Pirataria de obras protegidas por direitos de autor e crimes cibernéticos: os desafios para fazer valer as leis de propriedade intelectual na Índia
Arpan Banerjee e Neil Gane, Aliança para a Criatividade e o Entretenimento (ACE), Hong Kong, China
Nos últimos anos, tem crescido no mundo inteiro a preocupação com a pirataria de conteúdos online. As razões são conhecidas: a proliferação das plataformas ilegais de streaming e dos sites que disponibilizam arquivos em formato torrent; os serviços de hospedagem de sites negligentes, que ignoram as atividades de pirataria desenvolvidas em seus servidores; e a facilidade e o anonimato proporcionados por certos intermediários online. Um problema adicional diz respeito aos elos entre a pirataria e os cibercrimes de alta tecnologia. Embora as autoridades se vejam às voltas com essas questões no mundo inteiro, a situação é particularmente preocupante na Índia, onde uma indústria cinematográfica mundialmente famosa é prejudicada pela pirataria generalizada e pelas dificuldades em fazer valer as leis de propriedade intelectual.
O elo entre pirataria e crimes cibernéticos
Em 2010, o Comitê sobre Pirataria (CoP) do governo indiano vinculou a pirataria à geração de receitas polpudas e ao fechamento de postos de trabalho. O órgão previu com exatidão que o advento dos smartphones e das redes 3G “facilitaria imensamente as atividades relacionadas à pirataria de obras cinematográficas”. De fato, atualmente, os serviços premium de streaming são vítimas frequentes de ações de pirataria em larga escala. Como em outros países, as quadrilhas de pirataria indianas lucram sobretudo com a cobrança de assinaturas ou as receitas geradas por anúncios publicitários. Por mais desabusado que seja, o primeiro método é autoexplicativo. Já os anúncios publicitários têm efeitos deletérios mais dissimulados, devido à presença de anunciantes de alta periculosidade que se aproveitam para promover links suspeitos. Um monitoramento de filmes e programas de TV pirateados na Índia, realizado pela McAfee, mostra que esses links são tentativas de “instalar malwares ou roubar senhas e informações pessoais” do internauta.
Para entender mais a fundo o problema, entrevistamos o tenente-general Rajesh Pant, respeitado veterano da área de cibersegurança militar, que atualmente comanda a Coordenação Nacional de Cibersegurança (NCSC) do governo indiano. Pant esclarece: “Os malwares são o ponto de partida de todos os nossos ciberataques, sejam eles fraudes financeiras, pirataria, roubos de dados ou ataques contra setores estratégicos. E tudo começa com uma ‘armadilha’, o lançamento de uma isca para induzir a pessoa a clicar em um link malicioso”.
Pant cita algumas iniciativas governamentais recentes para lidar com essa ameaça, como a criação do Catálogo Nacional de Malwares e do Centro Indiano de Coordenação em matéria de Crimes Cibernéticos (I4C), que administra o Portal Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, onde os casos de pirataria – com ou sem a presença de um elo com malwares – podem ser denunciados. O especialista em cibersegurança acrescenta que o combate às práticas de pirataria e aos ataques de malware tem bases distintas, enquadrando-se no âmbito, respectivamente, da Lei de Direitos de Autor, de 1957, e da Lei da Tecnologia da Informação, de 2000.
Combate às atividades criminosas
De modo geral, em que pese a extraordinária expertise do NCSC e do I4C, a responsabilidade pela investigação dos crimes de pirataria cabe às autoridades estaduais do país, dada a natureza federativa da organização política da Índia. Isso significa que o êxito das ações antipirataria normalmente é determinado por esforços subnacionais, e não nacionais. Nesse sentido, o CoP observa que a pirataria “ocupa posição excessivamente secundária na escala de prioridades dos órgãos responsáveis pela aplicação da lei”. Fazendo eco a essa avaliação, a Aliança Internacional de Propriedade Intelectual reitera que a situação da repressão ao crime na Índia é “particularmente desanimadora”, caracterizando-se pela “falta de empenho e a lentidão excessiva das autoridades locais”.
O cerco aos autores de crimes de pirataria fora dos grandes centros urbanos parece particularmente problemático. Considere-se, por exemplo, o encaminhamento dado a um caso de pirataria de grande repercussão que ocorreu na cidade de Jabalpur (Rahul Mehta v State of Madhya Pradesh (2015)), cujos autos tivemos a oportunidade de consultar. Em 2015, a polícia de Jabalpur prendeu os integrantes de uma quadrilha responsável pela produção e distribuição de cópias piratas do filme Baahubali, responsável por uma das maiores bilheterias da história do cinema indiano. Os acusados foram posteriormente libertados sob fiança e até hoje o caso não foi julgado, permanecendo paralisado desde 2017. Por incrível que pareça, ainda em 2017 os mesmos criminosos tornaram a ser presos, desta vez na cidade de Hyderabad, pela produção e distribuição de cópias piratas de Baahubali 2, continuação do primeiro longa que também foi sucesso de público e bilheteria. Ainda que em decisão recente, no contexto do caso Knit Pro International v State of Delhi (2022), a Suprema Corte da Índia tenha declarado a violação de direitos de autor um crime “cognoscível” e “inafiançável” (o que significa que a polícia não precisa de um mandado de prisão para realizar detenções e que a possibilidade de pagamento de fiança para responder ao processo em liberdade depende de decisão judicial), o impacto concreto da decisão na atuação das autoridades policiais é incerto.
Muitos titulares de direitos reconhecem os benefícios da ação da polícia para desestimular a prática de crimes contra a propriedade intelectual.
O modelo da MIPCU
Em âmbito estadual, está em andamento uma nova experiência no combate a crimes contra a propriedade intelectual. Em 2017, o governo do estado de Maharashtra (cuja capital Mumbai abriga os principais estúdios de Bollywood) criou uma unidade policial especialmente dedicada à repressão a esse tipo de crime: a Unidade de Crimes contra a Propriedade Intelectual de Maharashtra (MIPCU), oferecendo aos titulares de ativos de propriedade intelectual um mecanismo mais eficaz para fazer valer seus direitos.
A MIPCU é uma divisão do Maharashtra Cyber, o departamento da polícia de Maharashtra responsável pelo combate aos crimes cibernéticos, estando estruturada como uma parceria público-privada. Para conhecer melhor sua atuação, visitamos o Maharashtra Cyber e conversamos com os policiais atualmente no comando do departamento: o inspetor-geral especial Yashasvi Yadav e o superintendente Sanjay Shintre. Também estivemos com os profissionais de informática da MIPCU, que desempenham um papel fundamental nas investigações e operações de combate aos cibercrimes, e os entrevistamos por meio de um questionário por escrito (que eles preferiram responder coletivamente, como “Equipe da MIPCU”).
Yadav admite que a pirataria é “generalizada” na Índia. O inspetor-geral também confirma o elo entre pirataria e malwares, afirmando: “Alguns provedores de malwares usam conteúdos pirateados como isca. Sua atividade principal não é a pirataria. O que eles querem é infectar os computadores dos usuários, roubar dados e instalar programas espiões, os chamados spywares. As pessoas caem na armadilha, atraídas por softwares e conteúdos gratuitos”. Yadav acrescenta que “não é tarefa fácil” identificar esses atores maliciosos, que frequentemente recorrem a conexões VPN e navegadores Tor, entre outras artimanhas tecnológicas, para não deixar rastros.
Shintre, por sua vez, diz que os cibercriminosos às vezes cometem deslizes. Como exemplo, ele cita o caso do ThopTV, um popular aplicativo de pirataria financiado pela cobrança de taxas de assinatura. Em 2021, o mentor do aplicativo inadvertidamente revelou sua localização, permitindo que agentes do Maharashtra Cyber o capturassem. Curiosamente, a prisão aconteceu em Hyderabad, capital do estado vizinho de Telangana. Alguns meses depois, em maio de 2022, um cúmplice do criminoso foi preso pelo Maharashtra Cyber nas proximidades de Calcutá, no estado de Bengala Ocidental. Segundo Yadav e Shintre, o Maharashtra Cyber tem competência para fazer esse tipo de intervenção fora de sua área de jurisdição nos casos que envolvem a distribuição de conteúdo pirateado no interior do estado. Para isso, porém, é necessário antes que seja registrado um boletim de ocorrência em Maharashtra. Em outras palavras, as ações fora do estado só podem ser realizadas quando o titular dos direitos de autor apresenta uma queixa criminal, com base na qual a polícia registra o boletim de ocorrência. O ônus da apresentação da queixa é do titular dos direitos de autor.
Embora ofereça vantagens em determinados casos, a MIPCU também tem limitações. Em primeiro lugar, a unidade não tem autoridade para tirar diretamente do ar os sites ou aplicativos de pirataria. Esse tipo de ação é da competência administrativa do Ministério de Eletrônica e Tecnologia da Informação (MEITY). Além disso, as respostas da Equipe da MIPCU ao nosso questionário indicam que a unidade depende, em grande medida, do cumprimento voluntário das ordens que emite. A Equipe da MIPCU relata várias dificuldades nesse sentido, da falta de colaboração por parte de serviços de hospedagem sediados em “geografias párias” fora da Índia a plataformas de pirataria cujo acesso é restrito a membros, não sendo visíveis ao público.
Outras limitações mencionadas incluem a morosidade no bloqueio a sites e aplicativos nos fins de semana, com situações em que leva até duas semanas para que aplicativos móveis sejam desativados. Yadav observa ainda que, apesar da onipresença da pirataria online, os titulares de direitos não parecem muito empenhados em registrar boletins de ocorrência no Maharashtra Cyber. “São poucos os que aparecem por aqui”, diz. Para o inspetor-geral, essa apatia dificulta a ampliação do trabalho da polícia nessa área.
Muitos titulares de direitos, porém, reconhecem os benefícios da ação da polícia para desestimular a prática de crimes contra a propriedade intelectual. Anil Lale, advogado da empresa de mídia e entretenimento Viacom 18, diz que já apresentou inúmeras queixas ao Maharashtra Cyber, inclusive a que serviu de estopim para a ação da polícia contra o aplicativo ThopTV (caso em que, segundo Lale, o departamento comandado por Yadav e Shintre agiu de forma “louvável”).
O advogado não se dispõe a falar sobre a estratégia de outras desenvolvedoras de conteúdo, mas levanta algumas hipóteses para explicar o baixo número de boletins de ocorrência registrados. Uma delas diz respeito aos problemas estruturais que afetam as instituições judiciais e policiais, outra é a dificuldade de processar quadrilhas de pirataria que atuam no exterior e uma terceira causa possível é a tendência de muitos titulares de direitos a dar mais prioridade (compreensivelmente) à remoção dos conteúdos pirateados do que à punição dos criminosos. Lale também acredita que o fato de a MIPCU ser um órgão estadual inevitavelmente impõe restrições a seus poderes e recursos. Em sua opinião, esses problemas poderiam ser superados com a criação de um órgão nacional de maior porte, com poderes para receber e investigar queixas em todo o território indiano.
O combate à pirataria online na Índia (e em outros países) é […] prejudicado por desafios universais e locais.
Aplicação de direitos no âmbito civil
Na esfera cível, a situação na Índia parece mais auspiciosa. Em muitos estados, foram estabelecidos tribunais que adotam ritos processuais simplificados para acelerar a resolução dos casos, e o Tribunal Superior de Délhi recentemente criou uma Divisão de Propriedade Intelectual. A abordagem do Tribunal Superior de Délhi em relação à pirataria de filmes na internet (habilmente sintetizada pela ministra Pratibha Singh, da Divisão de Propriedade Intelectual, em recente apresentação na OMPI [PDF]) é especialmente digna de nota. No julgamento do caso UTV Software Communications Ltd. v 1337X.to (2019), que teve grande repercussão nacional, o Tribunal reconheceu a legitimidade das liminares “dinâmicas” (para impedir que se troque sucessivamente a URL de uma página) e especificou critérios para determinar em que momento se deve promover o bloqueio de “sites fraudulentos” (isto é, sites que “fundamental ou predominantemente compartilham conteúdos que violam direitos de propriedade intelectual”). O tenente-general Rajesh Pant, do NCSC, explica que funcionários do MEITY se reúnem regularmente, entre si e com intermediários, para implementar essas ordens de bloqueio. O MEITY instrui o Departamento de Telecomunicações a determinar que os provedores de serviços de internet realizem o bloqueio dos respectivos endereços IP, ação que Pant diz poder ser realizada “em questão de minutos”. Mais recentemente, ao julgar o caso Neetu Singh v Telegram (2022), o Tribunal Superior de Délhi determinou que o aplicativo de mensagens Telegram prestasse informações em juízo sobre os responsáveis por fazer o upload de conteúdos pirateados.
No entanto, até a ordem judicial ser expedida e posteriormente executada, a proliferação dos conteúdos pirateados possivelmente já ocorreu. Essa deficiência (que não é exclusiva da Índia) tem especial relevância no caso dos streamings piratas de programas ao vivo e eventos esportivos. Os custos jurídicos, que podem ser proibitivamente elevados para empresas de menor porte, constituem outro importante obstáculo à aplicação de direitos de no âmbito civil.
O caminho à frente
O combate à pirataria online na Índia (e em outros países) é evidentemente prejudicado por desafios universais e locais. Os desafios universais vão da sofisticação tecnológica dos criminosos cibernéticos a problemas de jurisdição internacional. Já os desafios locais dizem respeito principalmente a problemas estruturais das instituições policiais e do sistema judiciário criminal. Realisticamente, o governo indiano talvez só tenha condições de enfrentar essa segunda ordem de problemas.
O CoP observa que a pirataria é equivocadamente vista na Índia como um crime de baixo risco e elevadas recompensas, salientando que os órgãos responsáveis pela aplicação da lei estariam mais preocupados em enfrentar “atividades criminosas hediondas”. Entretanto, se os elos entre pirataria e malwares fossem expostos de forma mais clara – por meio de pesquisas, conferências e programas de treinamento para policiais –, a pirataria automaticamente galgaria algumas posições na hierarquia dos crimes graves, recebendo maior atenção das autoridades. A tarefa poderia muito bem ser assumida pela Célula para a Promoção e Gestão de Direitos de Propriedade Intelectual (CIPAM), órgão de treinamento e conscientização criado pelo governo indiano em 2016. O site da agência mostra que a CIPAM já organizou diversos workshops educacionais e incluiu estrelas de Bollywood em uma de suas campanhas antipirataria.
Por fim, muitos governos estaduais poderiam considerar a criação de suas próprias unidades de combate a crimes cibernéticos envolvendo violações de direitos de propriedade intelectual. Essas unidades provavelmente contariam com o endosso e apoio do setor de PI se estabelecessem metas claras e tivessem uma estrutura de custos enxuta. Além disso, se dessem maior prioridade à certeza do que à severidade da punição, elas também estariam prestando um serviço que certamente contaria com a aprovação da maioria dos titulares de direitos.
A Revista da OMPI destina-se a contribuir para o aumento da compreensão do público da propriedade intelectual e do trabalho da OMPI; não é um documento oficial da OMPI. As designações utilizadas e a apresentação de material em toda esta publicação não implicam a expressão de qualquer opinião da parte da OMPI sobre o estatuto jurídico de qualquer país, território, ou área ou as suas autoridades, ou sobre a delimitação das suas fronteiras ou limites. Esta publicação não tem a intenção de refletir as opiniões dos Estados Membros ou da Secretaria da OMPI. A menção de companhias específicas ou de produtos de fabricantes não implica que sejam aprovados ou recomendados pela OMPI de preferência a outros de semelhante natureza que não são mencionados.