As marcas e o metaverso
Kathryn Park, Diretora, Strategic Trademark Initiatives, Connecticut, EUA
O que é o metaverso? Simplificando bastante as coisas, trata-se de um espaço virtual em que os usuários podem e poderão interagir e conectar-se uns com os outros de inúmeras maneiras – jogando, colaborando, comprando, explorando – sem precisar sair do conforto de seus sofás. Algumas dessas funcionalidades já estão disponíveis em plataformas de jogos.
A ideia é criar um sofisticado mundo do faz de conta, em que os consumidores experimentam virtualmente a vida. Entre as inúmeras possibilidades, as pessoas podem comprar produtos virtuais – isto é, simulacros online de artigos reais – para enfeitar seu avatar, ir a shows e eventos esportivos como VIPs virtuais, comprar obras de arte de alto valor artístico e financeiro, pilotar carros e iates virtuais, viajar para lugares exóticos, comer virtualmente em restaurantes de alta gastronomia e muito mais. O metaverso está continuamente em expansão.
Muitas dessas novas experiências ou produtos virtuais terão o atrativo adicional de ser um NFT, isto é, um token não fungível (saiba mais sobre propriedade intelectual e NFTs), uma criação digital única, irreproduzível. E montantes substanciais de valor não tão imaginário serão criados, com os consumidores dessa nova realidade virtual e aumentada gastando dinheiro de verdade, ainda que na forma de moedas digitais, para participar do metaverso.
Embora ainda esteja em desenvolvimento, o metaverso já tem um pé em diversos setores. O universo dos jogos, por exemplo, é um dos que encabeçam o desenvolvimento desse novo espaço. Nesses ambientes já é possível comprar objetos virtuais – como, por exemplo, os acessórios virtuais (conhecidos como “skins”) que os jogadores usam durante o jogo –, em transações concluídas com moedas virtuais que circulam entre os usuários da plataforma.
Algumas ligas esportivas estão ingressando no metaverso, e os torcedores já podem comprar cartas colecionáveis na forma de NFTs ou participar da próxima geração de eventos organizados por ligas de fantasy game. Quem quiser também pode ir a eventos musicais virtuais, como um show do rapper americano Travis Scott, por exemplo. E isso é só o começo. O metaverso deve continuar se expandindo, tornando-se um ambiente ainda mais fascinante para a sua comunidade de usuários.
A Meta, empresa comandada por Mark Zuckerberg e que controla o Facebook, vem se dedicando intensamente a atividades de desenvolvimento, na tentativa de se preparar para abocanhar para si as riquezas do metaverso. Mas outras empresas de tecnologia, como a Microsoft e as desenvolvedoras de jogos Nvidia e Roblox, estão igualmente ávidas por fincar suas bandeiras em todos os territórios do metaverso que forem capazes de conquistar.
Como acontece no mundo físico, muitos problemas jurídicos surgirão no metaverso, envolvendo temas que vão de privacidade e coleta de dados e políticas antitruste a práticas anticoncorrenciais, liberdade de expressão e proteção contra difamação, além de questões relativas à propriedade intelectual, como direitos de autor, patentes e marcas. Para quem é titular de marcas, será crucial proteger sua propriedade intelectual no metaverso, e a preparação para a vida nessa nova realidade imersiva exigirá a elaboração de estratégias jurídicas.
É essencial que os titulares de marcas que pretendem crescer no metaverso avaliem as alternativas para construir seu mercado virtual com os devidos registros de marca, estratégias robustas de fiscalização e licenças e condições de uso adequadas.
Proteção de marcas no metaverso – registros e outras particularidades
As empresas que planejam vender produtos e serviços virtuais de marca no metaverso devem depositar seus pedidos de registro de marca o quanto antes. Mas como uma empresa pode pedir proteção para tênis digitais que ostentam sua marca? Como proteger a marca de uma bolsa fabricada não com couro, tecido ou outros materiais, mas com códigos? Como descrever adequadamente produtos e serviços? Quais classificações usar?
Algumas empresas já vêm implementando programas abrangentes de registro de marcas no metaverso. Entre elas, há grandes fabricantes de tênis, como Nike e Converse, que recentemente depositaram uma série de pedidos de registro no Instituto de Marcas e Patentes dos Estados Unidos (USPTO). Como seria de esperar, empresas dos setores de moda, cosméticos, artigos esportivos e entretenimento também estão depositando pedidos de registro para suas marcas no contexto da comercialização virtual. E, embora ainda devam ser submetidos ao devido exame, esses pedidos oferecem pistas sobre os possíveis caminhos a serem seguidos por quem deseja obter registros de marca para produtos virtuais.
Aparentemente, os pedidos que vêm sendo depositados pelas empresas relacionam-se às seguintes classes de produtos (saiba mais sobre a classificação internacional de produtos e serviços ): produtos virtuais que podem ser baixados no computador do usuário, isto é, programas informáticos (classe 9), serviços prestados por lojas de varejo de produtos virtuais (classe 35), serviços de entretenimento (classe 41), NFTs e produtos virtuais online que não podem ser baixados no computador do usuário (classe 42) e serviços financeiros, incluindo tokens digitais (classe 36). Como esses pedidos estão sendo examinados por diferentes institutos de marcas, as descrições dos produtos e serviços, assim como as questões de classificação, provavelmente passarão por uma padronização, produzindo diretrizes que servirão para pedidos posteriores.
Na maior parte das jurisdições, quem primeiro deposita um pedido de registro detém os direitos da marca. E, mesmo nos Estados Unidos, onde o uso comercial tem prioridade sobre uma data antecedente de depósito, o depósito inicial com base em uma declaração de intenção de uso é vital, pois é a data do depósito que determinará a data do primeiro uso, mesmo que o uso efetivo aconteça posteriormente.
Previsivelmente, agentes mal-intencionados vêm tentando usurpar valiosos direitos sobre marcas com depósitos preventivos. Os pedidos espúrios de registro de marcas no metaverso estão se multiplicando. Nos Estados Unidos, por exemplo, recentemente foram identificados pedidos espúrios de registro no metaverso para grifes de alta-costura, como Prada e Gucci. Esses pedidos são um grande desafio para os titulares de marcas, pois combater os solicitantes de má-fé tem um custo: despesas judiciais potencialmente exorbitantes e consumo de recursos corporativos.
Nem todas as empresas estão interessadas em usar suas marcas no metaverso. A Hermès, por exemplo, associa sua marca ao uso sofisticado de materiais como couro e seda em artigos feitos à mão, que são altamente valorizados pela sua clientela. Para a empresa, oferecer artigos virtuais com a marca Hermès constituiria um verdadeiro atentado contra a própria natureza da grife. Isso não impediu, porém, que um metabucaneiro pusesse à venda algumas peças Hermès virtuais.
No fim de 2021, a Hermès contestou a venda da coleção de NFTs “MetaBirkins” no OpenSea. Criados pelo artista Mason Rothschild, os tokens eram virtualmente idênticos às desejadas e inconfundíveis bolsas Birkin comercializadas pela grife. No mundo real, uma bolsa Birkin chega a custar milhares de dólares. Os NFTs MetaBirkins também foram comercializados por somas vultosas, tendo supostamente movimentado quase US$ 1 milhão no OpenSea. Inconformada, a Hermès recorreu à Justiça.
Uma empresa que não pretenda usar suas marcas no metaverso teria condições de demonstrar que essas marcas são marcas de renome, protegendo-as, assim, de eventuais usos nesse novo mundo virtual? Uma grife famosa como a Hermès provavelmente é capaz de argumentar que o uso não autorizado de seus artigos no metaverso compromete a reputação da marca. Para os titulares de marcas não tão conhecidas, no entanto, o caminho a ser trilhado juridicamente pode ser bem mais tortuoso. É possível que eles sejam obrigados a recorrer a uma análise do risco de confusão, que fundamenta as alegações de violação de marca. Em casos assim, sempre se está sujeito a receber uma sentença desfavorável. O juiz pode se concentrar em parâmetros restritos, avaliando unicamente se os respectivos produtos e serviços – virtuais e reais – são similares, ou se os modos de comercialização são totalmente distintos. O mesmo pode acontecer com a decisão dos institutos de marcas no que se refere a eventuais oposições a pedidos de registro de produtos virtuais. Os titulares de marcas e seus advogados talvez precisem avaliar se devem ajuizar ações por publicidade enganosa ou, em jurisdições de direito comum (common law), se devem alegar apropriação indevida e fraude comercial.
A fiscalização de violações de marca pode ser ainda mais difícil no metaverso. Os mercados de NFTs já são um mar de fraudes, e os usuários têm manifestado sua insatisfação. É grande a pressão para que o OpenSea e outros mercados de NFTs exerçam maior controle sobre suas operações. Nesse cenário de faroeste, são muitos os riscos para as marcas. Em primeiro lugar, as vendas impulsionadas pela reputação de uma marca não necessariamente reverterão em receitas para seu titular, como mostra o exemplo das MetaBirkins. Em segundo lugar, os consumidores que adquirem NFTs fraudulentos provavelmente ficarão bastante descontentes quando virem seu investimento desaparecer, caso o token pelo qual pagaram somas consideráveis não seja um produto de marca autorizado.
Tudo indica que o metaverso se expandirá cada vez mais e terá uma quantidade imensa de participantes. Os instrumentos de controle certamente serão ampliados e incorporarão mecanismos capazes de realizar varreduras para identificar eventuais usos de marca fraudulentos. O relacionamento com os clientes é um recurso que as marcas podem explorar para fiscalizar usos indevidos. E, pelo menos por ora, as ações de aplicação de direitos precisarão seguir a rota tradicional das notificações extrajudiciais, eventualmente seguidas de processos judiciais.
Para quem é titular de marcas, será crucial proteger sua propriedade intelectual no metaverso, e a preparação para a vida nessa nova realidade imersiva exigirá a elaboração de estratégias jurídicas.
O esgotamento de direitos se aplica à venda de produtos virtuais de marca?
Quem adquire um bem tangível, seja uma peça de roupa, um eletrodoméstico ou um automóvel, tem o direito de fazer o que bem entender com o produto adquirido. Pode modificar a aparência ou a funcionalidade do produto, doá-lo, revendê-lo e até mesmo destruí-lo. A doutrina do esgotamento dos direitos nega aos titulares de marcas qualquer controle sobre seus produtos depois que eles são comercializados. Mas o que acontece quando o produto é um item virtual, e não um bem tangível? No momento, há mais perguntas do que respostas. Por exemplo, que direitos o comprador tem sobre o artigo virtual que adquiriu e, talvez mais importante, que direitos ele acha que tem? Os direitos do titular da marca se esgotam no momento da venda, ou ele continua a ter direitos sobre a propriedade intelectual transferida? As obrigações do titular da marca para com o comprador perduram indefinidamente? E como ficam essas obrigações em relação a compradores subsequentes?
Os videogames, como o Fortnite, são os progenitores do metaverso, e há tempos se dedicam à venda de diferentes tipos de acessórios virtuais – de trajes e equipamentos a itens cosméticos – com que os jogadores podem adornar seus avatares. Portanto, o modelo adotado no universo dos jogos pode ser instrutivo para o metaverso. Esses acessórios virtuais não expiram. Eles “pertencem” aos jogadores, desde que, obviamente, estes continuem a participar em novas versões do Fortnite. A titularidade desse tipo de propriedade, que está condicionada à participação em uma plataforma em troca do pagamento de sucessivas taxas de licenciamento, lembra mais uma licença do que a transferência propriamente dita de um produto, como no mundo real. O que aconteceria se os “jardins murados” da internet atual desaparecessem? Será que esses acessórios virtuais se tornariam então uma propriedade efetiva do comprador, algo que ele poderia usar em todo o metaverso, e não apenas em uma plataforma específica? Quais são as expectativas de uma pessoa que usa um tênis virtual da Nike ou que leva a tiracolo uma bolsa Gucci virtual?
Os NFTs exigem consideração especial em termos de titularidade. Por serem itens virtuais únicos, irreproduzíveis, eles podem ser vendidos literalmente por milhões de dólares, como aconteceu com um NFT do artista Beeple, que foi leiloado pela Christie’s por US$ 69 milhões para um colecionador do metaverso. Na eventualidade de divergências, os preços astronômicos pagos por essas peças virtuais certamente darão margem a desgastantes batalhas judiciais.
É essencial que os titulares de marcas que pretendem crescer no metaverso avaliem as alternativas para construir seu mercado virtual com os devidos registros de marca, estratégias robustas de fiscalização e licenças e condições de uso adequadas (tomando o cuidado de evitar o juridiquês para não afugentar os usuários). Enfrentadas sem o devido cuidado, essas questões de marca podem abalar a reputação das empresas, caso os consumidores se decepcionem com a maneira como os produtos virtuais de marca são comercializados no metaverso. Como acontece nas redes sociais, um passo em falso no metaverso tende a ter consequências negativas imediatas para as marcas.
Sobre a Classificação de Nice
Quando uma pessoa física ou jurídica registra uma marca, essa marca deve estar relacionada a produtos e serviços específicos, de acordo com uma classificação internacional, conhecida como Classificação de Nice, que é regularmente atualizada. A Classificação de Nice é composta por 45 categorias, das quais 34 estão relacionadas a produtos e 11 a serviços. A Classificação de Nice foi criada após a celebração do Acordo de Nice relativo à Classificação Internacional de Produtos e Serviços para o Registro de Marcas, em junho de 1957.
A Revista da OMPI destina-se a contribuir para o aumento da compreensão do público da propriedade intelectual e do trabalho da OMPI; não é um documento oficial da OMPI. As designações utilizadas e a apresentação de material em toda esta publicação não implicam a expressão de qualquer opinião da parte da OMPI sobre o estatuto jurídico de qualquer país, território, ou área ou as suas autoridades, ou sobre a delimitação das suas fronteiras ou limites. Esta publicação não tem a intenção de refletir as opiniões dos Estados Membros ou da Secretaria da OMPI. A menção de companhias específicas ou de produtos de fabricantes não implica que sejam aprovados ou recomendados pela OMPI de preferência a outros de semelhante natureza que não são mencionados.