Arbitragem e mediação: solucionando conflitos relativos ao licenciamento de patentes no mundo da tecnologia padronizada
Margarita Kato, Gerente Jurídica, Centro de Arbitragem e Mediação da OMPI
Com nossos smartphones, podemos escutar música enquanto nos deslocamos de um lugar para outro, conversar com um amigo que está do outro lado do planeta e até imprimir um documento. Dois fenômenos importantes tornaram essas coisas possíveis: avanços tecnológicos impressionantes e a padronização da tecnologia, que viabiliza a comunicação entre os nossos aparelhos. O desenvolvimento de padrões tecnológicos tem por objetivo criar um panorama de negócios eficiente e uniforme para a comercialização dessas tecnologias. Na prática, porém, é comum surgirem ineficiências de mercado que podem atravancar os negócios. Os mecanismos de arbitragem e mediação são soluções úteis para a superação desses obstáculos.
Padronização garante a interoperabilidade
A tecnologia padronizada viabiliza a interoperabilidade entre diferentes produtos. Embora frequentemente passem despercebidos, esses padrões são responsáveis por garantir uma comunicação efetiva entre os nossos dispositivos digitais. A tecnologia 5G, por exemplo, é um padrão de comunicação de redes móveis. Os dispositivos que adotarem esse padrão poderão se beneficiar da infraestrutura mundial que viabiliza o uso do 5G, com velocidades mais elevadas na transmissão de dados, latência ultrabaixa, maior confiabilidade e acesso a uma gigantesca capacidade de rede. Segundo algumas estimativas, o padrão 5G pode envolver até 100 mil patentes.
Outros padrões tecnológicos de destaque envolvem a tecnologia de WiFi, a fabricação de semicondutores e até mesmo as soluções que permitem que alguém compartilhe sua localização automaticamente ao fazer uma chamada de emergência. As patentes que compõem um padrão são chamadas de “patentes essenciais” (SEPs, na sigla em inglês). Todos os dispositivos que adotarem o padrão 5G, os quais podem incluir uma infinidade de produtos, de consoles de videogames a máquinas industriais e dispositivos de saúde vestíveis, precisarão licenciar as tecnologias patenteadas, ou SEPs, que compõem o padrão 5G.
Desenvolvimento e gestão de padrões
São muitos os atores envolvidos no desenvolvimento e definição de um padrão. Os padrões das tecnologias 3G e 4G, por exemplo, foram criados pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), que, junto com seus membros, atualmente está desenvolvendo padrões internacionais para as redes 5G. O Instituto Europeu de Padrões de Telecomunicações (ETSI) também vem desenvolvendo padrões para a tecnologia 5G e dispõe de uma série de componentes tecnológicos patenteados, que serão integrados a sistemas 5G futuros.
Os titulares de patentes cuja tecnologia passa a ser incorporada a esse tipo de padrão encontram-se em uma situação invejável, pois sabem que haverá um mercado enorme para suas tecnologias. O titular de uma patente que se torna componente do padrão 5G, por exemplo, sabe que sua tecnologia precisará ser licenciada por todos os fabricantes que pretendam usar o 5G. No entanto, esse cenário também aumenta o risco de que os titulares de patentes essenciais decidam se aproveitar de sua posição vantajosa e exigir taxas de royalties mais elevadas do que seria razoável.
Licenças FRAND garantem condições justas
Para solucionar esse problema e garantir o uso, em bases justas, das tecnologias associadas às patentes essenciais, os órgãos de normatização criaram as licenças “FRAND” – sigla em inglês que alude ao princípio de que as condições dessas licenças devem ser “justas, razoáveis e não discriminatórias”. Os titulares de patentes que tenham interesse em incluir suas tecnologias em determinado padrão devem concordar em licenciá-las em condições justas, razoáveis e não discriminatórias, pois, caso contrário, os licenciados podem requerer na Justiça o estabelecimento de uma taxa de licenciamento correspondente a essas condições. Da mesma forma, os licenciados que se recusam a aceitar os termos da licença FRAND e continuam a usar a tecnologia patenteada podem ser processados por violação de patente.
Destrinchando o significado das licenças FRAND
E o que, afinal, significam condições “justas, razoáveis e não discriminatórias”? O elemento “não discriminatório” não deixa muita margem a dúvidas: os titulares de patentes concordam em licenciar suas tecnologias para qualquer pessoa, abrindo mão do direito de impedir que alguém faça uso delas. No entanto, as condições das licenças FRAND também devem ser “justas e razoáveis”, dois conceitos intrinsecamente subjetivos. E é aí que surgem os problemas. Considere-se, por exemplo, uma taxa de licenciamento que à primeira vista parece elevada demais. Será que, no fundo, seu valor não é razoável quando se considera que outras patentes, não incluídas em um padrão, também estão sendo licenciadas? Ou será que não há diferenças justificáveis entre taxas de licenciamento devido ao fato de elas serem oferecidas em diferentes estágios da cadeia de suprimentos? A taxa cobrada dos fabricantes de componentes elétricos individuais, que atuam nos primeiros elos da cadeia, talvez não deva mesmo ser equivalente à cobrada das empresas situadas na última etapa, em que o produto é finalizado para ser comercializado no mercado. São considerações como essas que fazem com que a definição do que é “justo e razoável” varie conforme a especificidade da conjuntura de cada negociação.
Algumas negociações de licenças FRAND acabam inevitavelmente indo parar na Justiça, devido a discordâncias entre as partes quanto aos termos que efetivamente constituem uma licença FRAND. Ocorre que essas disputas judiciais podem se tornar extremamente dispendiosas e complexas. Em alguns casos, as empresas envolvidas ajuízam ações umas contra as outras em diferentes países, requerem liminares e até mesmo retardam o andamento do processo com objetivos estratégicos. Há também a percepção, justificada ou não, de que a Justiça de certos países é mais favorável aos titulares de patentes, ao passo que em outras jurisdições os favorecidos são os implementadores. Em vista disso, as partes são incentivadas a recorrer judicialmente em determinado país em detrimento de outros, dependendo de seus objetivos, enquanto tentam impedir que suas contrapartes ajuízem ações em jurisdições que lhes são supostamente menos favoráveis. Essa dinâmica não traz benefícios para ninguém, mas quem mais sai perdendo é o usuário, que pode se ver obrigado a absorver os custos desse estado de coisas.
Interação com as Justiças nacionais
É por esse motivo que os juízes cada vez mais recomendam que as partes recorram a mecanismos de arbitragem e mediação para solucionar seus conflitos relacionados a patentes essenciais. No caso InterDigital v ZTE e Nokia , por exemplo, o Tribunal Federal do Distrito de Delaware (EUA) ponderou que a arbitragem seria uma alternativa adequada. Nas palavras do juiz responsável pelo caso: “Não me parece que o litígio seja um meio particularmente efetivo para que, assim desejando, as partes cheguem a um acordo. Compreendo que as partes não estejam em condições de entrar em acordo quanto ao escopo da arbitragem. Se estivessem, ou se se dispusessem a concordar em deixar a definição desse escopo a cargo do árbitro, este poderia ser um caminho viável a seguir.”
O Centro de Arbitragem e Mediação da OMPI, que presta diversos serviços de arbitragem e mediação, tem registrado um aumento no número de casos envolvendo licenças FRAND, sobretudo no número de casos de mediação envolvendo licenças FRAND. A apresentação de pedidos de mediação ao Centro da OMPI pode ter valor estratégico para as partes, pois um elemento fundamental no licenciamento FRAND é que o licenciante demonstre sua “disposição para licenciar”. Dependendo da jurisdição, a concordância com o processo de mediação é um dos fatores considerados pela Justiça ao determinar essa disposição para licenciar. Tem-se observado no Centro da OMPI a atuação de partes que procuram fazer esse tipo de uso sistemático dos serviços de mediação da OMPI, apresentando numerosas solicitações de mediação como forma de demonstrar sua disposição para fazer um acordo.
A mediação pode ajudar as partes a solucionar seus conflitos com confidencialidade e foco nos interesses comerciais.
Os benefícios dos mecanismos de mediação e arbitragem
O uso dos mecanismos de mediação e arbitragem proporciona outros benefícios notáveis.
A mediação pode ajudar as partes a solucionar seus conflitos com confidencialidade e foco nos interesses comerciais. Durante um procedimento de mediação, o mediador conversa sobre o conflito com as partes para compreender melhor o ponto de vista individual de cada uma delas na controvérsia. As informações coletadas são usadas pelo mediador para ajudar as partes a chegar a um acordo ou para sugerir possíveis caminhos a serem seguidos.
O foco não é a análise jurídica do problema, e sim a identificação de benefícios comerciais mútuos para as partes. E este é um benefício real. Em vários casos de conflitos mediados pelo Centro da OMPI, as partes não só chegaram a um acordo como também celebraram novos acordos comerciais.
A Justiça de muitas jurisdições tem reconhecido os benefícios da mediação. Os Tribunais de Propriedade Intelectual da China, por exemplo, têm encaminhado casos de violação de patentes no segmento de tecnologias de informação e comunicação para a Mediação da OMPI. Por sua vez, nos Estados Unidos e na Alemanha, os tribunais especializados em propriedade intelectual têm se preocupado, a cada etapa processual, em incentivar as partes a buscar mediação. O Instituto de Marcas e Patentes dos Estados Unidos (USPTO) recentemente também expressou seu apoio aos mecanismos de mediação e arbitragem, estabelecendo uma parceria com o Centro da OMPI para facilitar a resolução de conflitos envolvendo patentes essenciais.
O valor e o custo dos conflitos envolvendo licenças FRAND
É comum o entendimento equivocado de que no cerne dos conflitos relacionados com licenças e negociações FRAND estão portfólios de patentes de valor astronômico. Na realidade, nem sempre é assim. Para muitas pequenas e médias empresas que operam nessa área, os valores em jogo em licenças FRAND não justificam os gastos e o tempo que uma ação judicial costuma consumir. A mediação é uma alternativa acessível, em que é possível manter os custos baixos. No Centro da OMPI, por exemplo, muitos casos de mediação não exigem do mediador mais do que aproximadamente 15 horas de trabalho. Considerando que os honorários desses profissionais variam de US$ 300 a US$ 600 por hora e que o custo é dividido entre as partes, conclui-se que a mediação pode ser uma opção bastante acessível, mesmo que as negociações não resultem em um acordo. De fato, em duas mediações recentes envolvendo licenças FRAND, ainda que não tenham chegado a um acordo definitivo, as partes conseguiram reduzir significativamente os pontos de discordância. As mediações diziam respeito a casos pendentes nas Justiças europeia e chinesa. Graças à natureza confidencial da mediação da OMPI, as partes tiveram acesso a informações sensíveis, como as condições estabelecidas em licenças comparáveis, e chegaram a um acordo em relação a algumas questões.
Solução para evitar processos paralelos
Um último aspecto a ser observado é que, por serem procedimentos consensuais, as mediações podem ser abandonadas a qualquer momento por qualquer das partes. Nos casos em que desejam uma solução de caráter mais irrevogável, as partes podem optar pela arbitragem, que oferece diversas vantagens em relação ao litígio judicial. Quando, por exemplo, uma parte alega que suas patentes foram violadas em várias jurisdições, são duas as opções que se apresentam à sua frente: recorrer à Justiça em cada um desses países ou renunciar à aplicação de seus direitos em alguns deles. Já em se tratando de um procedimento de arbitragem, as partes podem acordar uma consolidação de todas as possíveis reivindicações em todas as jurisdições. Isso elimina a incerteza criada pelo uso amplo de liminares, em que uma parte pode requerer uma medida inibitória conhecida como anti-suit injunction para impedir que sua contraparte ajuíze ações na Justiça de outros países. No entanto, o que pode acontecer em conflitos envolvendo licenças FRAND é que a contraparte pode acabar requerendo sua própria anti-suit injunction. Essas medidas inibitórias conflitantes criam custos e atrasos adicionais, que podem ser evitados com os procedimentos de arbitragem (e mediação), em que as partes têm a possibilidade de solucionar seus conflitos e celebrar confidencialmente um contrato de licença mundial.
Como na Justiça, também na arbitragem as partes contam com medidas cautelares
Outro equívoco comum é a noção de que, ao optar por um procedimento de arbitragem, as partes devem renunciar aos instrumentos jurídicos disponíveis na Justiça de cada país, como liminares, medidas para a preservação de ativos e exigência de depósito de garantia. No entanto, o Regulamento de Arbitragem da OMPI prevê que esse tipo de medida pode ser concedido por um tribunal arbitral, e as partes também têm permissão para pleitear medidas cautelares junto às autoridades judiciárias. Em outras palavras, as partes podem recorrer a uma série de instrumentos que costumam ser incorretamente associados somente ao litígio judicial.
Os juízes cada vez mais recomendam que as partes recorram a mecanismos de arbitragem e mediação para solucionar seus conflitos relacionados a patentes essenciais.
Considerando-se o incentivo das autoridades judiciárias ao uso de mecanismos de arbitragem e mediação em conflitos envolvendo licenças FRAND, a expectativa é que as partes recorram cada vez mais a esses instrumentos para solucionar seus conflitos. Isso trará benefícios tanto para as partes envolvidas como para os usuários finais, que são os que acabam arcando com os custos dos conflitos envolvendo esses tipos de licenças.
Mais informações sobre os serviços prestados pelo Centro da OMPI estão disponíveis na internet. Eventuais dúvidas podem ser encaminhadas para o e-mail: arbiter.mail@wipo.int.
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