internacionais, incluindo algumas agências das Nações Unidas, empresas multinacionais, como a Coca-Cola, e grandes empresas regionais, como a East African Breweries e a London Distillers Kenya, e do setor público, por meio do Ministério de Transportes, Infraestrutura Habitacional, Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas do Quênia. Esses apoios nos deram a tão necessária credibilidade para entrar no mercado.
Nosso sonho é ter uma linha de montagem automatizada e um portfólio de produtos diversificado, para que possamos atender à demanda crescente e ampliar nossa participação de mercado.
Qual foi o foco das atividades de pesquisa e desenvolvimento da Gjenge antes de vocês entrarem no mercado?
Nossa primeira preocupação foi chegar a um bom produto. Foi um passo importante, pois se tratava de uma nova solução. Em seguida, precisávamos ter certeza de que não havia falhas em nossa tecnologia de produção – que foi toda desenvolvida por nós – e que ela cumpria as normas e especificações exigidas pelo Instituto de Normas Técnicas do Quênia (KEBS). Além disso, precisávamos pesquisar e definir o nosso mercado alvo com clareza.
Conte um pouco sobre o processo produtivo da Gjenge.
Nossos blocos de pavimentação são feitos de concreto polimérico, que consiste basicamente em areia e plástico. No nosso processo, a areia desempenha a função de agregado, embora pudéssemos usar qualquer outro tipo de agregado, enquanto o plástico é o agente aglutinante; equivale ao cimento Portland usado para aglutinar areia, brita e pó de pedra no concreto convencional.
Misturamos areia, plástico triturado e pigmento colorido e introduzimos essa mistura em uma extrusora, onde ela é aquecida a uma temperatura de quase 400ºC. A mistura que sai da extrusora é um composto pastoso, que precisa esfriar antes de ser colocada em moldes de diferentes formatos. Por fim, o composto moldado é comprimido em uma prensa hidráulica a uma pressão que varia de 100 a 200 toneladas, dando origem aos blocos, que são então resfriados para serem embalados.
Qual é a capacidade de produção atual da Gjenge?
Estamos produzindo entre 1 mil e 1,5 mil blocos por dia atualmente. O fato, porém, é que precisaríamos aumentar a produção em dez vezes para satisfazer a demanda atual, mas não temos como atingir essa escala no curto prazo. Esperamos estar produzindo cerca de cinco mil blocos por dia até dezembro de 2022. E é por isso que gostaríamos de replicar e multiplicar os nossos produtos e processos, por meio, por exemplo, de parcerias que adotem diferentes modelos, da partilha de receitas ao sistema de franquias. Essa abordagem nos permitiria atender plenamente à demanda atual. No momento, contamos com parcerias desse tipo em três grandes cidades do Quênia.
Qual é o diferencial de venda dos blocos de pavimentação produzidos pela Gjenge?
O plástico não é, em si, um material muito resistente. Ao ser usado como agente aglutinante, porém, sua natureza fibrosa produz uma aglutinação excelente. Nossos blocos não apresentam bolhas de ar, que são removidas durante a prensagem. Isso os torna sete vezes mais resistentes do que o concreto convencional.
Como a Gjenge protege suas inovações?
Estamos buscando o patenteamento de nossas máquinas, produtos e processos. Quando tivermos obtido as patentes, começaremos a aumentar a escala de produção. Esperamos fazer isso ainda em 2022. Infelizmente, a obtenção de patentes é um processo bastante dispendioso, de modo que, para escolher esse caminho, você antes precisa ter certeza de que o patenteamento faz sentido economicamente. Estamos recorrendo a financiamentos para cobrir os custos das patentes porque queremos ampliar nossa escala. Assim, dependendo da abordagem comercial que adotarmos à medida que formos crescendo, o patenteamento pode vir a ser extremamente útil, especialmente no caso do modelo de partilha de receitas.
Quais são alguns dos desafios que vocês estão enfrentando?
Nosso principal desafio tem a ver com a oferta, não com a demanda. É um bom problema, mas não deixa de ser um problema, e precisaremos enfrentá-lo com seriedade para mantermos nossa credibilidade no setor. Por isso estamos desenvolvendo máquinas mais eficientes e mais rápidas para aumentar a nossa capacidade de produção. Testamos nossos blocos no ano passado, que foi oficialmente o nosso primeiro ano de atividade no mercado, e pretendemos expandir nosso portfólio de produtos em 2022. Nosso sonho é ter uma linha de montagem automatizada e um portfólio de produtos diversificado, para que possamos atender à demanda crescente e ampliar nossa participação de mercado. A ideia é desenvolver uma fórmula pronta para uso e replicar mundialmente o nosso processo de produção.
No Quênia, o setor informal é conhecido por copiar invenções e vendê-las a preços mais baixos. Isso é motivo de preocupação para a Gjenge?
Muito pelo contrário. No fundo, eu veria como uma homenagem se artesãos locais ou africanos replicassem a minha inovação. O desafio seria como estruturar isso, de modo que a Gjenge recebesse uma parte das receitas geradas por eles para cobrir o custo das atividades de pesquisa e desenvolvimento que nós realizamos.
O que a Gjenge está fazendo para garantir que outros possam produzir os seus blocos de pavimentação?
Estamos desenvolvendo manuais de treinamento para os diferentes setores de atividade, incluindo o setor jua kali (informal), o acadêmico, o privado e público. Assim, teremos certeza de que os usuários saberão o que fazer quando lhes dermos acesso a nossa tecnologia de produção.
Estamos nos digitalizando e pretendemos oferecer cursos de treinamento virtuais. Os interessados poderão se inscrever e ter acesso a nossos recursos de treinamento em reciclagem e economia circular. Começaremos ensinando as pessoas a desenhar e produzir as máquinas de que vão precisar.
E quanto a concorrentes empresariais de grande porte, que podem ampliar mais rapidamente a escala de suas operações e atingir um mercado maior?
Acredito que a melhor proteção que uma empresa pode ter é participação de mercado. Isso é fundamental. Se você tem uma participação de mercado significativa, as outras coisas acabam se encaixando. Também é indispensável ter uma marca de boa reputação, reconhecível e confiável. É isso que estamos construindo – uma marca sólida, que é sinônimo de qualidade, integridade e confiabilidade. Com essa identidade de marca, seremos capazes de proteger e expandir a nossa participação de mercado. E, uma vez conquistado isso, não fará diferença se empresas de grande porte quiserem entrar no mercado, porque elas não terão alternativa a não ser colaborar conosco, já que teremos o controle do mercado.
Que medidas os governos podem adotar para apoiar pequenas e médias empresas como a Gjenge?
Na África, o valor das patentes como mecanismo para se ganhar vantagem sobre a concorrência ainda é pouco reconhecido e explorado. Isso provavelmente se deve às nossas culturas. Tradicionalmente, a propriedade na África era comunitária e você não podia, como indivíduo, reivindicar direitos de propriedade intelectual sobre obras e processos criativos ou sobre equipamentos e ferramentas, mesmo que você os tivesse inventado. Nós criávamos e inventávamos as coisas para o bem comum de nossas comunidades. Acontece que o mundo mudou e precisamos deixar para trás essa visão tradicional da propriedade intelectual, que pode ter contribuído para atrasar a implementação da infraestrutura necessária à proteção dos direitos de PI. Na falta de uma sólida proteção de PI, os empreendedores não podem bobear. Precisamos ter uma grande participação de mercado e uma marca robusta. E é nisso que estamos trabalhando.
Como vocês atuam para promover a causa da energia renovável e como isso se relaciona com o negócio da Gjenge?
Neste mundo, é impossível sobreviver sem energia. Nossa dependência em relação aos combustíveis fósseis está se mostrando desastrosa para o clima. Além de poluentes, esses combustíveis são os maiores responsáveis pelo aquecimento do planeta. Na África, temos a opção de uma energia que é limpa, renovável e abundante. Nós apoiamos essa mudança na Gjenge e pretendemos satisfazer todas as nossas necessidades com energia solar, recorrendo à rede elétrica apenas em último caso. No longo prazo, esse é um caminho que faz sentido economicamente. A energia renovável é o futuro. Também é o nosso futuro, porque pretendemos atuar nessa área, gerando, transformando e até mesmo transmitindo energia renovável.
Que conselho você daria para os jovens que desejam construir um futuro melhor?
O meu conselho é simples: mãos à obra, moçada! Geralmente a parte mais difícil é o começo. Você precisa superar o medo do desconhecido, começar a fazer as coisas e deixar para lidar com os desafios depois. A única maneira de provar o valor de uma ideia é pôr mãos à obra. Não tem segredo.
A Revista da OMPI destina-se a contribuir para o aumento da compreensão do público da propriedade intelectual e do trabalho da OMPI; não é um documento oficial da OMPI. As designações utilizadas e a apresentação de material em toda esta publicação não implicam a expressão de qualquer opinião da parte da OMPI sobre o estatuto jurídico de qualquer país, território, ou área ou as suas autoridades, ou sobre a delimitação das suas fronteiras ou limites. Esta publicação não tem a intenção de refletir as opiniões dos Estados Membros ou da Secretaria da OMPI. A menção de companhias específicas ou de produtos de fabricantes não implica que sejam aprovados ou recomendados pela OMPI de preferência a outros de semelhante natureza que não são mencionados.