APELAÇÃO CÍVEL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL E INTELECTUAL. AÇÃO DECLARATÓRIA, E CONDENATÓRIA. TITULARIDADE DE PROGRAMA DE INFORMÁTICA. SOFTWARE. CASO CONCRETO. ANÁLISE DA PROVA. APLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 4º DA LEI N. 9.609/98. SENTENÇA REFORMADA.
A análise das provas dos autos evidencia se tratar de contrato de desenvolvimento de software sob encomenda, para atender às necessidades específicas da apelante. Não havendo disposição contratual expressa em contrário, a titularidade do software pertence à contratante, conforme prevê o art. 4º da Lei nº 9.609/98.
Caso em que o trabalho foi inteiramente custeado pela contratante, que participou ativamente do desenvolvimento, testes e aprimoramento do produto, trabalho que dependeu fortemente da expertise da apelante na área de aplicação do sistema contratado.
Assim, a reforma da sentença é medida que se impõe.
DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO.
APELAÇÃO CÍVEL
SEXTA CÂMARA CÍVEL - REGIME DE EXCEÇÃO
Nº 70059998807 (Nº CNJ: 0192443-80.2014.8.21.7000)
COMARCA DE PORTO ALEGRE
FELLINI TURISMO E VIAGENS LTDA
APELANTE
NAXUS PROJETOS EM SISTEMA DE INFORMACAO LTDA
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Magistrados integrantes da Sexta Câmara Cível - Regime de Exceção do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE) E DES.ª ELISA CARPIM CORRÊA.
Porto Alegre, 15 de dezembro de 2016.
DR. ALEX GONZALEZ CUSTODIO,
Relator.
RELATÓRIO
Dr. Alex Gonzalez Custodio (RELATOR)
Trata-se de recurso de apelação manejado contra a sentença que indeferiu a petição inicial julgando extinto o processo sem resolução de mérito na ação declaratória que FELLINI TURISMO E VIAGENS promove em face de NAXUS PROJETOS EM SISTEMA DE INFORMAÇÃO LTDA.
Adoto relatório da sentença (fls. 141/143 v).
"FELLINI TURISMO E VIAGENS LTDA. ajuíza ação declaratória, constitutiva e condenatória em desfavor de NAXUS PROJETOS EM SISTEMA DE INFORMAÇÃO LTDA., apensa à ação cautelar n° 1.13.0208164-1, relatando que é empresa atuante no ramo de mercado de eventos e turismo e prima pela incorporação de novas tecnologias na sua gestão, com mais de 20 anos de atividades. Observa que realizou parceria, verbal, com a empresa ré a fim de desenvolver um software (programa de computador), ou seja, uma ferramenta online com recursos e funções específicas para a área de turismo e eventos, o qual foi denominado como 'SHORT'. Disponibilizou, além de recursos financeiros, suporte 'knowhow' e 'expertise', indicando funcionalidades, layout e outros recursos do ramo, contribuiu para a feitura da base de dados, realizou testes exaustivos, e, ainda, cedeu funcionários para auxiliar no desenvolvimento das ferramentas, adaptações, funcionalidades e testes do sistema. Com o resultado positivo, fez nova parceria com a ré para comercializar o software que contratou e pagou o desenvolvimento, pois não detinha fins sociais vinculados a esse setor, sendo necessária, portanto, a atuação da requerida. E, assim, iniciou a divulgação do software, incluindo a divulgação do software SHORT nos eventos dos quais participava, inclusive organizou e custeou para os colaboradores da ré viagens e estrutura para apresentação e negociação do sistema. Após as divulgações, sobreveio retorno financeiro exitoso, o que culminou na instauração da comercialização de suas licenças, momento no qual percebeu que a ré agia como se proprietária fosse, pois comercializou o software a, pelo menos, duas empresas sem repassar qualquer valores à autora, tão somente sugerindo que poderia repassar-lhe um percentual por indicações de clientes que adquirissem o software, o que, todavia, não ocorreu. Salienta que a própria demandada informa, na sua página na internet, que o SHORT foi 'desenvolvido pela Naxus Soluções em TI em conjunto com a Fellini Turismo ao longo de 2 anos'. Ademais, a ré passou a comercializar um software intitulado 'NUVOLLA' que se mostra deveras semelhante ao 'SHORT', do que se concluiu ser uma reprodução do sistema original e cujos reflexos financeiros deveriam ser verificados, para fins indenizatórios. Em liminar, requer seja determinada à ré que deposite 50% dos valores relativos aos frutos da exploração econômica do software; que apresente cópia de todos os contratos feitos com terceiros com fins de utilização do software, bem como balanço dos valores recebidos com esta exploração; e a tramitação do feito em segredo de justiça. Finaliza requerendo a procedência da ação para declarar a titularidade sobre o software 'SHORT' ou, subsidiariamente, a co-titularidade; declarar o direito de posse de uma cópia dos códigos-fontes do software e do banco de dados; declarar o direito de registrar o software junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), expedindo ordem judicial para tanto, ou, subsidiariamente, o direito de registrá-lo em conjunto com a ré; condenar a demandada ao pagamento do que auferiu com a comercialização das licenças do software; condenar a ré ao pagamento dos valores que lhe alcançou a título de empréstimos, adiantamento de serviços e outras verbas. Junta procuração (fl. 21) e documentos."
Que assim decidiu em sua parte dispositiva:
"Isso posto, INDEFIRO a petição inicial, na forma do art. 295, III, do CPC, EXTINGUINDO o processo com base no art. 267, I, do CPC, e, ainda, EXTINGO a ação cautelar n° 113.0208164-1.
Certifique-se a presente decisão na ação cautelar.
Registre-se na capa do processo anotação quanto ao segredo de justiça.
Condeno a autora ao pagamento das custas pendentes deste feito e da ação cautelar, assim como de honorários advocatícios ao procurador da parte ré, que chegou a contestar a ação cautelar, os quais fixo em R$ 1.000,00, tendo em vista o tempo e o labor despendidos pelo causídico, já que a ação tramitou tão somente até a réplica."
Inconformado com a sentença a parte autora interpôs recurso de apelação (fls. 145/159). Alega que a matéria da ação cautelar e da ação principal versa sobre códigos-fontes de software e banco de dados operacional, a primeira ação objetiva a busca e apreensão dos mesmos, ao passo que a segunda ação objetiva o reconhecimento da titularidade do software, bem como a apuração de débitos e a indenização de danos morais. Sustenta que são dados de notório sigilo e que não podem tramitar publicamente. Afirma que as patentes e as marcas são regidas pelo sistema atributivo-constitutivo de direito e, de outra parte, os direitos autorais e os softwares são afetos a outro sistema, qual seja, o sistema declaratório, assim sendo, tanto os direitos autorais quanto os softwares não carecem de registro para existir, portanto, o registro existe apenas para se definir questões de titularidade, que é exatamente o que o caso em tela expõe. Aduz que na medida em que há nos autos prova robusta, reconhecida inclusive pelo Egrégio TJ, conforme se constata na decisão monocrática do agravo interno, de que a parte apelante foi quem custeou financeiramente o desenvolvimento do software SHORT, tais argumentos derruem completamente a fundamentação de falta de interesse processual de agir, haja vista a recorrente ser titular do referido software, ou, na pior das hipóteses, co-titular, e como o software é afeto ao sistema declarativo, o qual independe de registro, claríssimo se apresenta o interesse processual da parte autora. Descreve que é necessário constatar que na inicial a autora esta discutindo a titularidade do software SHORT e, somente quando a titularidade estiver decidida o apelante irá exercer a faculdade que lhe concede. Relata que remunerou a recorrida para que desenvolvesse o software SHORT de forma continua e ao longo de considerável tempo. Requer a reforma da sentença e o julgamento pelo provimento do recurso.
Recebido o recurso de apelação no seu duplo efeito (fl. 192).
Foram ofertadas as contrarrazões (fls. 195/210).
É o relatório.
VOTOS
DR. ALEX GONZALEZ CUSTODIO (RELATOR)
O recurso é tempestivo e preenche os demais pressupostos de admissibilidade.
Entendeu o julgador a quo, que o mérito da lide se exauria no pedido de reconhecimento e declaração judicial do direito de a parte autora registrar para si o software denominado "SHORT" junto ao INPI e, com base na lei nº 9.279/98, indeferiu a petição inicial, extinguindo o feito sem julgamento do mérito e também a ação cautelar.
Tenho entendimento distinto.
Da leitura dos autos resta claríssimo que a criação e desenvolvimento de sistema informatizado – conjunto de programas de computador - encomendado à parte ré, consistia na automação das rotinas específicas da empresa contratante, ora apelante, em sua área de atuação, qual seja, a comercialização de pacotes turísticos e viagens.
De acordo com a previsão contida no art. 1º da Lei nº 9.609/98, a palavra de origem anglo-saxônica "software" é sinônimo de programa de computador:
Art. 1º. Programa de Computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
Evidenciando se tratar de contrato de desenvolvimento de software sob encomenda para atender às necessidades específicas da empresa, e não havendo disposição contratual expressa em contrário, uma vez que a contratação foi verbal, entendo que a titularidade do software pertence à contratante, conforme prevê o art. 4º da Lei nº 9.609/98:
Art. 4º. Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos.
Com efeito, das provas trazidas aos autos, se conclui, estreme de dúvidas, que a apelante arcou com todas as despesas de desenvolvimento do software (são 49 pagamentos relacionados às fls. 28/30, e 38 notas fiscais juntadas às fls. 31/68, provas não impugnadas), disponibilizou capital de giro para a apelada (fls. 105, 108 e 203) e ainda participou ativamente do desenvolvimento dos programas, tanto com a sua expertise no negócio-fim, quanto nos testes e aprimoramentos (fl. 73/88).
Frise-se, ainda, que o software objeto da presente lide se chamava, inicialmente, "Sistema Fellini", em referência evidente ao patrocinador de seu desenvolvimento.
Assim, tenho que a propriedade do software é inquestionavelmente da apelante.
Não é outro o entendimento da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nesses termos:
Ementa: Apelação cível. Ação condenatória. Direito autoral. Programa de informática. Matéria de fato. Caso concreto. Análise da prova. Correta valoração do conjunto probatório na fundamentação da sentença. Conclusão no sentido que os programas de informática foram desenvolvidos sob encomenda para as empresas apeladas. Logo, como não houve disposição nos contratos em sentido contrário, é dos contratantes do serviço de desenvolvimento a titularidade dos programas. Aplica-se, com isso, o disposto no art. 4º da Lei n. 9.609/98, que assim determina. Recurso não provido. (Apelação Cível Nº 70050795517, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ney Wiedemann Neto, Julgado em 21/03/2013) – Grifei -
Mesma conclusão a que chegou o eminente Dr. Niwton Carpes da Silva nos autos do agravo interno nº 70056926595 (fls. 94/103), de onde se extrai:
"Compulsado os autos novamente, até por reprovocação advinda do presente recurso de agravo interno, constato que a parte agravante, na condição de empresa de turismo, com mais de vinte (20) anos de expertise, contratou a parte agravada, empresa do ramo de Sistema de Informação, para que esta desenvolvesse um software, com objetivo de facilitar e agilizar o trabalho da empresa autora, o qual consiste em um sistema on line de operação, controle, comercialização de suporte no setor de turismo e eventos.
Assim, verifico que as partes conjuntamente interagiram para a concretização do programa desenvolvido, o que é denominado de SHORT, consoante evidenciam os documentos de fls.107/127 (troca de emails), bem como tal coparticipação restou confirmada pelas trocas de notificações e contranotificação (fls.130/134, 148, 154/155 e 158). Não há dúvida, pelo que se percebe, da existência de uma relação contratual e negocial na consecução de um objetivo comum, qual seja, a conformação de um software que atendesse os objetivos sociais da agravante. A intimidade entre as partes foi de tal envergadura que se percebe, inclusive, que um dos sócios da agravante teria adquirido cotas de capital social da agravada, consoante contranotificação de fl.158.
Todavia, através das alegações e documentos juntados pela parte agravante, observo que a parte agravada se eximiu de fornecer à parte autora cópia dos códigos fontes do sistema SHORT e do backup de todo o banco de dados on line da empresa autora, apropriando-se com exclusividade, até mesmo comercializando o resultado final sem a cientificação e concordância da recorrente, como se titular efetivamente fosse.
Contudo, ainda sem entrar no âmago meritório, insta ponderar com a incidência do disposto no art. 4º da Lei Federal n.9609/98, que trata sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, in verbis:
"Art. 4º. Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão publico, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos."
Acontece que os documentos de fls. 166-167 dos traslados, demonstram que o programa de software foi desenvolvido por ambas as partes, com íntima cooperação conforme também evidenciam os similares de fls. 107/127, devendo, então, a agravante obter acesso aos códigos fontes do sistema, bem como o backup de todo o seu banco de dados on line.
Importante transcrever o teor do documento de fl. 167, o qual retrata o desenvolvimento e a finalidade do mencionado programa, in litteris:
O que é o Short?
É um software que faz a gestão da informação, operação e venda online e offline de turismo de eventos e lazer.
Para quais tipos de empresa é mais adequado?
É um sistema para pequenas, médias e grandes agências e operadoras de turismo.
Que tipos de agências e operadoras de turismo?
Agências e operadoras de turismo de eventos e de lazer.
Por que foi desenvolvido?
Para suprir necessidade operacional e tecnológica das empresas para atender ao novo consumidor.
Como foi desenvolvido?
Através da soma do conhecimento do mercado de turismo e de marketing aliados à tecnologia de ponta.
Por quem foi desenvolvido?
Foi desenvolvido pela N.S. em TI [sic] em conjunto com a F.T. [sic] ao longo de 2 anos. (grifei)
Da leitura do documento acima, é incontestável que a parte agravante também tem direito, no mínimo, em obter acesso ao programa pelo qual desenvolveu conjuntamente com a parte agravada."
Registro, por fim, que não são sabidas as circunstâncias havidas ao tempo da assinatura do contrato de licença do software entabulado entre a apelada e um terceiro, onde consta a assinatura de uma das sócias da apelante como testemunha, mas é evidente que a afirmação constante no item 1.1.1 (fl. 276), de que a apelada "... é a única titular e detentora dos direitos de propriedade intelectual e de uso do "Sistema ... SHORT"" (grifei) é falsa, pois seria, no máximo, co-titular, ante a ausência de contrato que permitisse desconstituir a conclusão a que se chega a partir do que foi antes acima exposto.
Aliás, este contrato reforça que a propriedade do software deve ser da apelante, pois esta dispendeu, apenas como custos diretos, no mínimo, o valor de R$188 mil, e no contrato a licença foi vendida por R$49 mil, cerca de 25% do valor pago anteriormente. Além disso, consta no mesmo contrato o valor mensal de R$1.054,00 a ser pago à titulo de suporte técnico, manutenção e atualizações, o que desmonta a alegação da apelada em contrarrazões (fl. 209) de que o valor de R$188 mil se deveu a horas de consultoria e serviços prestados, pois utilizando-se o mesmo valor mensal acima apontado e multiplicando por 48 meses (2010 – 2013) não se chega sequer aos R$57.437,28 apontados apenas para a manutenção e suporte do SHORT (fl. 209).
Definida a propriedade, deve a apelante, querendo, buscar o registro junto ao INPI atendendo às disposições da lei nº 9.279/96, não se prestando a presente ação a substituir os atos e exigências administrativas necessárias para tal desiderato, como bem apontado pelo juízo a quo.
Nestes termos, voto pelo parcial provimento ao apelo para o fim de julgar procedente a ação cautelar e parcialmente procedente a ação principal, para o fim de declarar a titularidade da apelante sobre o software "SHORT", e condenar a apelada ao pagamento à apelante dos valores auferidos pela venda de licenças do referido software e ao pagamento de débitos remanescentes junto à apelante relacionados à empréstimos e adiantamentos de serviços não prestados, devendo todos os valores serem apurados em liquidação de sentença. Face à reforma da decisão, deve a apelada arcar com a totalidade das custas judiciais e com honorários advocatícios aos patronos da apelante, que fixo em 15% do valor atualizado da condenação.
É como voto.
DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA (PRESIDENTE) - De acordo com o(a) Relator(a).
DES.ª ELISA CARPIM CORRÊA - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. LUÍS AUGUSTO COELHO BRAGA - Presidente - Apelação Cível nº 70059998807, Comarca de Porto Alegre: "DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: LUCIANA TORRES SCHNEIDER