Jane C. Ginsburg, professora de direito, Columbia University, EUA
Em maio de 2023, a Suprema Corte dos EUA proferiu a tão aguardada decisão do processo Andy Warhol Foundation (AWF) v. Goldsmith et al (o caso Warhol) . A sentença julgou válida a alegação da fotógrafa de celebridades Lynn Goldsmith, segundo a qual a Fundação Andy Warhol (AWF) havia violado seu direito de autora sobre uma foto de Prince tirada por ela ao licenciar uma ilustração de Andy Warhol baseada nessa foto (após a morte de Prince em 2016) para ilustrar a capa de um número especial da revista Vanity Fair.
O caso opôs as alegações de uso artístico gratuito de obras originais à capacidade dos criadores das obras originais (principalmente fotógrafos) de explorar os mercados das obras criadas a partir de suas criações. A maioria dos juízes direcionou o foco nas chances de a criadora da obra original ser capaz de viver de sua atividade profissional (“mesmo contra artistas famosos”), enquanto aqueles que discordaram, destacaram o gênio de Andy Warhol, além de uma longa tradição de “empréstimos” artísticos de obras anteriores.
Em 1981, Goldsmith fez um retrato de Prince. Em 1984, num contrato de “uso único”, Goldsmith licenciou a fotografia por US$ 400 “para a revista Vanity Fair com vistas a uso como uma referência artística”. A Vanity Fair encomendou a Andy Warhol a criação de uma ilustração baseada na foto e a publicou junto com uma reportagem sobre Prince na edição de novembro de 1984. Quando da publicação, a Vanity Fair atribuiu os créditos a Goldsmith pela fotografia original usada por Warhol para criar a ilustração.
A ilustração fazia parte de uma série de 16 serigrafias, gravuras e desenhos criados por Warhol a partir da foto de Goldsmith. Warhol não vendeu nem explorou, seja de que maneira for, essas obras enquanto era vivo. As obras fazem parte do espólio do falecido artista, administrado pela Fundação Andy Warhol (AWF).
Após a morte de Prince em 2016, Vanity Fair obteve uma licença da AWF para republicar uma das ilustrações de Warhol (diferente da publicada na edição de 1984) na capa de sua edição especial sobre a vida do cantor e compositor. Porém, na ocasião, a Vanity Fair não obteve uma licença da fotógrafa, e a edição especial também não atribuiu o crédito a Goldsmith pela foto original. Quando Goldsmith soube do uso não autorizado de sua obra, notificou a violação do direito de autor de sua foto original à AWF. Em resposta, a AWF moveu uma ação contra ela, alegando que não teria havido violação, e sim o “fair use”, ou uso justo da foto.
A exceção representada pelo “fair use”, ou uso justo, à proteção proporcionada pelo direito de autor permite a utilização, em determinadas circunstâncias, de obras protegidas por direitos de autor sem a autorização do titular. O uso justo autoriza apropriações razoáveis não autorizadas de uma primeira obra, quando o segundo autor faz uso desta primeira obra de uma forma que traga algum tipo de benefício ao público, sem prejudicar substancialmente o valor econômico atual ou futuro da primeira obra. O uso justo atua como uma válvula de escape para garantir que a aplicação rígida da lei de direito de autor não sufoque a criatividade que o direito de autor visa a incentivar.
A exceção representada pelo uso justo [...] atua como uma válvula de escape para garantir que a aplicação rígida da lei de direito de autor não sufoque a criatividade que o direito de autor visa a incentivar.
O uso justo se aplica a todos os direitos exclusivos protegidos pelo direito de autor, inclusive o direito em questão no caso Warhol : o direito de fazer ou autorizar obras derivadas. Esse direito concede ao autor (ou sucessor da titularidade) direitos exclusivos sobre “qualquer... forma em que a obra possa ser reformulada, transformada ou adaptada”. Exemplos incluem adaptações, arranjos musicais, revisões editoriais e alterações na forma ou no suporte, como o uso de uma fotografia como base para uma pintura.
A Lei de Direitos de Autor dos EUA orienta os tribunais que examinam alegações de uso justo a considerar quatro fatores:
A decisão da Suprema Corte de 1994 em Campbell v. Acuff Rose, (caso Campbell), definiu o quadro para análise de alegações de uso justo pelos juízes norte-americanos. O caso envolveu uma obra derivada: a gravação sonora comercial de uma paródia da música “Pretty Woman”, de Roy Orbison. A Corte determinou que a paródia faz um “uso transformador” da música, de acordo com o primeiro fator (por transmitir uma mensagem diferente da obra original). No entanto, o caso foi devolvido ao juiz da instância inferior para exame de acordo com o terceiro e o quarto fatores a fim de determinar se o trabalho dos réus consistia numa paródia que não violava direitos ou uma “versão rap”, que concorria com o licenciamento da música pelo autor da ação. O caso Campbell caracterizou um “uso transformador”, que “acrescenta algo novo, com um propósito adicional ou caráter diferente, alterando a primeira versão com uma expressão, um significado ou uma mensagem nova”. Após a decisão, a jurisprudência nas instâncias federais inferiores se concentrou no fator 1. Para algumas instâncias inferiores, “novo significado ou nova mensagem” tornou-se um mantra cuja invocação aumentava cada vez mais o risco de criar uma exceção para a abrangência dos direitos exclusivos do criador original.
A instância distrital sustentou a defesa do uso justo feito pela AWF. A ilustração de Warhol foi considerada transformadora, uma vez que “cada um dos trabalhos da Série Prince é imediatamente reconhecível como um ‘Warhol’, e não como uma foto de Prince.” Também observou ser improvável que a ilustração de Warhol tomasse o lugar da fotografia de Goldsmith no mercado. “É evidente que os mercados para um Warhol e um Goldsmith são diferentes.” O juiz tampouco deu muita importância à alegação de Goldsmith de que o uso não licenciado da AWF concorria com sua capacidade de licenciar sua foto: “não é sugerido que uma revista ou gravadora licenciaria uma obra transformadora de Warhol ao invés de uma fotografia realista de Goldsmith.”
O Tribunal de Apelações do Segundo Circuito reformou a decisão da instância distrital. Ao abordar o primeiro fator de uso justo, o Segundo Circuito reprovou a instância distrital por aplicar uma regra clara "de que qualquer trabalho secundário que acrescente uma nova estética ou nova expressão ao trabalho original é necessariamente transformador.”
O Segundo Circuito também observou que o uso do Warhol era “de natureza comercial, mas ... produz[iu] um valor artístico que atende ao interesse maior do público. [...] No entanto, do mesmo modo que não podemos afirmar que a Série Prince é transformadora por uma questão legal, também não podemos concluir que Warhol e a AWF têm o direito de monetizá-lo sem pagar a Goldsmith o ‘preço costumeiro’ pelos direitos sobre sua obra [...].
O Segundo Circuito também considerou que os demais fatores de uso justo favoreciam Goldsmith. A obra da fotógrafa era criativa (fator 2); Warhol copiou a essência identificável da fotografia de Goldsmith sem estabelecer a necessidade de usar a representação de Goldsmith (em oposição a qualquer representação fotográfica) do artista Prince (fator 3); a AWF usurpou o mercado estabelecido de licenciamento de fotografias como "referências de artistas" para publicação em revistas (fator 4).
A Suprema Corte concordou conhecer do recurso, mas somente em relação ao primeiro fator, que examinou da perspectiva do licenciamento da AWF da obra para publicação em uma revista destinada a homenagear Prince. “No que se refere a essa questão estrita, e limitada ao uso contestado, a Corte concorda com o Segundo Circuito: O primeiro fator favorece Goldsmith, e não a AWF.” A Corte rejeitou o argumento da AWF de que “as obras da Série Prince são ‘transformadoras’, e que o primeiro fator, portanto, pesa a seu favor, porque as obras transmitem um significado ou uma mensagem diferente daquela da fotografia.”
Ao contrário, a Suprema Corte deixou claro que a criação de uma obra nova que acrescenta “significado novo ou mensagem nova” não é suficiente, por si só, a fazer com que seu uso seja “transformador”. Portanto, a Suprema Corte restabeleceu o significado original de “uso transformador”, como uma consideração a ser avaliada em relação a outros elementos, notadamente o caráter comercial do uso feito pelo réu.
Ao enfatizar a finalidade e o caráter do uso feito pela AWF, a Suprema Corte evitou examinar como a obra derivada diferia da foto de original de autoria de Goldsmith. Deste modo, a Suprema Corte evitou cair na armadilha de abordar os méritos artísticos da obra de Warhol – uma investigação que as instâncias de direito de autor devem evitar. Em vez disso, a Suprema Corte se concentrou em analisar em que medida a exploração da obra da AWF destinava-se a substituir uma das maneiras pelas quais Goldsmith poderia explorar sua obra nos mercados primário e secundário, ou seja, sua capacidade de gerar renda a partir de seu trabalho.
Ao mudar o foco da investigação do primeiro fator de “transformatividade” da obra do réu para a distinção do propósito ou caráter do uso, a maioria reconheceu que “A mesma cópia pode ser justa quando usada para alcançar um propósito, mas não para alcançar outro.” Assim, alguns usos não autorizados pelo autor podem ser justos e outros não, mesmo que envolvam a mesma obra.
A decisão ressalta a necessidade de cautela ao criar obras derivadas não autorizadas para uso comercial. Como resultado do reconhecimento da Suprema Corte de que, dependendo dos fatos, diferentes explorações da mesma obra derivada não autorizada podem produzir diferentes resultados de uso justo, será importante, no futuro, prever quais tipos de uso da mesma obra serão ou não justos.
A decisão ressalta a necessidade de cautela ao criar obras derivadas não autorizadas para uso comercial.
Por exemplo, a decisão indica que edições únicas ou limitadas de “fine art” (impressão particularmente refinada) (em oposição a múltiplos, como pôsteres, ou ainda publicações de revistas concorrentes, para as quais a obra da autora também pode ser licenciada) podem ser igualmente consideradas de uso justo. A análise da Suprema Corte, com base no uso, provavelmente isolará os mercados primários dos artistas para explorar números limitados de originais físicos quando os mercados primário e secundário do réu envolverem o licenciamento de múltiplos no mercado de massa. Em outras palavras, a decisão pode acentuar as diferenças entre o “segmento superior” do mercado de arte, cuja renda provém principalmente da venda de originais físicos, e os “segmentos inferiores”. Por outro lado, como, de acordo com a análise da Suprema Corte com foco no uso, a obra do artista réu não configura uso justo, mesmo que as vendas de originais físicos em galerias possam ocorrer sem os direitos autorais subjacentes do artista, o artista que se apropria da obra pode não necessariamente explorar seu trabalho em outros mercados, especialmente para múltiplos em massa, independentemente dos direitos subjacentes do artista.
No caso Campbell, a Suprema Corte decidiu que uma transformação estética pode não atender aos critérios de uso justo (fator 1) se concorrer em um mercado da obra do criador do original (nesse caso, derivados em forma de rap de músicas populares). A existência do privilégio do “arranjo" (veja o quadro) sugere que há mercados para várias versões diferentes de obras musicais “não dramáticas” (que não foram criadas para o cinema ou o teatro), com as quais uma versão não autorizada (e não remunerada) num estilo diferente pode concorrer.
A Lei de Direitos de Autor dos EUA prevê uma licença compulsória, que inclui o privilégio de fazer um arranjo musical da obra na medida necessária para permitir que ela se adapte ao estilo ou à maneira de interpretar da performance em questão. No entanto, o arranjo não deve alterar a melodia básica nem o caráter fundamental da obra, além disso, não deve estar sujeito à proteção como obra derivada, exceto se houver consentimento expresso do titular dos direitos de autor.
Mas como nenhum compositor, ou outro criador, pode controlar os mercados em relação à crítica de sua obra (esse controle tenderia a suprimir a discussão veemente de obras criativas), um arranjo ou outra adaptação que critique ou zombe do trabalho original não será considerada como substituto de uma forma de exploração no âmbito dos direitos exclusivos do primeiro autor. Para determinar se o uso do réu é um comentário não substituível ou um uso crítico, ou ainda se é uma obra derivada concorrente, a Suprema Corte reafirmou a distinção entre paródia e sátira feita no caso Campbell. Quando a obra copiada é objeto de análise, comentário (ou zombaria) da segunda obra, é necessário copiar o quanto for preciso para sustentar o comentário. Por outro lado, seguindo uma distinção que o Tribunal de Justiça da UE rejeitou, a Suprema Corte enfatizou que “a paródia precisa imitar um original para fazer sentido e, portanto, tem alguma pretensão de usar a criação da imaginação de sua vítima (ou do coletivo de vítimas), ao passo que a sátira pode se sustentar por si só e, portanto, exige uma justificativa para o próprio ato do empréstimo.”
No caso Warhol, “como o uso comercial da foto de Goldsmith pela AWF para ilustrar a reportagem sobre Prince publicada numa revista é muito parecido com o uso habitual da fotografia, é necessário haver uma justificativa particularmente convincente. No entanto, a AWF não apresenta nenhuma justificativa independente, muito menos convincente, para copiar a foto, além de transmitir um novo significado ou uma nova mensagem. Conforme explicado, somente isso não é suficiente para que o primeiro fator favoreça o uso justo.”
Para encerrar com uma nota de especulação: O caso Warhol tem alguma importância para a inclusão não licenciada de obras protegidas por direitos de autor nos dados de treinamento de sistemas de inteligência artificial (IA)? Pode-se dizer que o uso dessas obras para que os sistemas de IA “aprendam” a produzir resultados independentes que consistam em obras literárias, artísticas, musicais, audiovisuais ou software, adapta suficientemente a cópia para ser considerada "transformadora" – pelo menos se os resultados (outputs) obtidos à partir das entradas (inputs) de dados não violarem o conteúdo original (ponto consideravelmente controverso). Mas talvez seja necessário dissociar entradas e resultados. Analisando apenas se a cópia de obras para torná-las dados de treinamento é um uso justo “transformador”, o caso Warhol sugere que a análise pode depender da existência ou não de um mercado para licenciamento de conteúdo destinado a se tornar dados de treinamento. Tal mercado existe, principalmente na mídia jornalística, para obtenção de dados confiáveis e de alta qualidade. Nesse caso, mesmo se os resultados não violarem dados de entrada em particular, a cópia para fins comerciais (pelo menos) a fim de criar dados de treinamento, teria a mesma finalidade e, portanto, poderia não ser considerada de uso justo quando da consulta em relação ao primeiro fator, após a decisão proferida no caso Warhol.
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