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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/05/2021, processo n.º 89359/10.7YIPRT.L2.S1 | ECLI:PT:STJ:2021:89359.10.7YIPRT.L2.S1.9D

 

Processo nº 89359/10.7YIPRT.L2.S1 

7.ª Secção (Cível)

Recurso de Revista

 

 

 

Decisão Texto Integral

 

 

I. Relatório

1. Sigma – Soluções Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unipessoal, Lda. instaurou procedimento de injunção, transmutada em ação declarativa com forma ordinária, contra “Amb3e – Associação Portuguesa de Gestão de Resíduos de Equipamentos Eletrónicos, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €164.112,60, acrescida de €2.131,66, a título de juros de mora, já vencidos.

Alegou, em síntese, que se dedica à consultoria na área das tecnologias de informação e comunicação, à venda e locação de programas e serviços de informática e de telecomunicações, sistemas de computadores, incluindo hardware e software, e que celebrou, em 22/08/2008, com a requerida um contrato de prestação de serviços na área da informática, designadamente serviços de implementação e manutenção de software e hardware, helpdesk e formação, tendo prestado diversos serviços, no montante de €164.112,60 e que a Ré, apesar de instada, não pagou.

2. A Ré deduziu oposição e reconvenção, alegando, em síntese, que:

- Na petição inicial, a Autora não identifica a concreta relação contratual que fundamenta a sua pretensão, pelo que a petição inicial é inepta, por falta de causa de pedir.

- A Ré foi vítima de diversos ilícitos criminais praticados por um seu ex-diretor, os quais se encontram em averiguação no DIAP, sendo que a relação contratual estabelecida com a ora Autora é uma das situações em averiguação naquele processo-crime. Por se configurar a existência de causa prejudicial, deve ser suspensa a instância até ser proferida decisão com trânsito em julgado no processo que corre no foro criminal.

- A Ré dedica-se à gestão de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, tendo implantado uma rede de centros de receção para a receção, separação e armazenagem de resíduos. Para tal estabeleceu parcerias com operadores de gestão e resíduos e parceiros operacionais que asseguram a prestação dos serviços necessários.

- A Ré celebrou um contrato com a empresa “I…, Lda.” visando a criação de um sistema informático denominado “SIGRes3e”, especialmente desenvolvido para a Ré, de acordo com as suas necessidades específicas.

- Posteriormente, por influência do seu então diretor financeiro, a Ré celebrou um contrato com a empresa “CITI”, atualmente denominada “SIGMA”, ou seja, a ora Autora.

- Este contrato visava aperfeiçoar, desenvolver e melhorar o sistema existente, ou seja, o “SIGRes3e”, cabendo ainda à Autora disponibilizar serviços de helpdesk e de formação. Esses serviços foram prestados pela A…, sociedade controlada pelo então diretor financeiro da Ré.

- A Ré delegou no seu diretor financeiro a coordenação e acompanhamento da execução deste contrato. Este, porém, como a Ré veio posteriormente a apurar, não defendeu os interesses da Ré, tendo aceitado que a Ré ficasse na total dependência técnica da Autora e autorizado o pagamento de faturas de janeiro de 2008 a outubro de 2009, no valor total de €2 216 884,00, sem estar comprovado que os respetivos serviços tenham sido prestados, e sem que a autorização de pagamento contivesse assinatura de um membro do conselho de administração da Ré ou por valores superiores aos do mercado.

- Por outro lado, entre 2007 e 2009, por serviços de consultoria, projetos de desenvolvimento aplicacional e de formação, a Ré pagou €1 207 929,00, sendo que este valor representa uma diferença de €374 584,00 face aos preços de mercado.

- Além disso, apenas por efeito da atuação ilícita do ex-diretor da Ré, ficou clausulado que a titularidade dos direitos sobre o software (que a requerente desenvolveu) lhe pertence.

- Sendo assim, pelo licenciamento do sistema SIGMA, a Ré pagou indevidamente à Autora €597 358,00. Ainda que se entenda que o custo do licenciamento do SIGMA deveria ser suportado pela Ré, ainda assim, a Autora cobrou esse serviço em duplicado, o que representa um prejuízo para a Ré de €192 500,00.

A Ré invoca a nulidade do contrato por ser contrário à ordem pública e aos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil). Ou, se assim não for entendido, a sua anulabilidade, por se tratar de negócio usurário (artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil). Afirma ainda que o negócio é anulável, por ter sido celebrado com base em erro na formação da vontade (artigo 251.º, do Código Civil).

Conclui, pedindo que:

a) Seja declarada a ineptidão da petição inicial e a Ré absolvida da instância;

b) Caso assim não se entenda, seja ordenada a suspensão da instância até ao trânsito em julgado do acórdão a proferir no processo-crime, instaurado contra o ex-diretor da ré;

c) Seja declarado nulo o contrato celebrado com a Autora;

d) Subsidiariamente, seja anulado o dito contrato;

e) Seja, em consequência, determinada a restituição de todas as prestações efetuadas e reconhecida a titularidade da Ré sobre o software de base e ainda de todas as aplicações operacionais correspondentes ao atual sistema informático;

f) Se assim não se entender, e se considerar o contrato válido, seja a Autora condenada a reconhecer a titularidade da Ré sobre o software de base e ainda de todas as aplicações operacionais correspondentes ao atual sistema informático;

g) Em reconvenção, seja a Autora condenada:

- A pagar à Ré, a título de compensação, a quantia de EUR 971.942,00, correspondente à diferença entre o montante que a Autora deve restituir à Ré e o valor dos serviços ao preço de mercado prestados pela autora à Ré, até 31/12/2009, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a apresentação da oposição e vincendos até integral pagamento;

- A pagar à Ré a quantia que se vier a liquidar posteriormente, correspondente à compensação entre as quantias a restituir pelas partes, relativas aos serviços faturados pela Autora e os que sejam indevidamente pagos pela Ré, após 31/12/2009;

- A reconhecer o direito de acesso da Ré ao código-fonte do software de base e de todo o software aplicacional.

3. A Autora apresentou réplica, tendo, ainda, ampliado o pedido. Neste âmbito, alegou que desde a apresentação do requerimento de injunção até à data da apresentação da réplica se venceram outras faturas no valor global de €253.152,00 que a Ré não pagou.

Concluiu, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe (também) esta quantia, acrescida dos respetivos juros de mora, já vencidos e vincendos.

Pediu, ainda, a condenação da ré com litigante de má fé.

4. A Ré treplicou.

5. Foi proferido despacho que indeferiu a suspensão da instância.

6. Na audiência preliminar, foi admitida a reconvenção, bem como a ampliação do pedido e julgada improcedente a ineptidão do requerimento de injunção. Foi selecionada a matéria assente e organizada a base instrutória.

7. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que:

a) - Julgando a ação procedente, condenou a ré “a pagar à autora a quantia de €415.428,00, acrescida de juros de mora sobre o valor de cada uma das faturas – a primeira deduzida da nota de crédito – discriminadas nos pontos 1º e 2º dos factos provados, contados 60 dias após a data de emissão de cada uma delas, às taxas supletivas legais que resultam da aplicação da Portaria 597/2005, de 19/07, até integral pagamento”;

b) - Julgando a reconvenção improcedente, absolveu a autora do pedido reconvencional;

c) - Julgou inverificados os pressupostos da litigância de má-fé.

8. Não se conformando com esta decisão, a ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

9. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

10. Inconformada com tal decisão, a Ré veio interpor o recurso de revista, tendo sido proferida decisão sumária, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para que fossem supridas as contradições que aí se apontaram em determinados pontos da matéria de facto.

11. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 13-07-2017, foi anulada a sentença e determinada a baixa dos autos ao tribunal de 1.ª instância a fim de se repetir o julgamento na parte viciada por estar em causa matéria não impugnada no recurso de apelação em relação à qual havia a necessidade de renovar a produção de prova.

12. Repetido o julgamento quantos aos pontos 7.º, 8.º, 16.º, 17.º, 21.º e 35.º da base instrutória, foi, em 28-12-2018, proferida sentença com segmento decisório igual ao da anterior, isto é, (i) julgando procedente a ação e, consequentemente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 415 428,00, acrescida de juros de mora até integral pagamento; (ii) julgando improcedente a reconvenção, absolvendo a Autora do pedido reconvencional; e (iii) não condenando a Ré como litigante de má fé.

13. Por Acórdão de 11-12-2019, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, sem voto de vencido, tal decisão.

14. Inconformada com esta decisão a Ré veio interpor recurso de revista excecional.

Verificada a existência da dupla conformidade de decisões (artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), foram os autos remetidos à Formação de Juízes a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, que admitiu a revista excecional, com fundamento no facto de as questões suscitadas no recurso – relacionadas com os direitos de autor no âmbito dos programas informáticos – apresentarem relevo jurídico bastante para superar a barreira da dupla conforme, estando justificada a necessidade da excecional intervenção do STJ com vista à obtenção de uma solução orientadora e clarificadora sobre a matéria.

15.  A Ré, nas alegações de recurso de revista que interpôs, formulou as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 11.12.2019, não consignou a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, como assim impunha o n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, perante as características próprias do presente litígio.

2ª. Em 18.02.2019, a Recorrente, não se conformando com a Sentença proferida apresentou recurso de apelação peticionando a alteração à matéria de facto, designadamente, quanto aos pontos 7, 8, 16, 17, 21 e 35 da Base Instrutória, matéria sobre a qual versou a renovação do julgamento e a revogação da sentença sendo a mesma substituída por outra que absolvesse a Ré e condenasse a Autora no pedido reconvencional formulado, o que fez concluindo em 83 pontos (A a EEEE).

3.ª Em 01.04.2019, a Recorrida apresentou contra-alegações peticionando a improcedência do recurso apresentado pela Recorrente, o que fez concluindo em 37 pontos (A a KK).

4.ª Por sua vez, em 11.12.2019, o Tribunal da Relação proferiu Acórdão decidindo negar provimento ao recurso, tendo elaborado relatório com 3 pontos, decidiu a impugnação da decisão de facto no ponto IV -1 a 5, o que fez em 11 páginas, e tendo decidido de direito no ponto IV – 6 a 11, dedicando ao enquadramento jurídico 13 páginas.

5.ª Da leitura do Acórdão ressalta à vista que para o Tribunal da Relação a causa não revestiu especial complexidade, além disso, as Partes procederam de boa-fé, esforçando-se pela resolução do litígio.

6.ª Caso não seja dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, atento o valor da causa (€ 997.587,00), as partes deverão ainda pagar, além do valor acima referido, o montante de € 8.874,00, num total de € 10.506,00.

7.ª Resulta, assim, evidente que a cobrança de tal valor excessivo é manifestamente desproporcional face aos serviços prestados e viola os princípios da proporcionalidade e da Justiça.

8.ª Neste mesmo sentido concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa60, referindo que “ainda que não em termos absolutos, deve existir correspectividade entre os serviços prestados e a taxa de justiça cobrada aos cidadãos que recorrem aos tribunais designadamente da taxa de justiça, de acordo com o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 2º CRP, e do direito de acesso à justiça acolhido no artigo 20º CRP”,

9ª. Razão pela qual se requer a reforma ou, caso assim não se entenda, a revogação do Acórdão, nessa parte, determinando-se a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos previstos no artigo 6.°, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais.

10º. O douto Tribunal recorrido escusou-se de analisar a questão suscitada pela Ré nas conclusões CCCC.e DDDD.das suas alegações derecurso relativa à nulidade parcial do negócio e sua redução por entender, que se trata de uma questão nova.

11.ª Porém, a referida questão suscitada pela Recorrente é do conhecimento oficioso do julgador e tem quer ser apreciada, mesmo sem que tal lhe haja sido pedido, pois como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.01.2015: O princípio da conservação dos negócios jurídicos conduz ao aproveitamento do negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada (artigo 292.º do Código Civil). Como salienta Pedro Pais de Vasconcelos, " no caso de nulidade parcial, de conhecimento oficioso, o tribunal não pode deixar de conhecer a nulidade e, segundo o preceito do artigo 292.º, só deve deixar de reduzir quando se convença de que as partes não teriam celebrado o negócio sem a parte viciada".

12.ª Assim, caso se conceba que o contrato de licenciamento objeto dos presentes autos é parcialmente válido, pelo menos no que concerne ao licenciamento dos desenvolvimentos realizados pela Autora sobre o SIGRes3e - já que a Ré não logrou demonstrar que não celebraria o negócio se este tivesse apenas por objeto o licenciamento dos desenvolvimentos realizados sobre o SIGRes3e -impõe-se concluir pela respetiva redução do preço na proporção correspondente ao preço do licenciamento cobrado pelo software que era e é pertença da Ré e que esta nunca transmitiu à Autora.

13.ª E não se diga que “inexistem factos provados para fundamentar o pretendido - nomeadamente no que respeita aos valores de licenciamento respeitarem à utilização dos módulos constantes do programa originário da titularidade da R.”, pois resulta do facto provado em 5.º que “(…) o preço da Licença ora concedida e dos serviços contratados no seu âmbito é de EUR: 90.000, devidos em quatro tranches de 22.500 Euros, a pagar mensalmente, nos meses de Setembro a Dezembro de 2008.

2. Adicionalmente, será devido um valor mensal por utilizador comprovadamente registado na aplicação,variável em funçãodo tipo de utilização nos termos indicados no quadro abaixo a facturar, pelo Segunda Contratante, nas condições previstas na Cláusula Terceira do Contrato

Utilizadores

Custo Mensal   /       Utilizador

Intranet

Financeira           85,00€

Comercial            85,00€

Gestão de Resíduos            85,00€

Extranet

Aderentes 85,00€

Centros de Recepção 85,00€

Operadores Logísticos 85,00€

Unidades de Tratamento e Valorização 85,00€

14.ª Por outro lado, resulta manifestamente provado nos autos que a componente variável respeita à utilização dos módulos constantes do programa originário da titularidade da Ré conforme é referido no relatório pericial onde se lê que o SIGRes3e já continha tais módulos que eram utilizados pelos utilizadores, a saber:

•      “Aderente

•    “Amb3E” (composto pelo módulo financeiro, o módulo comercial e o módulo de gestão de resíduos)

•       “CR” (Centros de Receção)

•       “OL” (Operadores Logísticos)

•       “UTV” (Unidades de Tratamento e Valorização) (cfr. fls. 1202 verso do relatório perician( �o:p>

15.ª Quer isto dizer que a redução do preço se operaria, designadamente, através da eliminação da componente do preço que se refere à (i) disponibilidade do software SIGMA que à data do contrato era uma réplica do SIGRes3e (EUR 90.000, acrescido de IVA, num total de €108.000,00 - valor a que alude a alínea g) do facto provado em 25.º), e (ii) utilização por utilizador dos módulos que já constavam do SIGRes3e que era e é da titularidade da Ré (cujo valor resulta, ainda que indiretamente, do facto provado em 33.º como sendo de €474.159 = €582.159-€108.000).

16.ª Nestes termos, uma vez que se trata de uma questão de conhecimento oficioso, competia ao douto Tribunal recorrido dela conhecer, sob pena de nulidade de tal acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) primeira parte do n.º 1, do artigo 615.º e do n.º 3, do artigo 613.º, ambos do Código de Processo Civil.

17.ª Razão pela qual deve ser revogado o aresto recorrido e ordenada a baixa do processo para o Tribunal da Relação de Lisboa a fim de ser suprida tal nulidade, devendo, em qualquer caso, a questão da redução do preço do contrato de licenciamento em crise, ser julgada procedente nos termos peticionados.

18.ª A Recorrente interpõe o presente recurso de revista excecional, tendo como fundamento as situações elencadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, uma vez que considera que estão em causa duas questões fundamentais de direito de manifesta complexidade, de difícil resolução e para cuja subsunção jurídica se impõe um detalhado exercício de exegese e interpretação, a saber:

(i) o que se deve entender por programa original; e

(ii) se a autorização para transformação de um programa de computador concedida pelo seu titular a terceiro está sujeita ao cumprimento de alguma formalidade legal sob pena de nulidade.

19.ª A primeira questão de direito sob apreço atinente ao conceito de programa original mostra-se de acentuada pertinência e deveras fundamental uma vez que para que uma obra autoral, como o programa de computador, tenha proteção jurídica, é necessário que obedeça ao requisito da originalidade e a este propósito, conforme bem refere o Acórdão recorrido, “nem a Diretiva n.º 91/250/CEE, nem o DL n.º 252/94 de 20 de outubro “(…) indicam o que seja um programa «original, no sentido em que é o resultado da criação intelectual do autor», ou o que seja um programa de computador com «carácter criativo»”.

20.ª Acresce que, tal conceito de “originalidade”, por demais primordial para efeitos de reconhecimento da proteção jurídica dos programas de computador, prevista no Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, não tem sido detalhadamente tratado pela jurisprudência, constituindo questão com relevância jurídica a justificar pronúncia pelo Supremo Tribunal de Justiça.

21.ª A segunda questão fundamental de direito em apreço, objeto de controvérsia doutrinal e jurisprudencial, prende-se em saber se a autorização para transformação de um programa de computador concedida pelo seu titular a terceiro está sujeita deve ser reduzida a escrito e a este propósito, refere o Acórdão recorrido que “ainda que não resulte dos factos provados uma autorização expressa da R. no sentido de a A. utilizar e transformar o SIGRes3e, depreende-se desses factos que implicitamente essa autorização foi concedida”.

 22.ª Em causa esta a apreciação do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de outubro, em especialoseun.º2,aqual tem gerado divergências interpretativas, nomeadamente sobre se o elenco de disposições legais do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos para os quais remete é um:

(i) elenco fechado, como sustenta Luiz Francisco Rebello, excluindo, por esse motivo, do universo de normas aplicáveis aos negócios relativos a direitos sobre programas de computador, os artigos 41.º e 169.º do CDADC que exigem a forma escrita para a autorização concedida pelo titular do direito de autor para efeitos de utilização e transformação da obra autoral; ou se, pelo contrário,

(ii)o elenco meramente exemplificativo, como sustenta Tiago Bessa uma vez que o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos se aplica de forma transversal aos negócios relativos a direitos sobre programas de computador.

23.ª As consequências legais associadas à inobservância do formalismo associado aos negócios jurídicos de autorização para efeitos de utilização, divulgação, publicação, exploração e transformação por terceiro de obras autorais não são pacificas na jurisprudência e doutrina portuguesas.

24.ª Para autores como Luiz Fernando Rebello e António de Macedo Vitorino a exigência de forma escrita ínsita nos artigos 41.º, n.º 2 e 169.º, n.º 2, ambos do CDADC, para os negócios jurídicos de autorização a terceiro tem uma mera eficácia ad probandum e não ad substantiam.

25.ª Por sua vez, autores como Maria Victória Rocha61 e Tiago Bessa são da opinião dequecomooartigo220.º do Código Civil estabelece que “a declaração negocial que careça a forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”, e, concomitantemente, os artigos 41.º, n.º 2, e 169.º, n.º 2, do CDADC impõe a forma escrita para as autorizações concedidas a terceiros, então há que concluir que caso a declaração negocial não respeite esta formalidade o negócio jurídico encontra-se ferido com o vício da nulidade.

26.ª Posto isto, a relevância jurídica desta segunda questão de direito e do seu impacto numa melhor aplicação do direito resulta, desde logo, do dissenso verificado na doutrina quanto à interpretação jurídica que os supramencionados artigos merecem a respeito não só do formalismo legal associado ao ato de autorização a terceiro para efeitos de transformação de programa de computador, como também das consequências jurídicas associadas ao eventual não cumprimento da referida formalidade legal, o que, por sua vez, se afigura claramente indiciador do surgimento de jurisprudência contraditória acerca desta temática.

27.ª Resulta do exposto que as questões em apreço assumem relevância jurídica que padece de um tratamento doutrinal e jurisprudencial de molde a se lograr atingir um consenso em termos de servir de orientação para as pessoas que participam e lidam com o tráfego comercial de obras autorais, mormente, de programas de computador, a fim de tomarem conhecimento dos requisitos e exigências definidos, o que também reveste ainda particular relevância social uma vez que as questões têm interesse comunitário significativo que ultrapassa a dimensão inter partes do presente caso concreto, motivo pelo qual deverá ser admitido o presente recurso em respeito pelas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

28.ª De acordo com o entendimento do Tribunal recorrido vertido no aresto ora impugnado o facto de o programa SIGMA se configurar como uma evolução do SIGRes3e, com as mesmas funcionalidades do SIGRes3e, mas, a par disso, com “novas funcionalidades e oito novos módulos” permite concluir que se trata de uma “obra derivada”, não resultando da matéria de facto julgada provada nos presentes autos que o SIGMA “não tenha na sua expressão uma transformação criativa por parte do A.”.

29.ª Salvo o devido respeito, o que não resulta dos factos provados é que o SIGMA, uma evolução, ou antes, uma réplica do SIGRes3e – que é propriedade da Ré -“feito por encomenda à medida das necessidades da Ré” tenha na sua expressão uma transformação criativa por parte da Autora.

30.ª O conceito de “criatividade” não está por demais desenvolvido nem na doutrina nem na jurisprudência, não havendo também noções legais que possam ser utilizadas de forma acrítica; assim sendo, e atendendo às especificidades do caso, torna-se importante que tal densificação seja feita pelos técnicos na matéria que, aqui, são os peritos (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07.10.2007).

31.ª Ora, no caso sub judice o recurso à prova pericial, e bem assim, à demais prova produzida em julgamento, permitiu apurar que a Autora, ao contrário do acordado, trabalhou sobre o programa de base que era da Ré, ao qual apenas acrescentoualguns módulos em jeitode atualização eredenominoude “SIGMA”, de tal modo que o SIGMA é uma réplica do SIGRes3e!

32.ª Réplica essa que, não obstante eventuais desenvolvimentos verificados entre o programa SIGRes3e analisado na versão de 02.07.2007 (anterior à data do contrato) e o programa SIGMA analisado na versão posterior a agosto de 2010 (2 anos posterior à data do contrato), apresenta cerca de 80% de correspondência ao nível do código fonte e identificadores únicos do SIGRes3e.

33.ª Código fonte e identificadores únicos esses que representam o código genético da aplicação e que revelam sem margem para dúvidas que o SIGMA tem o código genético do SIGRes3e.

34.ª Com efeito, da perícia que procede à análise comparativa dos programas SIGMA e SIGRes3e resultou que:

• «O SIGRes3e apresenta-se dividido em 6 módulos, estando presentes no SIGMA módulos de igual nome» (fls. 1202 v.);

• «74,8% dos ficheiros do SIGRes3e têm correspondente, em nome, no SIGMA» (fls. 1202 v.);

• «(...) no universo de ficheiros relevantes para análise de conteúdo, 88,0% de ficheiros do SIGRes3e têm correspondente, em nome, no SIGMA” (fls. 1203);

• «Ou seja,

73,5% dos ficheiros relevantes no código fonte do SIGRes3e tem o seu conteúdo replicado total ou parcialmente no SIGMA;

83,3% dos identificadores únicos dos módulos do SIGRes3e estão presentes nos módulos de igual nome do SIGMA;

94,6% do conteúdo visual do SIGRes3e está presente no SIGMA;

88,9% do conteúdo documental do SIGRes3e está presente no SIGMA, total ou parcialmente.» (fls. 1203 v.);

• «A análise permitiu verificar que 100% dos objetos estão presentes no SIGMA, total ou parcialmente.

No caso das Tabelas, 91 (100%) têm a sua estrutura (colunas, índices, constraints, chaves primárias e chaves secundárias) replicada no SIGMA

No caso dos procedimentos, 264 (58,7%) apresentam-se inalterados no SIGMA, e 186 (41,3%) apresentam pequenas alterações.

No caso das Funções, 100% apresentam-se inalteradas no SIGMA» (fls. 1204)

35.ª Em sede de conclusões da perícia é ainda salientado que:

«Os identificadores únicos (e universais) de 5 dos 6 módulos do SIGRes3e são os mesmos dos módulos de igual nome no SIGMA, oque permite concluir que estes módulos serviram de base no desenvolvimento do SIGMA. Caso se tratasse de um novo desenvolvimento, os identificadores únicos seriam forçosamente diferentes.

A ocorrência de grandes semelhanças na estrutura dos ficheiros e diretorias, bem como a total replicação dos objetos de Base de Dados no SIGMA, têm também um peso relevante no resultado da perícia.

Relativamente aos ficheiros de conteúdo visual (apesar de este ser um tipo de conteúdo que é comum encontrar replicado em diversas aplicações), a total replicação dos ficheiros do SIGRes3e no SIGMA, em termos de quantidade e localização dos ficheiros, é também um facto relevante para a perícia.

Por último, nos ficheiros de tipo de conteúdo documental, importa referir que nos 8 ficheiros cujo conteúdo se encontra replicado no SIGMA, em 5 deles o ficheiro é o mesmo (e que incluem todos em rodapé o logótipo da I...), e nos restantes 3, o logótipo da I... foi removido ou substituído pelo da SIGMA.» (fls. 1204 e 1204 v.)

36.ª Se tal não bastasse para concluirmos que, comparadas as propriedades dos programas, não há margem para originalidade, criatividade ou novidade do SIGMA, atentemos nas respostas que os peritos deram aos seguintes quesitos:

d. Queiram os Senhores Peritos esclarecer se a implementação do SIGMA representou um aperfeiçoamento e melhoramento do SIGRes3e ou se, pelo contrário, se trata de um sistema completamente novo de raiz? (arts.16º, 17º, e 31º da Base Instrutória).

Resposta: é um aperfeiçoamento e melhoramento

«e. Queiram os Senhores Peritos esclarecer se o software de base do SIGME era o do SIGRes3e? (arts. 16º e 17º da Base Instrutória)

Resposta: Sim»

n. Queiram os Senhores Peritos esclarecer se o SIGMA, enquanto software aplicacional de desenvolvimento do SIGRes3e, foi encomendado como tal e foram efetuados posteriormente desenvolvimentos à medida das necessidades da Ré – adjudicados e contratados separadamente? (arts. 2º e 14.º da Base Instrutória)

Resposta: A pergunta parece-nos estar mal formulada, devendo ser substituída a referência “software aplicacional de desenvolvimento do SIGRes3e” por “software aplicacional de desenvolvido com base no SIGRes3e”, dado que a pergunta tal como está formulada indica que o SIGRes3e foi baseado no SIGMA, o que não é correcto.

Considerando esta correção, apenas podemos responder à parte “e foram efetuados posteriormente desenvolvimentos à medida  das necessidades da Ré”, sendo a resposta sim.»XI O software SIGMA da Autora é uma cópia do programa SIGRes3e de 2007 ou anterior?

Resposta. O SIGMA não é uma cópia, mas sim uma evolução da versão do SIGRes3e analisada, que foi atualizada pela última vez em 2007.

37.ª Importa também salientar que foi realizado um desenvolvimento aplicacional sobre o software SIGRes3e entre 02.07.2007 (data da versão analisada) e 22.08.2008 (data do contrato referido no facto provado em 5.º) correspondente, a pelo menos, à criação de 4 novos módulos (“WS authentication’, “utilizadores”; “avisos” e “reports Amb3e”).

38.ª Tal, por sua vez, resulta devidamente demonstrado nos presentes autos por via dos esclarecimentos prestados pelos peritos, em sede de primeiro julgamento, por referência à data da versão do SIGMA analisada, que:

Perito 1: Ora… Portanto, relativamente aos 8 novos módulos introduzidos pelo Sigma, um a um, temos que o… o módulo ‘avisos’ teve desenvolvimentos entre Maio de 2008 e Maio de 2010, portanto, começou, portanto, o mais antigo que nós temos, que começou a ser feito foi então em Maio 2008, o…

Advogado: A Maio de 2010…

Perito 1: Maio de 2008. O ‘help interactivo’ entre Agosto de 2009 e Agosto de 2010; o ‘inquéritos gráficos’ entre Março de 2010 e Maio de 2010, o ‘inquéritos P…’

Advogado: Inquéritos?

Perito 1: ‘P’…

Advogado: ‘P’?

Perito 1: ‘P’,  a letra ‘P’ mesmo. Entre Abril de 2010 e Maio de 2010. O ‘LR’, letras ‘LR’…

Advogado: Não estou a perceber…

Juiz: L de Lima…

Advogado: L…

Juiz:  R de Romeu.

Advogado: Ah, de Romeu, R…

Perito 1:  entre Dezembro de 2009 e Março de 2010.

Advogado:  me…

Perito1: Oiça, portanto, o ‘LR’ entre Dezembro de 2009 e Março de 2010; o ‘utilizadores’ entre Abril de 2008 e Março de 2010; depois temos ainda o ‘WS authentication’ entre Fevereiro de 2008 e Março de 2010; e, por último, o ‘reports Amb3e’ entre Agosto de 2008 e Março de 2010.

(cfr. minuto 00:00 a 02:31 da Gravação Áudio do depoimento dos peritos na Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 15.11.2013, com início às 11:17:14 horas)

39.ª Ficou, assim, pericialmente comprovado que a versão do software SIGRes3e que foi analisada à data de 02.07.2007, não correspondia à versão do SIGRes3e em funcionamento (supostamente, até) à data do contrato 22.08.2008, e sobre o qual como vimos haviam efetuados, pelo menos, os seguintes desenvolvimentos aplicacionais:

(i) a partir de fevereiro de 2008 foi criado o módulo “WS authentication’;

 (ii) a partir de abril de 2008 foi criado o módulo “utilizadores”;

(iii) a partir de maio de 2008 foi criado o módulo “avisos”; e

(iv) a partir de agosto de 2008 foi criado o módulo “reports Amb3e”.

40.ª Sucede que o Tribunal recorrido ignorou o referido desenvolvimento aplicacional o que é grave, se tivermos em conta que, nesse período, o SIGRes3e sofreu uma evolução, correspondente, pelo menos, à criação de 4 novos módulos (“WS authentication’, “utilizadores”; “avisos” e “reports Amb3e”).

41.ª Esses 4 módulos foram criados sobre o software SIGRes3e – e não sobre o SIGMA – muitos meses antes da celebração do contrato relativo ao software “SIGMA”, como decorre do exposto e resulta, aliás, dos factos provados em 19 e 25.

42.ª Por outro lado, como vimos dos esclarecimentos prestados pelos peritos, à data do contrato (22.08.2008) o SIGMA”, não continha os restantes 4 novos módulos identificados na perícia, isto porque, como acima vimos:

(i) “HelpInteractivo” foi criado a partir de agosto de 2009;

 (ii) “LR” foi criado a partir de dezembro de 2009;

(iii) “Inqueritos/Graficos” foi criado a partir de março de 2010;

(iv) “InqueritosP” foi criado a partir de abril de 2010

43.ª Sintetizando, à data do contrato (22.08.2008):

(i) o SIGRes3e - software sobre o qual a Autora começou a laborar ainda em 2007, cabendo-lhe elaborar software aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das necessidades da Requerida –  continha 4 dos 8 “novos” módulos identificados na perícia, a saber “Avisos”, “Utilizadores” “WSAuthentication” e “ReportsAmb3e”; e

(ii) o SIGMA não continha ainda os restantes 4 dos 8 “novos” módulos identificados na perícia, a saber “HelpInteractivo”, “Inqueritos/Graficos”, “InqueritosP” e “LR”.

44.ª Não deixa de ser curioso notar que a versão do SIGMA que foi analisada pelos peritos reporta-se a 2010, quando o contrato foi celebrado em 22.08.2008, não tendo sido possível analisar uma versão anterior uma vez que, convenientemente, o CD depositado pela Autora na ASSOFT – Associação Portuguesa de Software não continha o código fonte do programa (cfr. relatório pericial a fls. 1202), que deveria ter sido depositado junto da referida entidade, tal como contratualmente previsto de acordo com a Cláusula 8.ª, n.º 2,doAnexo I ao contrato de 22.08.2018.

45.ª Mais curioso ainda é que as especificações e o diagrama constante do contrato junto aos autos relativo ao SIGMA eram exatamente as mesmas do SIGRes3e que a I... Business Solutions – Soluções Informáticas, Lda. havia criado para a Ré, não havendo qualquer espaço para dar asas à imaginação, levando à criação de inovações inéditas, conforme referiu a testemunha AA, ……. da I... Business Solutions – Soluções Informáticas, Lda., criador do software SIGRes3e - confrontado, em repetição do julgamento, com o Anexo Adicional A) “Especificações SIGMA” do contrato celebrado entre a Autora e a Ré em 22.08.2008 (documento n.º 3 junto à Oposição à Injunção, a fls. 143):

Mandatária: eu queria que dentro destas especificações me identificasse aquilo que considera, se as reconhece, como sendo especificações do SIGRes3e.

AA: isto são especificações, posso mostrar este diagrama que está aqui faz parte integrante da proposta inicial que eu fiz para a AMB3E de fevereiro de 2006 em que este diagrama está aqui, quer ver, isto é a proposta que eu fiz.

Mandatária: é exatamente... é o mesmo diagrama?

AA: é o mesmo diagrama, exatamente.

 Mandatária: O mesmo desenho?

AA: Os mesmos nomes exatamente a mesma coisa.

(cfr. minuto 28:25 a 29:09 da Gravação Áudio do depoimento de AA na Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 25.05.2018)

46.ª Posto isto não pode a Ré conformar-se com o facto de o Tribunal recorrido ter feito tábua rasa da prova produzida nos presentes autos, concluindo pelo carácter original e criativo do programa de computador SIGMA,

47.ª Ainda para mais quando deu como provado que as alterações ao software eram feitas por encomenda e de acordo com as necessidades específicas da Ré.

48.ª Segundo afirma Maria Victória Rocha62 o conceito de originalidade, não obstante não exigir a verificação de uma especial criatividade, não se basta apenas com a existência de esforço, trabalho ou investimento, sendo necessário a existência de um espaço de liberdade para o autor desenvolver a sua atividade intelectual.

49.ª Como decorrência desta exigência, se a forma adotada for imposta pela função a atingir, não há qualquer espaço de liberdade para a individualidade do autor. Conclui, nesta senda, que tudo o que resulta de condicionamentos técnicos não será uma obra63.

50.ª Partindo da factualidade vertida nos presentes autos interpretada à luz do conceito de originalidade acima vertido mostra-se, por demais, evidente, que o programa SIGMA não se configura como uma obra protegida que mereça proteção jurídica, isto porque, por um lado, não é um programa novo e original, e, por outro lado, embora represente uma transformação, melhoramento ou aperfeiçoamento de um programa pré-existente SIGRes3e, não é criativo, logo não se qualifica como programa/obra derivado.

51.ª Comece por se referir que, sendo o SIGMA uma evolução do SIGRes3e, conforme assumido pelo Tribunal a quo no ponto 30.º da matéria de facto dada como provada, então ilógico seria afirmar que este é um “programa novo”, pois que o próprio conceito de evolução – enquanto processo de desenvolvimento de uma realidade pré-existente – supõe a prévia existência de um trabalho base, do qual os subsequentes partirão.

52.ª Mais, ainda que se considere que o SIGMA passou a correr numa framework mais evoluída de 2.0 em vez de 1.1 – o que cremos não ter resultado provado em especial, à data do contrato referido no facto provado em 5.- resulta manifesto que não estamos perante um programa “novo”, mas sim perante uma transformação do SIGRes3e que mais não é do que uma modificação, melhoramento e atualização do mesmo.

53.ª Não havendo obra, o SIGMA não é mais do que o SIGRes3e sujeito a algumas alterações, conforme confirmado pelos peritos quando afirmaram inequivocamente que «É um aperfeiçoamento e melhoramento64».

54.ª Não obstante, caso o SIGMA pudesse constituir uma obra, seria premente analisar o regime legal das alterações efetuadas a obras protegidas pelo direito de autor, porquanto dúvidas não restam de que o SIGMA consiste numa alteração e melhoramento do programa pré-existente SIGRes3e.

55.ª Ora, as alterações de obras encontram-se reguladas na Diretiva do Conselho n.º 91/250/CEE, de 14 de maio, relativa à proteção jurídica dos programas de computador, designadamente na alínea b) do artigo 4.º, onde se estabelecem três vicissitudes relativas aos programas de computadores: (i) tradução; (ii) adaptação; e (iii) ajustamentos ou outras modificações.

56.ª No plano nacional, prevê a alínea b) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, que o titular do programa pode fazer ou autorizar “qualquer transformação do programa e a reprodução do programa derivado”, sem prejuízo dos direitos de quem realiza a transformação.

57.ª José Alberto Vieira, acima citado, ensina que não há diferença material entre as redações dos normativos supramencionados, sendo que a expressão “transformação do programa de computador” contempla toda e qualquer modificação do mesmo, seja tradução, adaptação ou outro, sem limite de extensão da modificação operada.

58.ª Sucede, porém, que nem todas as transformações dão origem a obras derivadas que merecem tutela jurídica.

59.ª Ainda segundo José Alberto Vieira, a correção de erros, os melhoramentos do programa, as atualizações e as novas versões do mesmo consubstanciam transformações que não deverão, per si, dar origem a uma obra derivada, logo, a uma obra nova e, em consequênciauma obra original.

60.ª Até porque as novas versões e outras transformações não constituem uma nova obra para efeitos de proteção jurídica pelo direito de autor,

61.ª Mais, conforme já esclareceu, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão acima citado, “O carácter criativo da “obra”, a que alude o art. 1º do CDADC, depende de não constituir cópia de outra obra (requisito mínimo), não constituir o resultado da aplicação unívoca de critérios pré  estabelecidos, nomeadamente de natureza técnica, em que estejam ausentes verdadeiras escolhas ou opções do autor e traduzir um resultado que não seja óbvio, banal, e que, portanto, permita distingui-lo de outros, reconhecer-lhe uma individualidade própria, enquanto obra, independentemente do suporte material que a encerra.

62.ª De facto, como ensina José de Oliveira Ascensão, na obra acima citada, “a criação do programa de computador é uma tarefa de imaginação, inteligência e persistência”.

63.ª Em face do exposto, enquanto evolução do SIGRes3e, resultante apenas de meras transformações do SIGRes3e feitas por encomenda e de acordo com as necessidades específicas da Ré, o “SIGMA” não consubstancia um programa original, nem tão pouco uma obra derivada, uma vez que não contém carácter criativo, não merecendo, portanto, qualquer proteção jurídica.

64.ª Mesmo que se entenda que o SIGMA constitui uma obra derivada do SIGRes3e por exprimir uma transformação criativa - o que não se concebe mas por mera cautela de patrocínio se pondera – sempre se dirá que tal transformação não merece proteção jurídica uma vez que não foi objeto de autorização por parte da Ré.

65.ª Isto porque, não sendo a Autora titular do programa base “SIGRes3e, mas, ao invés, a Ré só poderia empreender quaisquer alterações ou transformações sobre o programa SIGRes3e sob a autorização da Ré ( cfr. artigo 5.º, al. b), do Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de outubro) – o que não sucedeu como se demonstrará em seguida.

66.ª A este respeito, entendeu o Tribunal a quo no aresto de que ora se recorre que a Autora procedeu à transformação do programa de software SIGRes3e, tendo para tal obtido autorização da Ré, a qual, mesmo que não resulte de forma expressa do contrato de licenciamento objeto dos presentes autos, decorre de forma implícita dos pontos de facto provados 43, 9, 19 e 37, ou seja, segundo o Tribunal a quo é possível retirar uma autorização implícita, isto é, uma declaração negocial emitida pela Ré sob a forma tácita com valor autorizante.

67.ª Em primeiro lugar, cumpre, desde já, adiantar que a referida autorização a que o Tribunal faz alusão nunca se poderia retirar da factualidade provada sob os pontos 43, 9, 19 e 37 uma vez que a referida factualidade não integra quaisquer comportamentos concludentes de uma vontade negocial de natureza autorizante para efeitos de transformação do programa de computador.

68.ª Note-se:

i) Facto 43 - refere que “O SIGRes3e foi desenhado de acordo com as necessidades específicas da actividade da ré e mediante encomenda.

Porém, conforme resulta do facto 32.º o SIGRes3e não foi desenhado pela Autora, foi antes desenhado pela I... e pela A...-Consulting  em 2006!

ii) Facto 9 - refere que “aquando da celebração do contrato referido em A), com a Requerente, disponibilizou-lhe um sistema informático desenvolvido por uma terceira”, porém o

iii) Facto 19 - refere que “A Requerente começou a laborar no sistema informático da Requerida ainda em 2007 e cabia-lhe elaborar software aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das necessidades da Requerida”,

Ou seja, o programa foi disponibilizado pela Ré à Autora pelo menos em 2007 e para fins de desenvolvimento de “software aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das necessidades da Requerida.”

iv) Facto 37 - refere que “O SIGMA tinha de ter as mesmas funcionalidades do sistema anterior, o SIGRes3e”.

O que não pode ser servir de desculpa para que a Autora tenha feito a Ré crer que esta tinha criado um programa original que afinal mais não era do que uma transformação/réplica não autorizada do programa da Ré, muito menos, tal poderá fundamentar qualquer autorização da Ré nesse sentido.

69.ª Como está bom de ver, de tais factos não é possível concluir pela existência de uma autorização, antes pelo contrário.

70.ª Conforme resulta dos factos provados, no contrato celebrado entre as partes, no qual a Ré referiu que era titular de um software denominado “SIGMA” e licenciando o mesmo à Autora – quando o SIGMA afinal era o SIGRes3e “camuflado” pela Autora ao invés de qualquer autorização as partes acordaram, antes, que “os direitos de autor do software já utilizados por qualquer das Partes Contratantes, bem como quaisquer marcas que já tenha registadas a seu favor, são da sua exclusiva titularidade, obrigando-se a outra Parte Contratante a respeitá-las, salvo se diferente decorrer nos termos da legislação vigente aplicável” (Cláusula 4.º do contrato reproduzido no facto provado em 5.º).

71.ª Por força do exposto, é manifesto que a Ré nunca concedeu a referida autorização à Autora, muito menos para transformar o SIGRes3e que é da titularidade da Ré com vista a que a Autora, camufladamente, o rebatizasse de SIGMA, se arrogasse titular do mesmo e o passasse a explorar cobrando indevidamente à Ré valor a título de licenciamento de um programa que afinal mais não era do que o programa de que a Ré é a titular ou, pelo menos, a titular do programa originário SIGRes3e.

72.ª Apurar se os comportamentos vertidos nos pontos 43,9,19 e 37 da factualidade julgada comoprovada integram ounãouma declaraçãonegocialtácita équestão de direito,a resolver em sede de interpretação,ao abrigo da teoria da impressão do destinatário,por referência aos artigos 236.º, 237.º e 238.º, n.º 1, do Código Civil.

73.ª Ora, com o devido respeito pela conclusão a que se chegou no aresto impugnado, dos factos provados não é possível concluir por qualquer comportamento que traduza ou revele, com toda a probabilidade, uma intenção de a Ré autorizar a Autora à criação de um programa através da mera transformação do programa de computador SIGRes3e que pertencente à Ré.

74.ª Ademais, o juízo presuntivo elaborado pelo Tribunal recorrido, ofende as mais basilares regras da experiência da vida, já que, nenhum homem médio e razoável concordaria em celebrar um negócio jurídico oneroso com o fito de exercer um determinado direito sobre um certo bem ou coisa, mormente de utilização e transformação, sabendo, de antemão, que esse bem ou coisa é uma réplica de um que já possui para além de que, por se tratar de uma réplica, pode lograr exercer esse direito independentemente do referido negócio jurídico, uma vez que é titular ou proprietário do referido bem.

75.ª Consequentemente, ao contrário do entendimento vertido no aresto recorrido, não se pode dizer que houve uma autorização tácita/implícita da Ré à Autora para que esta procedesse a uma transformação do programa de software SIGRes3e.

76.ª Nestes termos, não sendo a Autora titular do programa base SIGRes3e, à mesma não pode ser reconhecida qualquer proteção legal relativamente às alterações que efetuou, sem autorização, sob o programa “SIGRes3e.

77.ª Caso assim não se entenda – o que não se aceita e por mera cautela de patrocínio se pondera – sempre se diga que os referidos comportamentos concludentes não se retiram de um documento escrito, em claro desrespeito pela formalidade legal aplicável à autorização a terceiro para efeitos de transformação de programa de computador, culminando, assim, na nulidade da autorização.

78.ª O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) prevê o exercício do direito de autorização do autor e suas formalidades legais não só para efeitos de tradução, arranjo instrumentalização, dramatização, cinematização e, em geral, qualquer transformação (cfr. artigo 169.º) como também para efeitos de divulgação, publicação utilização ou exploração da obra (cfr. artigo 41.º).

79.ª Ora, quer o n.º 2 do artigo169.º, como o n.º 2 do artigo 41.º, ambos do CDADC, exigem a forma escrita para a autorização concedida pelo titular do direito de autor.

80.ª Daqui se obtém que, ao abrigo do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, a autorização para efeitos de transformação por terceiro da obra autoral está sujeita a forma escrita.

81.ª Sucede, porém, que, o Tribunal recorrido considera que o regime jurídico especialmente estabelecido para efeitos de proteção autoral dos programas de computador aprovado pelo Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de outubro que prevê no seu artigo 5.º, alínea a) o direito do titular do programa de computador de autorizar “qualquer transformação do programa e a reprodução do programa derivado, sem prejuízo dos direitos de quem realiza a transformação”, não carece qualquer formalismo legal, nem de forma escrita.

82.ª Sustentando tal entendimento, o Tribunal refere, em nota de rodapé, que como mencionam Garcia Marques e Lourenço Martins “parece ter havido um propósito de reduzir as formalidades nos negócios relativos a direitos sobre programas de computador, quer no tocante à necessidade de escritura pública quer de simples documento escrito” – porém, os mesmos não deixam de aduzir à forma escrita

83.ª Com efeito, na obra acima citada, Garcia Marques e Lourenço Martins a respeito da autonomia privada e das formalidades legais aplicáveis aos negócios jurídicos que têm por objeto programas de computador, tomam como ponto de partida o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de outubro, em especial o seu n.º 2, ao estabelecer que “são aplicáveis a estes negócios [relativos a direitos sobre programas de computador] as disposições dos artigos 40.º, 45.º a 51.º e 55.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos”.

84.ª Para de seguida afirmarem que “a indicação de certos artigos do CDADC pode inculcar o juízo fácil da interpretação a contrario. Os preceitos mencionados neste n.º 2 são aplicáveis aos negócios jurídicos sobre programas de computador, parecendo ter havido um propósito de reduzir as formalidades nestes negócios, quer no tocante à necessidade de escritura pública, quer de simples documento escrito. Repare-se que no Projecto de lei n.º 395/VI a remissão para o CDACD era mais ampla – incluía também os artigos 41.º, 42.º, 43.º e 44.º - o que implicava não serem dispensadas aquelas formalidades. Será, a nosso ver, precipitado extrair o argumento a contrario sensu de que não se aplicam outras regras do CDADC. Por exemplo, o próprio regime do artigo 42.º deste Código, na medida em que se reporta a “direitos morais” consagrados no artigo 9.º deste diploma, será aplicável, ou seja tais direitos não são transmissíveis nem oneráveis – cfr. também o n.º 3 do artigo 9.º e o n.º 2 do artigo 56.º do CDADC”(sublinhado e destaques nossos).

85.ª Daqui se retira que os autores citados pelo Tribunal recorrido não se comprometem nem aderem expressamente a uma solução com base na qual todas as disposições legais do CDADC que preveem formalidades e não constam do elenco definido no artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, não se aplicam aos negócios jurídicos que têm por objeto direitos sobre programas de computador – em especial a exigência de forma escrita para a autorização concedida pelo titular do direito de autor.

86.ª De tal modo que a interpretação que o Tribunal recorrido faz das palavras dos mencionados autores é uma interpretação incorreta e descontextualizada, e, por isso, sem qualquer valor operativo para efeitos de sustentação da posição de acordo com a qual a autorização a terceiro para efeitos de transformação de programa de computador não exige forma escrita.

87.ª Como bem ensina Tiago Bessa, o elenco de preceitos legais do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos para os quais o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, remete não é taxativo nem fechado uma vez que “esta remissão até poderia ser dispensável dada a aplicação transversal do CDADC”.

88.ª Veja-se que a aplicação transversal do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos aos negócios jurídicos que envolvem direitos relativos a programas de computador resulta, desde logo, do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20de outubro, nos termos do qual “aplicam-se ao programa de computador as regras sobre autoria e titularidade vigentes para o direito de autor.”

89.ª Mais, segundo o mencionado autor, “os artigos 40.º e segs, formam, assim, aquilo que poderíamos apelidar de parte geral do “Direito Contratual de Autor”.

90.ª Daqui se retira que o referido elenco de disposições legais do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos para o qual remete o artigo 11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, é meramente exemplificativo, e por isso, de parca utilidade, uma vez que o referido Código se aplica de forma transversal aos negócios relativos a direitos sobre programas de computador.

91.ª Impõe-se assim concluir que o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e, em especial, a exigência de forma escrita para a autorização para transformação da obra autoral da obra se mostra plenamente aplicável aos negócios jurídicos de autorização para transformação de programas de computador, em harmonia com o disposto no artigo 169.º, n.º 1, do CDADC aplicável ex vi artigo 3.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 252/94.

92.ª Neste sentido, autores como Maria Victória Rocha e Tiago Bessa são da opinião de quecomooartigo220.º do Código Civil estabelece que “a declaração negocial que careça a forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”, e, concomitantemente, os artigos 41.º, n.º 2, e 169.º, n.º 2,do CDADC impõem a forma escrita para as autorizações concedidas a terceiros, então há que concluir que caso a declaração negocial não respeite esta formalidade o negócio jurídico encontra-se ferido com o vício da nulidade.

93.ª Em suma, mesmo que se considere que a Ré realizou comportamentos de natureza concludente dos quais é possível retirar uma autorização à Autora para que esta procedesse a uma transformação do programa de software SIGRes3e – o que não se aceita e só por mera cautela de patrocínio se equaciona - sempre se terá de concluir que, como os referidos comportamentos concludentes não se materializaram num documento escrito, em claro desrespeito pela formalidade legal aplicável a este negócio jurídico, não se encontram verificados os pressupostos para, nos termos dos n.ºs 1e 2 do art. 217.º do Código Civil, se concluir pela existência legal de uma declaração tácita da Ré de natureza autorizante, o que, por sua vez, determina a sua nulidade.

94.ª Quer isto dizer que o alegado SIGMA não merece proteção jurídica, porquanto não consubstancia um programa original, nem tão pouco uma obra derivada, já que para se tratar de uma obra derivada, enquanto transformação criativa de uma expressão de programa anterior, carecia de uma autorização válida e eficaz por parte da Ré, o que não se verificou.

95.ª Do expendido supra, impõe-se concluir que o contrato sob análise é nulo, ao abrigo do disposto no artigo 280.º do Código Civil, não só por ser contrário à lei, como também por atentar contra a boa fé, a ordem pública, os bons costumes, o princípio da autonomia privada, e, por fim, por se configurar como legalmente impossível.

96.ª Como muito bem aduz o Tribunal recorrido no aresto ora impugnado, “a boa fé aqui aludida reconduz-se à boa fé objectiva a qual remete para princípios e regras que, como cláusula geral, devem ser observados. O entendimento das estipulações contratuais “de maneira conforme à boa fé” aponta para uma equilibrada ponderação dos interesses das partes na interpretação e integração do contrato, considerando-se os interesses legítimos de ambas as partes sem sacrifício injustificado de uma delas”.

97.ª Ora, as disposições contratuais vertidas no contrato em apreço, entendidas conforme a boa-fé, apontam para a contratação pela Ré à Autora dum software SIGMA novo e original pelo qual a Ré teria de pagar o preço da Licença.

98.ª Sucede que, como já se verteu supra, o programa contratado denominado de SIGMA não é um programa original, nem tão pouco uma obra derivada, sendo, ao invés, uma transformação não autorizada do programa SIGRes3e, em nada criativa e inovadora.

99.ª Ao contrário do entendimento vertido pelo Tribunal a quo, mostra-se devidamente demonstrado pela factualidade dada como provada que a Autora, de forma encapotada e dissimulada (i) utilizou o SIGRes3e, o qual lhe fora disponibilizado pela AMB3E para desenvolvimento aplicacional do software; (ii) atualizou o SIGRes3e introduzindo-lhe outras funcionalidades e depois redenominou-o de SIGMAfazendo crer à Ré que havia criado um programa novo que foi objeto do contrato de licenciamento aqui em apreço, quando, na realidade, não passava de uma mera modificação, melhoramento e atualização do mesmo.

100.ª Quer isto dizer que o SIGMA e o SIGRes3e são, afinal, apenas uma obra, um e apenas um programa de computador, não sendo autonomizáveis, pelo que o titular dos direitos de autor destes dois softwares mantém-se o mesmo, a Ré.

101.ª Assim sendo, a admitir-se válido o objeto do contrato de licenciamento sob análise, teríamos de admitir que a Autora estaria a licenciar à Ré um programa cuja titularidade já era da Ré na sua maior parte.

102.ª Ora, repugna à consciência jurídica geral que o exercício pela Ré de uma das faculdades inerentes à qualidade que dispõe enquanto titular do programa de computador SIGMA, mais precisamente, o direito à sua utilização, fique subordinada ao recebimento de uma contrapartida por parte da Autora, sob a forma de preço de Licença, quando a Autora não dispõe de quaisquer direitos de autor sobre o SIGMA que lhe confiram uma qualquer proteção legal.

103.ª Efetivamente, a generalidade das pessoas corretas, sãs e de boa fé tem a perfeita noção de que há determinados comportamentos que se encontram à margem do comércio jurídico por não poderem ser objeto de relações obrigacionais (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2004).

104.ª Pelo exposto, impõe-se concluir que o contrato de licenciamento objeto de análise nos presentes autos é nulo ao abrigo do disposto no artigo 280.º do Código Civil, por ser contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes, excedendo flagrantemente os limites se impõem à própria autonomia privada e liberdade contratual, violando de modo grosseiro as regras da boa fé e as mais elementares regras éticas adotadas na vivência de uma sociedade honesta, respeitadora e que faz pautar como matriz fundamental e nuclear da sua vivência diária a boa fé e a tutela da dignidade humana.

105.ª Por fim, cumpre ainda referir que, ao contrário do entendimento firmado pelo Tribunal recorrido, o negócio jurídico sob apreço é também nulo por contrário à lei e por impossibilidade legal.

106.ª Em primeiro lugar, cumpre referir que o negócio jurídico em apreço é contrário à lei pois (i) viola as regras legais sobre autoria e titularidade dos programas de computador, nomeadamente, o direito de autor da Ré sobre o software de base SIGRes3e e (ii) consubstancia uma transformação não autorizada do referido programa.

107.ª Em segundo lugar, o negócio em causa é legalmente impossível porquanto a Autora não tem qualquer direito a licenciar à Ré um programa de computador que pertence a esta última.

108.ª Como já se referiu supra, o SIGMA e o SIGRes3e são, afinal, apenas uma obra, um e apenas um programa de computador, não sendo autonomizáveis, pelo que o titular dos direitos de autor destes dois softwares mantém-se o mesmo, a Ré.

109.ª De facto, é um princípio geral nos negócios que ninguém pode transferir para outro um direito que o não tenha como seu. Este princípio traduz a impossibilidade de o adquirente obter qualquer direito quando nenhum direito pertence ao transmitente, nem obter mais direitos do que este detém.

110.ª Nesta conformidade e porque desde o início do negócio a Autora não era titular de direitos de autor sobre o SIGMA existia a impossibilidade legal de a Autora lograr transmitir a faculdade inerente à utilização e disponibilização do programa de software à Ré, gerando-se, assim e desde logo, impossibilidade objetiva da prestação da Autora, o que, por sua vez, dada a relação sinalagmática entre as prestações, gera a consequente nulidade do contrato (nulidade originária).

111.ª Razão pela qual se impõe concluir que o contrato de licenciamento objeto dos presentes autos deve ser declarado nulo, nos termos e para os efeitos do artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil, por impossibilidade legal originária.

112.ª Nestes termos, deverá a  AMB3E ser totalmente absolvida do pedido e, consequentemente, a Autora ser condenada no pedido reconvencional formulado na alínea f), reduzido ao valor das faturas liquidadas pela AMB3E

E conclui:

a) “Deverá ser o Acórdão recorrido reformado, ou, caso assim não se entenda, revogado, quanto a custas, determinando-se a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais.

b) Deverá ser declarada a nulidade do douto Acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos termos e com as consequências legais previstas nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte e 617.º, aplicáveis ex vi artigo 666.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil e;

c) Deverá ser revogado o Acórdão recorrido, sendo substituído por outro que (i) declare a nulidade do objeto e respetivo negócio jurídico, (ii) absolva a Ré, ora Recorrente, do pedido; (iii) condene a Autora, ora Recorrida, no pedido reconvencional formulado na alínea f), reduzido ao valor as faturas liquidadas pela Recorrente por conta do licenciamento do SIGMA, que totalizam € 582.159,00; (iv) reconheça o direito da Ré Recorrente sobre o software”.

16. A Recorrida Sigma – Soluções Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unipessoal, Lda. contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. Importa, antes de mais, ter em consideração que estes autos já se prolongam há cerca de 10 anos, tendo já sido objecto de 5 decisões judiciais distintas (4 das quais totalmente favoráveis à Autora)!

2.ª A Ré tem utilizado todos os expedientes possíveis (invertendo a sua defesa e alterando sucessivamente a sua linha argumentativa) no sentido de adiar o cumprimento das suas obrigações e sobrecarregar a Autora com despesas excessivas, tentando vencê-la pelo cansaço e pela esgotamento financeiro.

3.ª Assim, deverá este Tribunal superior analisar a evolução do presente processo, apreciar a posição que tem vindo a ser assumida pela Ré ao longo de todos estes anos e colocar um ponto final neste litígio, obrigando a Ré a cumprir – em definitivo – as obrigações que assumiu e a pagar o que deve à Autora.

4.ª Os argumentos ora esgrimidos pela Ré, nas suas doutas alegações, alteram substancialmente a posição que foi inicialmente assumida nos presentes autos e contradizem o que foi declarado por si em sede de contestação/reconvenção.

5.ª Se inicialmente a Ré assume ter contratado à Autora a «evolução do seu sistema informático» (artigo 65.º da contestação), pretendendo que fossem executados pela Autora «aperfeiçoamentos e melhoramentos» no programa SIGRes3e (artigo 67.º da contestação), agora pretende fazer crer que o que foi contratado à Autora foi a criação de um programa de raiz, totalmente independente e distinto do programa SIGRes3e.

6.ª A Ré sempre pugnou por que lhe fosse reconhecida a propriedade ou a titularidade do programa SIGMA, o que, naturalmente, pressupõe o entendimento de que o mesmo tem originalidade suficiente para ser objecto de protecção legal, isto é, para poder ser objecto de propriedade / direitos de autor.

7.ª Sucede que a Ré, percebendo a evolução que o presente processo teve, a posição assumida pelo Tribunal de 1.ª Instância sobre esta matéria, os esclarecimentos pretendidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e o malogro da sua linha argumentativa inicial, muda de direcção, colocando enfoque num aspecto que entende lhe poderá ser mais favorável: fazer crer que a Autora deveria ter criado um programa informático a partir do zero, sem qualquer relação com o anterior que colocou à sua disposição.

8.ª Em lado algum resulta provado (ou indiciado sequer) que a Autora alguma vez se tivesse obrigado a entregar à Ré um programa informático radicalmente novo, elaborado a partir do zero, cem por cento original e protegido pelo Direito de Autor, sob pena de nada ter a receber pelo conjunto dos serviços informáticos comprovadamente prestados e facturados à Ré.

9.ª Ao contrário do que alega a Ré, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a nova argumentação tecida pela Ré nas suas conclusões CCCC e DDDD do recurso de apelação interposto, tendo esclarecido, de forma fundamentada, que a mesma não podia ser, nesta fase, tida em consideração pelo Tribunal de recurso, o qual não tem legitimidade para apreciar questões novas.

10.ª Assim, não existe qualquer omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo, o qual, fundamentadamente, esclareceu as razões que o levaram a não apreciar esta nova questão levantada pela Ré.

11.ª Ademais, é um facto que a Autora e Ré acordaram no pagamento de um valor fixo pelos serviços prestados no âmbito do desenvolvimento do programa SIGMA e no pagamento de um valor por utilizador que variava em função dos módulos utilizados, pelo que tais valores são efectivamente devidos pela Ré à Autora.

12.ª A presente acção tem como causa pedir o não pagamento de vários serviços informáticos prestados pela Autora à Ré (ponto 19.º dos factos provados), os quais foram efectivamente prestados (ponto 25.º dos factos provados).

13.ª Em conformidade, o pedido consiste apenas na exigência do pagamento da parte do respectivo preço que não foi confessadamente pago pela Ré (pontos 4.º e 15.º dos factos dados como provados), acrescido dos respectivos juros de mora.

14.ª O recurso não é o lugar apropriado para se alterar a causa de pedir da reconvenção (que passaria do erro na celebração de um contrato para a inexistência de protecção jurídica do programa SIGMA) e o próprio pedido dessa reconvenção (que passaria da anulação, por erro, do contrato celebrado para a inexistência jurídica do direito objecto desse contrato.

15.ª Este comportamento errático da Ré revela bem a fragilidade da sua posição e falta de sustentação dos seus argumentos, devendo ser tido em consideração pelo Tribunal ad quem na reapreciação da decisão adoptada pelo Tribunal a quo, que se limitou a decidir tendo em conta a posição assumida pela Ré na sua contestação/reconvenção e não sobre os novos argumentos ora formulados.

16.ª Não se encontram verificados os pressupostos que fundamentem o recurso excepcional de revista ora interposto pela Ré.

17.ª A Ré não invoca expressamente as concretas divergências jurisprudenciais e doutrinais que diz existirem, relativamente ao conceito de programa original ou à necessidade de autorização escrita para a transformação de um programa de computador, divergências suficientemente profundas para serem capazes de justificar a necessidade do recurso excecional que pretende interpor.

18.ª Assim, concluímos que não estão verificados (ou, pelo menos, não foram alegados) os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso excecional de revista, pelo que a pretensão da Ré deve ser indeferida liminarmente, tal como dispõe o n.º 2 do art.º 672º do CPC.

19.ª O STJ é, como sabemos, um Tribunal de revista, que tem competência para conhecer apenas matéria de direito (artigos 6.º da LOSJ e 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 2 do CPC), pelo que deverão ser desconsiderados todos os pontos em que a Ré questiona a matéria de facto dada como provada e em que invoca, para sustentar a sua posição, o que foi dito pelas testemunhas ou o que consta do relatório de inspecção.

20.ª O presente recurso assenta basicamente no argumento de que o programa desenvolvido e licenciado pela Recorrida à Recorrente (o SIGMA) não consubstancia um programa original, nem tão pouco uma obra derivada protegível pelo Direito de Autor (cfr. nº 183, p. 47 das doutas alegações de recurso).

21.ª Como explicita a doutrina, uma obra derivada é, por definição, uma obra original (em relação àquela de que deriva, naturalmente), na medida em que resulta da transformação (alteração substantiva e substancial) de uma obra preexistente, resultando numa nova criação, que goza de perfeita autonomia para efeitos de protecção pelo Direito de Autor.

22.ª A correcção de erros, a adição de módulos e introdução de novas funcionalidades, etc. num programa de computador é um exemplo típico da introdução de alterações substanciais em obras desta natureza (prática e não artística).

23.ª Mesmo que se entenda a obra derivada como uma modalidade da obra compósita (artº 20º CDADC), que incorpora, no todo ou em parte, uma obra preexistente, com autorização, mas sem a colaboração do autor desta (no caso, a Ré disponibilizou à Autora o programa anterior SIGRes3e, para que esta criasse um novo programa – o SIGMA –, não disruptivo em relação àquele, que veio substituir), a solução no nosso caso concreto seria, ainda assim, exactamente a mesma.

24.ª Os programas de computador, minimamente complexos, são sempre, hoje em dia, obras compósitas ou derivadas, na medida em que não podem prescindir da utilização de numerosos elementos          (“ferramentas”, “bibliotecas”, “rotinas”, bases de dados, linhas de código, etc.) que já existem e que não faria sentido voltar a elaborar a partir do zero.

25.ª Qualificado como obra derivada, o programa SIGMA teria de ser sempre considerado como uma obra original, em virtude do disposto no artº 3º, nº 1 do CDADC.

Acresce que

26.ª O TJUE tem reiteradamente afirmado que a originalidade de um programa de computador, para efeitos de protecção pelo Direito de Autor, se manifesta sempre que o mesmo, em todo ou em parte, possa ser imputado a um ou mais autores em concreto. Ou seja, quando a actividade que levou à sua elaboração tenha origem na pessoa do autor e não seja uma mera cópia, um lugar comum ou uma trivialidade, não se exigindo o cumprimento de qualquer outro requisito de mérito, qualidade ou esforço (vd. casos “Infopaq”, C-5/08, de 16.07.2009; “Painer”, C-145/10, de 07/03/2013, “Football Dataco”, C-604/10, de 01/03/2012 e Ac. “Nintendo”, C-355/12, de 23.01.2014).

27.ª A transformação de um programa será ou não criativa (obra original) consoante a individualidade que, no caso concreto, apresente relativamente ao programa anterior, que lhe serviu de «base». Bastará uma «originalidade mínima» para se dever entender que se está perante um programa merecedor de protecção jurídica.

28.ª Ora, um programa que desenvolveu, corrigiu, modificou e que acrescentou novos módulos e novas funcionalidades, como foi o caso do programa SIGMA em relação ao SIGRes3e (30 dos factos provados / perícia), e que, por via disso, permitiu resolver, de forma original e criativa, os inúmeros problemas / insuficiências que o programa anterior, que veio substituir, irremediavelmente apresentava (36 dos factos provados), acrescentando módulos que vieram a emprestar um conteúdo qualitativo (“evolução”) muito superior ao software anteriormente disponível (30 dos factos provados), sempre terá de considerar-se um programa substancialmente diferente daquele do qual partiu (o SIGRes3e), reflectindo uma actividade criativa e original dos seus autores.

29.ª Só a exasperada obsessão da Ré em não pagar a quantia que ainda deve à Autora pelos serviços prestados ou de protelar o seu pagamento, poderá levar à defesa de semelhante negação da realidade profusamente documentada nos presentes autos!

30.ª Por todas estas razões, concluímos também que não se verifica – ao contrário do que alega a Recorrente – nos termos do disposto no artigo 280.º do Código Civil, qualquer impossibilidade legal – originária ou superveniente – do objecto do contrato aqui em causa, não estando o mesmo ferido de qualquer vício que o invalide, soçobrando, em absoluto, o argumento errático da Recorrente, que invoca agora a nulidade do contrato «por impossibilidade legal do objeto uma vez que a Autora nunca obteve autorização da Ré para alterar o programa desta redenominando-o com vista à sua exploração, sendo assim nulo o objeto negocial e o respetivo negócio jurídico»!

31.ª E, como decidiu e bem, o Tribunal a quo, tal argumento contraria em absoluto a posição vertida pela Autora na sua contestação (artigos 65 e 66 da contestação), já que esta admitiu ter disponibilizado à Autora o programa SIgRes3e para que esta o desenvolvesse, aperfeiçoasse e melhorasse.

32.ª A sentença recorrida fez uma correcta apreciação, factual e jurídica, das questões a decidir, pelo que deve ser integralmente confirmada, improcedendo, em absoluto, as alegações de recurso ora apresentadas pela Ré.

17. A Recorrida Sigma – Soluções Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unip., Lda. veio requerer que se procedesse ao reenvio das questões de direito europeu que fundamentaram a admissibilidade do recurso de revista excecional para decisão prejudicial do Tribunal de Justiça da União Europeia, se não for entendido que já esteja esclarecida pela jurisprudência do TJUE o que deve entender-se por programa do computador original.

18. A Recorrente veio responder.

19. Cumpre apreciar e decidir.

 

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

 a) Saber se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia;

b) Saber se o SIGMA é ou não um programa de computador original;

c) Saber se o programa de computador SIGRes3e foi transformado pela Autora à revelia da autorização da Ré e se tal autorização estava sujeita à forma escrita;

d) Saber se o Acórdão recorrido deve ser reformado quanto a custas no sentido de ser dispensado o pagamento da taxa de justiça remanescente.

 


*



Já não poderá constituir objeto do recurso a alegada nulidade do contrato de licenciamento em causa nos autos nos termos do artigo 280.º do Código Civil uma vez que se trata de questão que não se mostra abrangida pela “excecionalidade”.

A Recorrente interpôs recurso de revista excecional ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.

Para tanto, elegeu apenas duas questões fundamentais de direito em relação às quais sustentou verificar-se a necessidade de intervenção do STJ por, apesar de existir dupla conforme, tais questões serem de manifesta complexidade e de difícil resolução, impondo-se, na respetiva subsunção jurídica, um detalhado exercício de exegese e interpretação, a saber: (i) o que deve entender-se por programa original; e (ii) se a autorização para transformação de um programa de computador concedida pelo seu titular a terceiro está sujeita ao cumprimento de alguma formalidade legal sob pena de nulidade.

Foi, portanto, sobre estas questões que recaiu o juízo da Formação de Juízes a que alude o n.º3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil no sentido de as mesmas revestirem relevância jurídica bastante para ultrapassar a barreira da dupla conforme, ficando, assim, justificada a intervenção, a título excecional, do STJ.

Em consequência, o objeto do recurso está limitado à apreciação dessas questões em relação às quais se verifica um ou mais dos fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil – e quando muito, às nulidades da decisão e à eventual reforma quanto a custas (artigos 615.º, n.º 4, e 616.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) – não podendo alargar-se a outras em relação aos quais esses fundamentos não se mostram preenchidos, porquanto só em relação às primeiras se justifica, não obstante a dupla conformidade de decisões, a intervenção do STJ.

Tal como o STJ afirmou, no Acórdão de 11 de abril de 2019 (Revista n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1), no caso de admissão excecional da revista, os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do art. 672.º do CPC.

Ora, no caso, as questões que a Formação (a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) considerou apresentarem relevo jurídico bastante para superar a barreira da dupla conforme foram apenas as que a Recorrente indicou, isto é, as de saber se o programa desenvolvido pela Autora é ou não suscetível de ser protegido por via do direito de autor e se o contrato celebrado entre as partes deve ser interpretado no sentido de implicar, necessariamente, a autorização para a autora desenvolver, aperfeiçoar e melhorar o sistema informático que já pertencia à recorrente.

Em consequência, não estando a questão da invocada nulidade do contrato nos termos do artigo 280.º do Código Civil abrangida pela dita excecionalidade, a dupla conformidade impede que dela se conheça (artigo 671.º, n.º 3, do Código Civil).

           

III Fundamentação

1. É a seguinte a factualidade dada como provada:

1.1. A Requerente emitiu à Requerida as seguintes faturas que as recebeu:

- Fatura n.º 38/……, emitida a 30.09.2009, com vencimento em 29.11.2009, no valor de € 39.954,00;

- Fatura n.º 42/……, emitida a 31.10.2009, com vencimento em 29.12.2009, no valor de €41.108,40;

- Fatura n.º 46/……, emitida a 2.12.2009, com vencimento em 30.01.2010, no valor de €41.607,60;

- Fatura n.º ……02, emitida em 8.01.2010, com vencimento em 9.03.2010, no valor de € 41.442,00. (Alínea AA) dos Factos Assentes)

1.2. A Requerente emitiu e enviou à Ré as faturas, que as recebeu:

- Fatura n.º ………07, de 01/02/2010, no valor de € 46.832,40;

- Fatura n.º ………14, de 04/03/2010, no valor de € 49.225,20;

- Fatura n.º ……...17, de 05/04/2010, no valor de € 50.419,20;

- Fatura n.º ……...21, de 03/05/2010, no valor de € 52.675,20;

- Fatura n.º ……24, de 01/06/2010, no valor de € 54.000,00 (BB)

1.3. A requerente emitiu e enviou à requerida a nota de crédito n.º 2 de 30/09/09, no valor de 1 836,00€. (CC)

1.4. A Requerida não pagou as faturas referidas em AA) e BB). (DD)

1.5. Com data de 22/08/2008, entre a requerida e a requerente, então denominada CTCI – Consultoria e Tecnologia de Comunicação Informações, Ld.ª, foi celebrado um contrato, do qual constam, entre outras, as seguintes cláusulas:

“Cláusula 1.ª (Objeto)

1. Pelo presente contrato, adiante designado como Contrato, a primeira Contratante adjudica à Segunda Contratante a prestação de serviços na área de informática, designadamente serviços de desenvolvimento, implementação e manutenção de software e hardware, helpdesk e formação, nos termos definidos nos Anexos ao Contrato que dele fazem parte na data da celebração ou venham a ser aditados, sendo as condições específicas de tais serviços objeto de aditamento ao Contrato, sob a forma de Anexo.

2. Os termos e condições da prestação dos serviços objeto do presente Contrato, bem como as obrigações, responsabilidades e exclusões, são especificamente reguladas nos respectivos Anexos, sem prejuízo da legislação vigente aplicável.

3. As Partes Contratantes reconhecem e delegam no Departamento Financeiro da Primeira Contratante a coordenação, acompanhamento e controlo da prestação de serviços da Segunda Contratante, efetuada ao abrigo do presente Contrato.

Cláusula 2. (Preço)

1. O preço da prestação dos serviços objeto do presente Contrato a pagar pela Primeira à Segunda Outorgante será o definido em sede do respectivo Anexo que, especificamente, regular os termos da prestação de serviços.

Cláusula 3.ª (Faturação e Condições de Pagamento)

1- A faturação do preço anual dos serviços prestados objeto do presente Contrato será feita em duodécimos, no primeiro dia do mês seguinte ao do mês da prestação dos serviços.

3. As faturas emitidas pela segunda Contratante serão liquidadas pela Primeira Contratante no prazo máximo de 60 (sessenta dias) a contar da respectiva emissão, por meio de transferência bancária para conta a indicar pela Segunda Contratante, considerando que a receção das mesmas pela Primeira Contratante não exceda 5 (cinco) dias úteis da respectiva data de emissão, caso em que a data de vencimento passará a ser contada a partir da efetiva receção.

5. Em caso de mora da Primeira Contratante na liquidação das faturas, a Segunda Contratante poderá suspender a prestação dos serviços objeto do presente Contrato, dependendo o seu reinício da efetiva cobrança dos valores em dívida, acrescidos de juros de mora à taxa legal.

Cláusula 4.ª (Direitos de Autor e Marcas)

1.Os direitos de autor do software já utilizados por qualquer das Partes Contratantes, bem como quaisquer marcas que já tenha registadas a seu favor, são da sua exclusiva titularidade, obrigando-se a outra Parte Contratante a respeitá-las, salvo se diferente decorrer nos termos da legislação vigente aplicável.

3. Sem prejuízo do dever de confidencialidade, a Primeira Contratante reconhece que a Segunda Contratante poderá adquirir conhecimentos técnicos na área de informática durante a vigência do presente Contrato, e que os poderá aplicar no decorrer da sua atividade na medida em que não colida com os direitos da Primeira Contratante.

4. Os eventuais direitos de autor que decorram das obras produzidas pela Segunda Contratante na execução do presente Contrato, para além das metodologias e ferramentas que já se encontram na titularidade desta, são propriedade exclusiva da Segunda Contratante, nos termos em que tal se verifique legítimo ao abrigo da legislação vigente aplicável e salvo disposição em contrário no Anexo correspondente ao serviço e/ou obra especificamente contratada.

Cláusula 11.ª (Resolução do presente Contrato)

2. Sem prejuízo do disposto na Cláusula Décima, qualquer das Partes Contratantes poderá resolver o contrato nos seguintes casos:

e) - Se o Conselho de Administração da Primeira Contratante deliberar, nos termos estatutariamente definidos, na resolução do presente contrato, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3. A resolução do presente Contrato nos termos do número anterior não prejudicará os direitos adquiridos e as obrigações contraídas pelas Partes Contratantes durante a vigência do mesmo e não impedirá a Parte Contratante não faltosa de reclamar da Parte Contratante faltosa quaisquer pagamentos em mora e indemnizações de qualquer espécie que lhe sejam devidas, incluindo reparações de danos emergentes, lucros cessantes ou aplicações de qualquer penalidade, multa ou sanção pecuniária, podendo a Parte não faltosa reter quaisquer quantias já recebidas.

4. A resolução do presente Contrato nos termos previstos na alínea e) do número 2 da presente Cláusula confere à Segunda Contratante o direito de ser indemnizada num montante nunca inferior ao equivalente do valor das prestações médias vincendas até ao final do período de vigência do presente Contrato, inicial ou de renovação, no momento da resolução unilateral.

Cláusula 15.ª (Relações comerciais)

1. Atendendo à especificidade da atividade desenvolvida e em respeito pelas regras da leal concorrência, as Partes Contratantes reciprocamente acordam e reconhecem que a Segunda Contratante abster-se-á, durante a vigência do presente Contrato, de prestar os serviços objeto do Presente Contrato e outros similares que, pela sua natureza, constituam potencial risco de lesar o dever de confidencialidade, a qualquer entidade concorrente da Primeira Contratante.

2. Para os efeitos previstos no número anterior, as Partes Contratantes consideram como entidade concorrente da Primeira Contratante e entidade que detenha Licenciamento para a atividade de gestão de REEE, atribuída pelo Governo Português, ou que assuma esse encargo em nome e por conta da Licenciada.

3. As Partes Contratantes reciprocamente acordam e reconhecem que a Primeira Contratante abster-se-á, durante a prestação de cada serviço específico contratado, de contratar, simultaneamente, a qualquer entidade concorrente da Segunda Contratante, a prestação de serviço específico que pela sua natureza constitua potencial risco de comprometer a boa execução do presente Contrato por parte da Segunda Contratante.

Anexo I

Licenciamento do Software «SIGMA»

Cláusula 1.ª (Objeto)

1.A Segunda Contratante, assumindo-se com plenos poderes para o efeito, licencia o direito de utilização do SIGMA, cuja Ficha de Especificações faz parte integrante do Anexo Adicional A, à Primeira Contratante para a gestão da sua atividade, adiante designada por Licença, nos termos e condições adiante acordados.

2.Sem prejuízo do n.º 2 da Cláusula 5.ª, a Segunda Contratante compromete-se a garantir, durante a vigência do Contrato e Anexo (s) e prestação dos respectivos serviços, sob qualquer circunstância a legitimidade para conferir a Licença à Primeira Contratante nos exatos termos ora contratados e livre de quaisquer ónus para com terceiros.

3. A Segunda Contratante prestará à Primeira Contratante os seguintes serviços, conexos e diretamente relacionados com a Licença ora cedida:

a) Organização da informação relativa à base de dados da Primeira Contratante, bem como o processamento da informação que lhe seja comunicada;

b) Administração da segurança interna do SIGMA;

c) Correção de todas as anomalias relacionadas com o funcionamento do SIGMA, originadas por causas diretamente imputáveis ao SIGMA ou ao seu normal funcionamento;

d) Disponibilização de novas versões ou atualizações das funcionalidades atualmente existentes, sempre que existam e conquanto sejam relevantes para a prestação dos serviços objeto do presente Contrato;

e) Esclarecimento de questões relacionadas com a utilização ou resolução de erros ou deficiências do SIGMA, através de um help-desk;

f) Serviço informativo relativo ao SIGMA, sobre melhoramentos e atualizações;

g) Fornecimento de atualizações e melhoramentos do SIGMA, quando estejam disponíveis;

3. A Segunda Contratante, durante o período de vigência da Licença, poderá trocar ou modificar os serviços contratados no âmbito da Licença, de forma a se adaptar aos avanços ou melhoramentos tecnológicos que se verificarem.

4. As partes expressamente reconhecem que a Licença, ora conferida, é extensível aos funcionários e demais colaboradores da Primeira Contratante e por esta legitimados para o acesso à respectiva área restrita.

5. Para os efeitos do número anterior, a Segunda Contratante acionará e atribuirá palavra-chave para o login dos utilizadores identificados pela Primeira Contratante através da respectiva Ficha de Pedido de Utilizador.

Cláusula 4.ª (Preço, faturação e condições de pagamento)

1. Nos termos das Cláusulas Segunda e Terceira do Contrato, o peço da Licença ora concedida e dos serviços contratados no seu âmbito é de EUR: 90.000, devidos em quatro tranches de 22.500 Euros, a pagar mensalmente, nos meses de Setembro a Dezembro de 2008.

2. Adicionalmente, será devido um valor mensal por utilizador comprovadamente registado na aplicação, variável em função do tipo de utilização, nos termos indicados no quadro abaixo a faturar, pela Segunda Contratante, nas condições previstas na Cláusula Terceira do Contrato.

Utilizadores Custo Mensal / Utilizador

Intranet

Financeira 85,00 €

Comercial 85,00 €

Gestão de Resíduos 85,00 €

Extranet

Aderentes 4,00 €

Centros de Receção 85,00 €

Operadores Logísticos 85,00 €

Unidades Tratamento e Valorização 85,00 €

3. No sentido do número 2 da Cláusula 1.ª, em circunstância alguma serão considerados devidos quaisquer valores a pagar pela Primeira Contratante a qualquer entidade que não seja a Segunda Contratante.

Cláusula 5.ª (Direitos de Autor e Marcas)

1. Sem prejuízo do disposto na Cláusula Quarta do Contrato, as Partes Contratantes expressamente reconhecem que:

a) O SIGMA é da propriedade exclusiva da Segunda Contratante;

b) Os Servidores e todos os seus componentes, documentação ou outros equipamentos que sejam disponibilizados e identificados à Primeira Contratante como parte da Licença são da propriedade exclusiva da Segunda Contratante;

c) Para efeitos da presente cláusula não são considerados quaisquer relatórios e demais documentos retirados ou processados pelo SIGMA que são da exclusiva propriedade e utilização da Primeira Contratante.

2. A Segunda Contratante deverá comunicar à Primeira, todas as alterações jurídicas a que seja sujeito o SIGMA, designadamente alienação e registo.

Cláusula 8ª (Cópia de segurança)

1. Nos termos da Licença ora concedida, a Primeira Contratante efetuará uma cópia de segurança do SIGMA, para fins de arquivo e desde que tal cópia seja realizada sob a supervisão da Segunda Contratante e contenha expressamente a referência aos direitos de propriedade e de distribuição do SIGMA dados a conhecer à Primeira Contratante pelo presente Anexo.

2. Não obstante os direitos de titularidade do SIGMA, a Segunda Contratante compromete-se a depositar na ASSOFT – Associação Portuguesa de Software, ou noutra entidade equiparada, uma cópia integral do Código-Fonte do SIGMA, que deverá ser substituída pela Segunda Contratante por uma versão atualizada de seis em seis meses.

3. Simultaneamente ao depósito previsto no número anterior, a Segunda Contratante compromete-se a admitir o acesso da Primeira Contratante ao Código-Fonte do SIGMA em caso de incumprimento definitivo do Contrato por parte da Segunda Contratante ou caso a Segunda Contratante encerre a sua atividade, devendo as demais condições ser definidas em contrato tripartido a celebrar para o efeito entre as Partes Contratantes e a ASSOFT – associação Portuguesa de Software, ou outra entidade equiparada, na qual seja efetuado o referido depósito.” (A)

1.6. A Requerida é uma associação, sem fins lucrativos, que se dedica à atividade de gestão de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos e recolha, tratamento, reciclagem e eliminação dos resíduos de pilhas e acumuladores, em todo o território nacional, tendo para o efeito implementado uma rede de centros para receção, separação seletiva e armazenagem de resíduos, tendo ligação a cerca de 90 operadores de gestão de resíduos. (B)

1.7. Neste contexto, o sistema informático utilizado e disponibilizado pela Requerida, constitui um mecanismo imprescindível para a prossecução da sua atividade e objetivos. (C)

1.8. Entre muitas outras valências, os Produtores acedem ao sistema informático para efetuarem as suas declarações trimestrais, sendo que as declarações trimestrais são confidenciais e estão à guarda da Requerida, numa base de dados informáticos concebida e especificamente desenvolvida para esse efeito. (D)

1.9. A Requerida, aquando da celebração do contrato referido em A), com a Requerente, disponibilizou-lhe um sistema informático, desenvolvido por uma terceira, por solicitação da Requerida, para tratamento informático integrado da gestão de resíduos elétricos e eletrónicos, de acordo com as necessidades específicas da atividade da Requerida. (E)

1.10. A “CTCI” foi registada em 22.01.2008, tinha como sócios com quotas de igual valor, de 2.000,00 euros cada, BB, CC e A... Consulting; em 15.07.2008, “A...” passou a deter a totalidade das quotas; em 12.09.2008, passou a ser gerente EE; em 10.10.2008, a totalidade das quotas passou para EE. (F)

1.11. CC é tio do ex-diretor Financeiro da Ré, o DD, ambos sócios fundadores da A... Consulting, Lda. (G)

1.12. Em 12.09.2008, o Sr. CC renunciou à gerência da empresa, assumindo tais funções a Sra. D. EE, com relação de grande amizade com o DD, que, a partir de 10.10.2008, se tornou sócia única e gerente única da sociedade, data em que a Autora se passou a designar como “SIGMA – Soluções Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unipessoal, Lda”. (H)

1.13. Em 25.02.2009, a mulher do ex-diretor Financeiro da Ré, FF, tornou-se Gerente da Autora. (I)

1.14. A Requerente, em 24.11.2008, requereu junto do INPI registo da marca SIGMA, o que lhe foi concedido em 13.03.2009. (J)

1.15. Desde Novembro de 2009 que a Requerida deixou de pagar à Requerente todas as faturas relativas ao licenciamento SIGMA. (N( �o:p>

1.16. A Requerida interpôs uma providência cautelar que correu os seus termos no …. Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial ……., sob o n.º 1201/10…….. e foi julgada, em 16.04.2010, improcedente. (N)

1.17. Nesse procedimento pretendia obter cópias dos códigos fonte do Software do programa “Sigma” existentes na sede da requerida, a fim de compará-los com os que estavam depositados na Assoft e que o tribunal ficasse depositário desses códigos códigos-fonte. (R)

1.18. A A... Consulting, Lda. (atualmente em liquidação) foi matriculada em 27.07.2007, tinha como sócios fundadores, com uma quota de €3.500,00 cada, BB, CC e DD. Em 20.12.2007, o sócio CC passou a deter a totalidade das quotas. Em 19.09.2008, EE passou a deter a totalidade das quotas. (O)

1.19. A Requerente começou a laborar no sistema informático da Requerida ainda em 2007 e cabia-lhe elaborar software aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das necessidades da Requerida. (P)

1.20. Foi por sugestão do então Diretor Financeiro, DD, que a ré contratou com a autora, então CTCI, o sistema informático a que se reporta o contrato referido em A). (Resposta ao ponto 1º da Base Instrutória).

1.21. Entre Setembro de 2007 e Fevereiro de 2008 foram prestados à Ré serviços de helpdesk e de formação, pela sociedade A..., da qual o ex-diretor financeiro da ré, DD, foi sócio. (3º BI)

1.22. A Requerida não tinha quadros ou dirigentes com conhecimento na área informática. (4º BI)

1.23. Uma das componentes do preço a pagar mensalmente à Requerente é o licenciamento do software de base. (7º BI)

1.24. Outra componente do preço é o licenciamento do software aplicacional desenvolvido para a Requerida no âmbito do contrato referido em A). (8º BI)

1.25. Entre Janeiro de 2008 e Outubro de 2009, a autora cobrou à ré, por vários serviços a seguir discriminados, o valor total de 2 110 767,46€ (IVA incluído):

a) - Licenciamento de utilizadores Extranet e Intranet, de Agosto de 2008 a Outubro de 2009, o valor de 553 386€;

b) - Projeto Sigma, de Agosto de 2008 a Outubro de 2009, o valor de 385 173,60€;

c) - Formação na aplicação Sigma para aderentes e UTV’s, Dezembro de 2008, o valor de 183 806,97€;

d) - Serviços de helpdesk e gestão de infraestruturas, de Dezembro de 2007 a Dezembro de 2008, o valor de 171 160€;

e)- Software – desenvolvimento aplicacional incluindo reestruturação do SI, de Março a Julho de 2008, o valor de 135 950€;

f) - Outsourcing TI e Consultoria SI, de Janeiro a Outubro de 2009, o valor de 180 000€;

g)- Licença da instalação do Sigma Digital, de Setembro a Novembro de 2008, o valor de 108 000€;

h) - Software (standard + desenvolvimento aplicacional), Janeiro e Fevereiro de 2008, o valor de 87 120€;

i) - Business Continuity Environment, de Maio a Julho de 2008, faturação totalmente anulada;

j) - Parametrização do sistema de informação, Maio a Julho de 2008, no valor de 57 920€;[1]

k) - Business (Impact Analysis + Continuity Plan) de Janeiro a Abril de 2008, o valor de 34 730€;

l) - Sistema de Monitorização de Segurança, de Abril a Julho de 2008, o valor de 36 250€;

m) - Formação Sigma, Setembro de 2009, 23 930,18€;

n) - Serviços de desenvolvimento aplicacional, Dezembro de 2007, no valor de 12 100€;

o) - Outros serviços, no valor de 141 240,71€. (10º BI)

1.26. O acompanhamento das relações da ré e a autora estava sob a alçada do ex-diretor Financeiro da ré. (11º BI)

1.27. Alguns dos pagamentos efetuados pela ré à autora não indicavam a que faturas se reportavam. (12º BI)

1.28. Parte dos pagamentos efetuados pela ré à autora através de transferência bancária foram por valores superiores a 10 000€ e, não obstante apresentarem autorização conjunta do diretor financeiro e do diretor geral da ré não continham a assinatura de um membro do conselho de administração da ré. (13º BI)

1.29. Entre 2007 e 2009, foram faturados à Ré pela A... Consulting e pela autora serviços de SI/TI, de consultoria, de projetos de desenvolvimento aplicacional e de formação um valor de, pelo menos, €1.204.197,00. (14º BI)

1.30. O “SIGMA” é uma evolução do SIGRes3e, com novas funcionalidades e oito novos módulos. (16.º e 17º BI)

1.31. (integrado no ponto anterior face à resposta conjunta aos pontos 16.º e 17.º da BI – perante a repetição do julgamento da matéria de facto)

1.32. Foi a ré que encomendou e forneceu todas as especificações de negócio necessárias aos serviços de desenvolvimento e manutenção aplicacional, os quais foram adjudicados e pagos, desde 2006 até à data da assinatura do Contrato celebrado com a autora, a várias empresas: I... e A...-Consulting. (19º BI)

1.33. Por licenciamento do SIGMA a ré pagou à autora €582.358,00. (21º BI)

1.34. Os custos informáticos suportados pela ré junto da autora quintuplicaram no ano de 2008 e quadruplicaram no ano de 2009, em relação a 2006/2007, anos em que esses serviços foram prestados por terceiros. (22º BI)

1.35. A autora não entregou à ré o código-fonte da aplicação SIGMA. (27º BI)

1.36. O sistema SIGRes3e tinha limitações face às crescentes e cada vez mais complexas necessidades da ré. (30º BI)

1.37.O SIGMA tinha de ter as mesmas funcionalidades do sistema anterior, o SIGRes3e, para que, quando implementado, tivesse o menor impacto nos utilizadores. (32º BI)

1.38. O contrato referido em A) foi objeto de negociações, durante vários meses, envolvendo um advogado da requerente e, pelo menos, uma jurista da requerida. (33ª BI)

1.39. A indemnização prevista na Cláusula 11.ª, n.º 4, resultou de circunstâncias do acordo de exclusividade estabelecido na Cláusula 15.ª. (34º BI)

1.40. A autora criou um novo manual para o novo programa, um manual online, interativo e user friendly que foi disponibilizado aos interessados em 2009. (35º BI)

1.41. O ex-Diretor Financeiro da Requerida, por referência ao exercício de 2007 e de 2008, apôs a sua assinatura nas Declarações de Responsabilidade conducentes à Certificação Legal de Contas da Requerida, nas quais consta, além do mais:

“Não existem relações ou transações da AMB3E com Entidades Especiais ou Relacionadas. Para este efeito, entendemos como partes em relação de dependência as definidas como tal na Norma Internacional de Contabilidade nº 24 e que são designadamente as seguintes entidades:

a)…….

b)……

c) ……

d) Pessoal chave da Direção ou Administração, isto é, as pessoas que tendo autoridade e responsabilidade pelo planeamento, direção e controlo das atividades da empresa que relata, incluindo administradores e o pessoal superior de empresas e membros íntimos das famílias de tais indivíduos.

e)…e empresas que tenham um membro chave da gerência em comum com a empresa que relata”. (36º BI)

1.42. A ré integrou as faturas referidas em AA) e BB) na contabilidade e deduziu o respectivo IVA. (Por confissão em depoimento de parte).

1.43. O SIGRes3e foi desenhado de acordo com as necessidades específicas da atividade da ré e mediante encomenda. (38º BI).

 

2. Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia

Sustenta a Recorrente, a este propósito, que, ao não ter conhecido da nulidade parcial do negócio em causa nos autos e da sua redução, com fundamento no facto de se tratar de questão nova, a Relação omitiu pronúncia sobre essa questão, que havia sido suscitada nas conclusões da apelação e que é de conhecimento oficioso, sendo, como tal, o acórdão nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.

A Relação pronunciou-se no sentido de não se verificar a arguida nulidade já que, contrariamente ao alegado, se debruçou sobre a enunciada questão, acrescentando que o facto de a Recorrente poder entender que o fez erradamente se poderá traduzir num erro de julgamento, mas não na invocada omissão de pronúncia.

E, de facto, afigura-se ser acertada esta conclusão.

É que, não obstante se ter consignado, no Acórdão recorrido, que a Recorrente não aludiu, na fase dos articulados, à questão concernente à existência de uma componente fixa e de uma componente variável a pagar em função da utilização dos módulos do programa de computador e que, por isso, estava em causa argumentação nova, que não foi tida em conta na sentença e que foi acrescentada tardiamente, a questão acabou por ser apreciada, tendo a Relação concluído, a esse propósito, que inexistindo factos provados para fundamentar o pretendido, nomeadamente no que respeita à circunstância de os valores de licenciamento respeitarem à utilização dos módulos constantes do programa originário da titularidade da Ré, as conclusões da Recorrente tinham de soçobrar.

Ou seja, independentemente da referência feita quanto à falta de invocação no momento próprio, o certo é que a questão acabou por ser apreciada, decorrendo a sua improcedência da inexistência de factualidade provada que a permitisse sustentar. Já a questão de saber se a conclusão a que se chegou, a esse propósito, no acórdão recorrido foi ou não acertada – isto é, se existem (ou não) factos provados no sentido pretendido pela Recorrente – poderia, quando muito, traduzir-se, como bem afirmou a Relação, em erro de julgamento, mas não em omissão de pronúncia.

É, pois, neste sentido que o STJ tem decidido em casos em tudo similares, afirmando repetidamente que a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão, não se confunde com o erro de julgamento, não sendo, por isso, a invocação de nulidades o meio processualmente adequado para veicular a discordância relativamente à solução encontrada.

 

3. Da falta de originalidade do programa de computador SIGMA

O Tribunal da Relação de Lisboa concluiu, neste particular e em sentido coincidente com a 1.ª instância, pela originalidade do programa SIGMA.

Ancorou-se, para tanto, no facto de o aludido programa, apesar de ser uma evolução do anterior programa (SIGRes3e), ter novas funcionalidades e oito novos módulos e de, portanto, ter na sua expressão uma transformação criativa por parte da Autora, bem como na circunstância de a Ré também não ter logrado demonstrar nenhum dos factos que excluiriam a criatividade dessa expressão, quer se encare o programa como uma “transformação” de um programa anterior, quer como um programa novo.

Já a Ré, continuando inconformada com a conclusão conforme a que as instâncias chegaram, sustenta que o SIGMA é uma réplica do SIGRes3e, uma vez que a Autora se limitou a trabalhar sobre o programa de base da Ré, a acrescentar a este alguns módulos em jeito de atualização e a redenominá-lo, sem que haja margem para originalidade, criatividade ou novidade.

Invoca, em abono da sua tese, a prova pericial (trazendo à colação as respostas constantes do relatório pericial e os esclarecimentos prestados pelos peritos em sede de audiência de julgamento), assim como a prova testemunhal, para procurar, dessa forma, demonstrar, que o Tribunal fez tábua rasa da prova produzida nos autos e que decidiu de forma errada ao ter concluído pelo carácter original e criativo do programa de computador SIGMA.

Ou seja, o que a Recorrente, na realidade, pretende impugnar, ainda que de forma encapotada e a pretexto do conceito de originalidade, é a decisão da matéria de facto, com a qual não se conforma. É, pois, isso que revelam as conclusões da revista, das quais se extrai claramente o inconformismo e a discordância da Recorrente no que concerne à forma como o Tribunal analisou e valorou a prova produzida e à convicção que, com base nessa prova, formou para dar como provada e não provada a matéria de facto que permanecia controvertida (Vejam-se as conclusões 31.ª a 46.ª nas quais a recorrente transcreve parte das respostas constantes do relatório pericial e as respetivas conclusões, bem como partes dos esclarecimentos dos peritos e de um depoimento testemunhal prestados em audiência de julgamento, discorrendo sobre essa prova com vista a demonstrar o desacerto da decisão da matéria de facto).

Sucede, porém, que tal não lhe é permitido.

Com efeito, é pacífico que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista, em regra, apenas conhece de matéria de direito – aplicando definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido –, não lhe cabendo sindicar o erro na apreciação das provas e a matéria de facto apurada pelas instâncias, a não ser que se verifique ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigos 682.º, n.ºs 1 e 2, e 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Tal como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, p. 398.), a atividade do Supremo não se preocupa com as possíveis alternativas sobre o julgamento dos factos relevantes, mas exclusivamente com a determinação da solução jurídica adequada para os factos apurados pelas instâncias, já que na função atribuída ao Supremo prevalecem os interesses gerais de harmonização na aplicação do direito sobre a averiguação dos factos relativos ao caso concreto e a concentração dos seus esforços na determinação da norma aplicável e no controlo da sua interpretação e aplicação pelas instâncias.

- No mesmo sentido, entre outros, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, p. 270 -

Ou seja, ainda que, face ao disposto no artigo 674º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o STJ não fique totalmente paralisado no que concerne ao controlo da decisão da matéria de facto, a verdade é que a sua intervenção se circunscreve a aspetos em que se tenha verificado a violação de normas de direito probatório material (por, nessa hipótese, estarem em causa verdadeiros erros de direito), já não abrangendo, porém, questões inerentes à decisão da matéria de facto quando esta foi precedida da formulação de um juízo assente na livre apreciação da prova formulado pela 1.ª instância ou até pela Relação.

Ora, no caso sub judice, não se estando perante qualquer caso de prova vinculada, mas antes no domínio da prova sujeita à livre apreciação do julgador (artigos 389.º, e 396.º do Código Civil), não se verifica qualquer violação de direito probatório material que seja suscetível de ser sindicada pelo STJ em sede de revista (artigo 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

Em consequência, será (apenas) à luz da factualidade dada como provada – que está definitivamente fixada – que a suscitada questão da originalidade do programa de computador em causa nos autos terá de ser apreciada e não à luz da matéria de facto que a Recorrente, em face da prova produzida, entende que devia ter ficado provada (mas não ficou).

Vejamos, então, o quadro legal aplicável ao caso.

Em matéria de programas de computador, a Diretiva n.º 91/250/CEE, do Conselho, de 14-05, movida pelo objetivo de harmonizar as legislações dos Estados-membros entre si, determinou que estes deviam estabelecer uma proteção jurídica dos programas de computador, mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras literárias, na aceção da Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas (cf. artigo 1.º, n.º 1, da Diretiva), que foi aprovada, para adesão, pelo Decreto n.º 73/78 de 26-07, compreendendo todas as produções do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu modo ou forma de expressão (artigo 1.º, e 2.º, n.º 1, da Convenção de Berna - De 09-09-1886, completada em Paris a 04-05-1896, revista em Berlim a 13-11-1908, completada em Berna a 20-03-1914 e revista em Roma a 02-06-1928, em Bruxelas a 26-06-1948, em Estocolmo a 14-07-1967 e em Paris a 24-07-1971).

Nessa senda, prevê a Diretiva que a proteção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador, incluindo o material de conceção; mas exclui as ideias e os princípios subjacentes a qualquer elemento do programa, designadamente os que estão na base das respetivas interfaces (artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva n.º 91/250/CEE - A Diretiva foi alterada e posteriormente codificada através da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23-04-2009, porém, atendendo à data do contrato em causa nos autos (22-08-2008), considerar-se-á a versão inicial).

Conforme refere José Alberto Vieira, A Protecção dos Programas de Computador pelo Direito de Autor, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídicas, Outubro de 2002, Lex, Lisboa, 2005, p. 43, a propósito desta norma, a Diretiva, partindo da tradicional dicotomia ideia/expressão, de raiz anglo-americana, pretende excluir que a protecção de um programa de computador recaia nas ideias e princípios a que o autor do programa haja recorrido para a elaboração do mesmo. Por isso, afirma-se que a protecção abrange unicamente a expressão.

Embora a diretiva não defina o que seja a expressão de um programa de computador, dir-se-á, acompanhando José Alberto Vieira (Ob. cit., p. 43), que há duas indicações fundamentais no preceituado no diploma que nos permitem alcançar a compreensão do que é a expressão de um programa de computador para efeitos da directiva: (i) a referência constante do n.º 2 do artigo 1.º a que a proteção dos programas de computador abrange a expressão “sob qualquer forma”; (ii) o disposto no n.º 1 do artigo 1.º no sentido de que, para efeitos da diretiva, a expressão programas de computador inclui o material de conceção.

Ora, sendo o processo de elaboração de um programa de computador constituído por várias etapas ou fases, desde a sua conceção e desenho, passando pela sua redação em linguagem humana de programação (código fonte), até à sua conversão final em código máquina ou objeto, em cada uma destas fases é produzido trabalho intelectual expressivo. É a expressão deste trabalho que é objeto de proteção (Cf. José Alberto Vieira, ob. cit., p. 43).

Não basta, no entanto, determinar o que seja a expressão do programa de computador, já que a diretiva estabelece como requisito básico de proteção da expressão dos programas de computador a originalidade.

Dispõe o artigo 1.º, n.º 3, da diretiva que Um programa de computador será protegido se for original, no sentido de que é o resultado da criação intelectual do autor, sem que sejam considerados quaisquer outros critérios para determinar a sua suscetibilidade de proteção, não havendo, designadamente, de recorrer a testes dos seus méritos qualitativos ou estéticos (cf. n.º 3 da mesma norma e considerando iniciais da diretiva em questão).

Dito de outro modo e conforme ensina o referido autor (Na ob. cit., p. 65, que se vem seguindo de perto), na decisão sobre se um programa de computador satisfaz ou não o requisito básico de proteção, o juiz não atenderá ao facto do programa exteriorizar uma estética de mau gosto ou até não ostentar qualidade estética alguma, se ele é, na sua arquitectura ou redacção, um programa simples ou complexo, de pouca extensão ou de grande dimensão, se envolveu perícia técnica ou alto grau de conhecimentos tecnológicos do seu programador ou se estava ao alcance de qualquer programador médio com os conhecimentos usuais de computação, se denota um grande investimento e muito trabalho ou se envolveu recursos modestos, antes lhe cabendo avaliar tão só e apenas a sua originalidade.

Para além disso, importa sublinhar que, incidindo a proteção somente sobre a expressão dos programas de computador, só no respeitante a esta terá lugar o juízo de originalidade (e não quanto a todos os seus elementos componentes).

Nesta conformidade e considerando que a expressão de uma programa de computador contempla apenas elementos formais e não de conteúdo – já que estes, face ao princípio da liberdade das ideias e dos princípios que constitui um dos pilares deste sistema de proteção, caem fora do âmbito de proteção da diretiva – será apenas sobre a forma do programa de computador que incidirá o juízo de originalidade, seja ela a forma externa ou a interna, a estutura do programa, isto é, o modo como o programador seleciona e organiza no programa os módulos e as subrotinas.

Dito de outro modo, a proteção de um programa de computador incidirá exclusivamente na expressão criativa que o programador utilizou na realização do programa, ficando de fora da proteção pelo direito de autor as ideias, métodos de operação, processos e algoritmos.

- Neste sentido: José Alberto Vieira, ob. cit., p. 72, 73 e 269 -

A Diretiva n.º 91/250/CEE foi transposta para a ordem jurídica interna através do DL n.º 252/94, de 20-10 (Alterado pela Retif. n.º 2-A/95, de 31-01 e pelo DL n.º 334/97, de 27-11).

Com efeito, ao invés de integrar a proteção conferida pela diretiva no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, procedendo às alterações que se mostrassem necessárias, o legislador nacional optou por criar um diploma próprio onde condensou todas as normas específicas de proteção dos programas de computador. Para tal opção relevou o facto de ter entendido, tal como resulta do preâmbulo do mencionado diploma legal, que os conceitos nucleares de proteção dos programas de computador transportam novas realidades que não são facilmente subsumíveis às existentes no direito de autor, ainda que a equiparação a obras literárias possa permitir, pontualmente, uma aproximação.

Entretanto, foi aprovado, em 1994, o acordo TRIPS/ADPIC no âmbito da Organização Mundial do Comércio e, em 1998, o Tratado da OMPI sobre Direito de Autor, consagrando-se tanto num, como no outro desses diplomas internacionais – que, por força do artigo 8.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, integram o sistema de fontes da nossa ordem jurídica –, a proteção dos programas de computador como obras literárias no sentido da Convenção de Berna (cf. artigo 10.º, n.º 1, do citado acordo, e artigo 4.º do Tratado).

Dispõe o artigo 1.º, n.º 2, do DL n.º 252/94, de 20-10 que Aos programas de computador que tiverem carácter criativo é atribuída protecção análoga à conferida às obras literárias, equiparando-se àqueles o seu material de concepção preliminar (n.º 3).

Acrescenta, por sua vez, o artigo 2.º, n.º 1, do DL n.º 252/94, de 20-10, em consonância com o estipulado na directiva, que A protecção jurídica atribuída ao programa de computador incide sobre a sua expressão, sob qualquer forma, sem que esta tutela prejudique a liberdade das ideias e dos princípios que estão na base de qualquer elemento do programa ou da sua interoperabilidade, como a lógica, os algoritmos ou a linguagem de programação (n.º 2).

O objeto de proteção é, nesta sede, similar à proteção concedida pelo Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos às obras do domínio literário, científico e artístico já que também aí se prevê que serão protegidas as obras que consistem na exteriorização de uma criação intelectual, isto é, as que resultem de um esforço intelectual desenvolvido no campo das letras, das artes ou das ciências, e sejam a expressão, por qualquer modo obtida, da personalidade do seu autor.

- Cf. Luiz Francisco Rebelo, Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, 3.ª edição revista e atualizada, Âncora Editora, Lisboa, 2002, p. 30 -

Todas as expressões de programas de computador, material de conceção preliminar e código fonte, têm uma forma externa, porém, não esgotando esta todo o domínio formal da expressão, também a forma interna faz parte dessa expressão (artigo 2.º, n.º 1, do DL n.º 252/94, de 20-10)

- cf. José Alberto Vieira, ob. cit. P.355 e 356

Ora, conforme acima se aflorou, a forma interna mais não é do que a estrutura do programa de computador.

Na verdade, um programa de computador é composto por vários subprogramas – que se designam por rotinas, procedimentos, funções ou subrotinas, consoante as diversas linguagens de programação – ou, mais genericamente, por módulos.

 - Um módulo é um subprograma de pouca extensão, composto por algoritmos e estruturas de informação, que executa de modo independente uma função determinada (cf. José Alberto Vieira, ob. cit., p. 359) -

De forma a facilitar a conceção e a construção do programa de computador, bem como a sua posterior manutenção, o programador, uma vez definida a função geral do programa, pode abordar a sua realização partindo o programa em partes autónomas, que executarão tarefas e subtarefas determinadas num processo de decomposição progressiva que termina quando é possível que uma parte perfeitamente distinta e independente do programa desempenhe uma única função. Essa parte do programa constitui um módulo. É depois da interação e funcionamento conjugado de cada um dos módulos que o programa cumprirá a função geral para o qual foi desenhado.

O modo como os módulos são combinados, selecionados e estão dispostos no programa, isto é, a forma como nele são organizados, constitui a sua estrutura: a expressão do programa está, assim, no modo como o programador seleciona os módulos – subprogramas, rotinas, subrotinas – e os organiza.

A estrutura do programa (forma interna), juntamente com a forma externa, forma o conjunto de obra protegida pelo direito de autor.

Por outro lado, ao longo do ciclo do desenvolvimento do programa, vão sendo produzidos vários trabalhos intelectuais, desde a análise de sistemas, passando pela especificação e pelos múltiplos diagramas, até ao código fonte, apresentando cada um desses trabalhos expressão própria, que é autónoma em relação às demais, ainda que resulte da transformação de uma expressão anterior.

- Neste sentido: José Alberto Vieira, ob. cit., p. 384 e 385 -

Mesmo nos casos em que ocorre essa transformação de uma expressão anterior, tal não basta para que se possa falar em obra derivada, uma vez que, para tanto, será necessário que se mostrem preenchidos dois requisitos cumulativos: (i) que haja transformação de uma expressão anterior; e (ii) que essa transformação seja realizada criativamente por alguém.

Todavia, em regra, as transformações ocorrem em relação aos elementos não expressivos do programa – algoritmos, métodos de operação, sistemas, etc. – sem que, por isso, a expressão anterior seja utilizada pelo programador. Ora, a apropriação de elementos não expressivos constantes de outros trabalhos anteriores sem uma utilização efetiva da expressão na transformação não origina uma obra derivada.

- cf. José Alberto Vieira, ob. cit., pp. 385 e 386 -

No que concerne ao carácter criativo a que alude o DL n.º 252/94, de 20-10 ou à originalidade a que alude a Diretiva, o que importa é que o programa, ou, mais rigorosamente, a sua expressão (no sentido que acima se dilucidou) seja o resultado da criação intelectual do autor ou, dito de outro modo, que seja o resultado de uma atividade do engenho humano, que revele o trabalho do programador.

Considerando que, face ao princípio da interpretação conforme, o intérprete e aplicador do direito nacional, está vinculado a atribuir às disposições constantes do direito interno um sentido conforme e compatível com o Direito da União, importa ter em consideração que o Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou sobre a interpretação do artigo 1.º da Diretiva 91/250/CEE, sendo que é à luz desta que as normas do DL n.º 252/94, de 20-10 devem ser interpretadas.

Afirmou o TJUE, no Acórdão da Terceira Secção, de 22-12-2010 (processo C‑393/09) que, não definindo a Diretiva 91/250/CEE o conceito de «expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador», tal conceito deve ser definido atendendo aos termos e ao contexto das disposições do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250 em que se insere, bem como à luz tanto dos objectivos de toda a directiva como do direito internacional (v., por analogia, acórdão de 16 de Julho de 2009, Infopaq International, C-5/08, Colect., p. I-6569, n.º 32).

31 De acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, da Directiva 91/250, os programas de computador beneficiam de protecção jurídica, mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras literárias, na acepção da Convenção de Berna. O n.º 2 deste artigo alarga essa protecção à expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador.

32 A primeira frase do sétimo considerando da Directiva 91/250 indica que, para efeitos desta directiva, a expressão «programa de computador» inclui qualquer tipo de programa, mesmo os que estão incorporados no equipamento.

33 A este respeito, há que mencionar o artigo 10.º, n.º 1, do acordo ADPIC, que prevê que os programas de computador, quer sejam expressos em código fonte ou em código objecto, serão protegidos enquanto obras literárias ao abrigo da Convenção de Berna.

34 Daqui decorre que o código fonte e o código objecto de um programa de computador são formas de expressão deste, que merecem, por isso, beneficiar da protecção de direitos de autor conferida aos programas de computador, ao abrigo do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva 91/250

35 Por conseguinte, o objecto da protecção conferida por esta directiva inclui o programa de computador em todas as formas de expressão deste, que permitem reproduzi-lo em diferentes linguagens informáticas, tais como o código fonte e o código objecto.

36 Importa também salientar a segunda frase do sétimo considerando da Directiva 91/250, nos termos da qual a expressão «programa de computador» inclui igualmente o trabalho de concepção preparatório conducente à elaboração de um programa de computador, desde que esse trabalho preparatório seja de molde a resultar num programa de computador numa fase posterior.

37 Assim, o objecto da protecção da Directiva 91/250 abrange as formas de expressão de um programa de computador e o trabalho de concepção preparatório susceptível de conduzir, respectivamente, à reprodução ou à elaboração posterior de tal programa (negrito e sublinhados nossos).

- Cf. Acórdão do TJUE (Terceira Secção), de 22-12-2010, processo C‑393/09 -

Este entendimento foi, posteriormente, reiterado pelo TJUE, no Acórdão da Grande Secção, de 02-05-2012 (processo C‑406/10), aí se afirmando que o código fonte e o código objeto de um programa de computador são formas de expressão deste, que merecem, por isso, a proteção de direitos de autor conferida aos programas de computador, ao abrigo do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 91/250/CEE.

Em contrapartida, o TJUE clarificou que existem outros elementos de um programa de computador que já não são objeto de proteção por não constituírem uma forma de expressão desse programa na aceção da diretiva, como sucede com a interface gráfica (que constitui simplesmente um elemento através do qual os utilizadores exploram as funcionalidades do programa), com a sua funcionalidade, com a linguagem de programação e com o formato de ficheiro de dados utilizados.

 - Cf. Acórdãos do TJUE (Terceira Secção), de 22-12-2010, processo C‑393/09 e do TJUE (Grande Secção), de 02-05-2012, processo C‑406/10 -

Tal como observa o TJUE, citando as conclusões do advogado-geral, admitir que a funcionalidade de um programa de computador possa ser protegida pelo direito de autor equivale a oferecer a possibilidade de monopolizar as ideias, em detrimento do progresso técnico e do desenvolvimento industrial.

Por outro lado, o ponto 3.7 da exposição de motivos da Proposta de Diretiva 91/250 [COM (88) 816] refere que a proteção dos programas de computador pelo direito de autor tem como principal vantagem o facto de abranger unicamente a expressão individualizada de uma obrapossibilitando uma flexibilidade suficiente que permite a outros autores criarem programas similares ou mesmo idênticos, desde que não se trate de cópias.

42 Quanto à linguagem de programação e ao formato de ficheiro de dados usados no âmbito de um programa de computador para interpretar e executar programas de aplicações escritos por utilizadores e para ler e escrever dados num formato de ficheiros de dados específico, trata-se dos elementos deste programa por intermédio dos quais os utilizadores exploram certas funções do referido programa.

Nesta conformidade, concluiu o TJUE que artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 91/250 deve ser interpretado no sentido de que nem a funcionalidade de um programa de computador nem a linguagem de programação e o formato de ficheiros de dados usados no âmbito de um programa de computador para explorar algumas das suas funções constituem uma forma de expressão desse programa e não estão, nessa medida, protegidos pelo direito de autor sobre os programas de computador na aceção desta diretiva, sem prejuízo de uma determinada linguagem de programação e de um específico formato de ficheiro de dados poderem beneficiar, enquanto obras, da proteção do direito de autor, por força da Diretiva 2001/29, se forem uma criação intelectual própria do seu autor.

 - Cf. Acórdão do TJUE (Grande Secção), de 02-05-2012, processo C‑406/10 e Acórdão do TJUE (Terceira Secção), de 22-12-2010, processo C‑393/09 para o qual o primeiro remete -

Dito de outro modo e conforme esclarece o Advogado-geral nas conclusões de 29-11-2011, apresentadas no processo C-406/10 (no âmbito do qual foi proferido o Acórdão supra citado), ainda que a funcionalidade de um programa não seja protegida em si mesma pelo direito de autor – por tal equivaler a monopolizar as ideias em detrimento do progresso técnico e do desenvolvimento industrial – já poderá ser protegida a expressão dessa funcionalidade, assim como os demais elementos que integrem o programa que constituam expressão da criação intelectual do autor.

Vejamos, então, o caso dos autos à luz das considerações expendidas.

Conforme se afirma no Acórdão recorrido, o direito que a Autora pretende fazer valer na ação funda-se num contrato de prestação de serviços na área de informática celebrado entre as partes e no incumprimento deste por parte da Ré por esta ter deixado de pagar as faturas referentes aos serviços de licenciamento prestados.

Ou seja, tal como bem refere o Tribunal da Relação no Acórdão posto em crise, a Autora não se apresentou em juízo para fazer valer contra a Ré um direito de autor, mas antes um direito derivado do contrato celebrado, in casu, o direito ao recebimento de quantias que a Ré se obrigou a entregar-lhe como contrapartida do licenciamento de um programa informático.

Foi, pois, a Ré, aqui Recorrente, que veio invocar, a título de defesa por exceção e de reconvenção – com vista, além do mais, a impedir o direito da Autora ao recebimento do preço e a ter acesso ao código fonte do programa que lhe foi licenciado –, que esse licenciamento incidia, afinal, sobre um programa que lhe pertencia e não à Autora, uma vez que esta se tinha limitado a aperfeiçoar um programa que já havia sido feito por uma outra sociedade e que a Recorrente lhe disponibilizou, bem como que o contrato está ferido de invalidade, designadamente erro, por não se ter apercebido de que a Autora ficaria titular do software.

Assim sendo, competia à Autora provar que cumpriu as obrigações decorrentes do contrato que sobre si recaíam (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), ao passo que cabia à Ré demonstrar, em face da defesa por exceção que invocou e do pedido reconvencional deduzido, que o programa de computador desenvolvido por aquela (SIGMA) mais não era do que uma mera cópia ou reprodução de um anterior programa (SIGRes3e), desenvolvido para a Ré, por um terceiro, não sendo, portanto, um programa novo que pudesse, ao abrigo do contrato, ser licenciado e objeto de cobrança pela prestação desse serviço, tanto mais que o contrato é inválido (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

A verdade, porém, é que a recorrente não logrou provar essa sua versão dos factos, designadamente que o programa SIGMA desenvolvido pela Autora seja uma mera cópia ou reprodução do anterior, que tenha o software de base do SIGRes3e, que mais não seja do que um aperfeiçoamento do anterior programa, que as melhorias registadas no programa se tenham devido apenas à aquisição de dois novos servidores, sem que tenham sido feitas alterações ao software e que, em geral, não tenha havido espaço para a criação de um programa novo e muito menos que o contrato celebrado esteja ferido dos vícios que a Recorrente lhe apontou – tendo, ao invés, ficado provada factualidade bem diversa.

Provou-se, com relevância, para a apreciação desta questão que as partes celebraram entre si um acordo, através de documento escrito datado de 22-08-2008, através do qual a Autora se obrigou a prestar à Ré, mediante contrapartida pecuniária que esta lhe entregaria, com os valores, a periodicidade e o vencimento aí definidos, serviços de na área de informática, designadamente: (i) serviços de desenvolvimento e implementação de software; (ii) serviços de manutenção de software e hardware; (iii) serviços de helpdesk; e (iv) serviços de formação, tudo nos termos definidos nos Anexos ao Contrato que dele fazem parte (cf. facto provado sob o ponto 5.).

Mais ficou provado ter ficado estipulado nesse acordo – que foi objeto de negociações, durante vários meses, envolvendo advogado da Autora e uma jurista da Ré – que os eventuais direitos de autor que decorressem das obras produzidas pela Autora na execução desse contrato, para além das metodologias e ferramentas que já se encontravam na sua titularidade, eram propriedade exclusiva da Autora, nos termos em que tal se verificasse legítimo ao abrigo da legislação vigente aplicável e salvo disposição em contrário no Anexo correspondente ao serviço e/ou obra especificamente contratada (cf. n.º 3 da cláusula 4.ª do contrato dado como provado sob o ponto 5. e facto provado sob o ponto 38.).

Ficou igualmente demonstrado que, no âmbito desse acordo, a Autora licenciaria à Ré, aqui recorrente, o direito de utilização do programa SIGMA para gestão da atividade desta última, nos termos e condições aí ajustadas, e que lhe prestaria os serviços conexos e diretamente relacionados com essa licença aí descritos, tendo as partes reconhecido expressamente que o SIGMA era da propriedade exclusiva da Autora, bem como todos os seus componentes, documentação ou outros equipamentos que fossem disponibilizados à Ré como parte dessa licença (tudo nos termos do Anexo I ao referido contrato dado como provado sob o ponto 5.).

Com efeito, sendo a Recorrente uma associação, sem fins lucrativos, que se dedica à atividade de gestão de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos e recolha, tratamento, reciclagem e eliminação dos resíduos de pilhas e acumuladores, em todo o território nacional, implementou, para esse efeito, uma rede de centros para receção, separação seletiva e armazenagem de resíduos, tendo ligação a cerca de 90 operadores de gestão de resíduos.

Nesse contexto, o sistema por si utilizado e disponibilizado constitui um mecanismo imprescindível para a prossecução da sua atividade e objetivos, dado que, entre muitas outras valências, os produtores acedem ao sistema informático para efetuarem as suas declarações trimestrais, que são confidenciais e estão à guarda da Recorrente numa base de dados informáticos concebida e especificamente desenvolvida para esse efeito (tudo conforme consta do acervo factual provado sob os pontos 6., 7. e 8.).

A relação contratual estabelecida entre as partes surge porque o anterior programa informático, denominado SIGRes3e – que havia sido desenvolvido por uma terceira, por solicitação da Recorrente, para tratamento informático integrado da gestão de resíduos elétricos e eletrónicos, de acordo com as necessidades específicas da sua atividade e mediante encomenda – tinha limitações face às crescentes e cada vez mais complexas necessidades da Recorrente (cf. factos provados sob os pontos 9., 36. e 43).

Na verdade, a Autora começou a laborar no sistema informático da Ré, ora Recorrente, ainda em 2007, cabendo-lhe elaborar software aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das necessidades da recorrente (cf. facto provado sob o ponto 19.)

Em consequência, como o programa SIGMA, a desenvolver pela Autora, tinha de ter as mesmas funcionalidades do sistema anterior, para que, quando implementado, tivesse o menor impacto nos utilizadores, a Ré, aquando da celebração do contrato, disponibilizou-lhe esse sistema informático denominado SIgRes3e (cf. factualidade provada sob os pontos 9. e 37.).

Tal como ficou provado, o programa SIGMA, desenhado pela Autora e licenciado à Recorrente, nos termos ajustados entre as partes, é, assim, uma evolução do SIgRes3e, com novas funcionalidades e oito novos módulos, sendo que a Autora também criou um novo manual para o SIGMA, online, interativo e user friendly que foi disponibilizado aos interessados (cf. factos provados sob os pontos 30. e 40.).

Dispõe o artigo 11.º, n.º 1 do DL n.º 252/94, de 20-10 que Os negócios relativos a direitos sobre programas de computador são disciplinados pelas regras gerais dos contratos e pelas disposições dos contratos típicos em que se integrem ou com que ofereçam maior analogia.

Vigora, assim, nesta sede, conforme decorre da epígrafe do mencionado preceito, a autonomia privada, sendo as partes livres de conformar o conteúdo do contrato da forma que entenderem conveniente, já que a lei remete a sua disciplina para as regras gerais dos contratos (artigo 405.º do Código Civil).

Preceitua, por sua vez, o artigo 3.º, n.º 3, do citado diploma legal – na senda, aliás, do que se prevê no artigo 2.º, n.º 3, da Diretiva 91/250/CEE – que Quando um programa de computador for criado (…) por encomenda pertencem ao destinatário do programa os direitos a ele relativos, salvo estipulação em contrário ou se outra coisa resultar das finalidades do contrato (sublinhado nosso).

Pois bem, no caso dos autos, resulta do acervo factual provado que o contrato celebrado entre as partes tinha, além do mais, por objeto, na vertente do serviço de desenvolvimento de software, a prestar pela Autora, uma obra por encomenda, que consistia no desenvolvimento de um programa informático criado para a satisfação das necessidades específicas da atividade da Recorrente, que a Autora depois lhe licenciaria, tendo as partes, desde logo, convencionado expressamente, que esse programa era da titularidade da Autora.

Conforme refere, a este propósito, Alexandre Libório Dias Pereira (Das Licenças de Software e de Bases de Dados, p. 17, disponível em

http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/1265/1/01_ALEXANDRE-PEREIRA.pdf.), a licença de software feito à medida obtém-se no quadro de um contrato de encomenda de obra intelectual, que tanto pode traduzir-se na adaptação de um programa já existente como na criação de um programa novo. Trata-se de um contrato em que um utilizador contrata uma empresa de software para escrever um programa com determinadas características técnicas e qualidades funcionais, em atenção às suas específicas necessidades concretas, acordando os termos da sua utilização.

Neste tipo de contrato, a lei atribui os direitos de autor à entidade que encomenda a obra. Ressalva, todavia, que outra coisa pode resultar do contrato. E na prática sucede com frequência que a entidade que desenvolve o software retém os direitos de autor e concede uma licença de utilização à outra parte. Estas situações configuram uma coligação de contratos, que estão unidos por um nexo de dependência funcional, no sentido designadamente de que a desistência da encomenda da obra é causa de cancelamento da licença.

(Mesmo autor, ob. cit., p. 18)

E foi precisamente isso que sucedeu no caso dos autos.

Com efeito, a Autora desenvolveu esse programa, denominado SIGMA, por encomenda da Recorrente e em função das específicas necessidades da sua atividade, tendo as partes acordado, desde logo, que o mesmo era propriedade da Autora, bem como as condições e os termos em que esta o licenciaria à Recorrente.

Tal programa (SIGMA) é uma evolução do anterior (SIgRes3e) – porque tinha de ter as mesmas funcionalidades deste, para que, quando implementado, tivesse o menor impacto nos utilizadores –, com novas funcionalidades e oito novos módulos.

Ora, devendo as disposições de direito interno, como sucede com os artigos 1.º e 2.º do DL n.º 252/94, de 20 de outubro, ser interpretadas à luz da Diretiva 91/250/CEE e da interpretação que o TJUE vem fazendo das suas normas, dir-se-á que as funcionalidades do programa de computador não são objeto de proteção por via do direito de autor consagrado na dita Diretiva, o que significa que não servem, por si só, nem para concluir pela existência de criação intelectual por parte da Autora, nem para concluir pela violação do direito de autor por parte desta, como pretendia a Recorrente demonstrar.

Todavia, o mesmo já não sucede no que concerne aos módulos.

É que, incidindo a proteção atribuída ao programa sobre a sua expressão, sob qualquer forma (artigo 2.º, n.º 1, do DL n.º 252/94, de 20-10), considerando que a forma externa do programa, tal como se referiu, não esgota o domínio formal da sua expressão, desta faz igualmente parte a forma interna, que constitui a estrutura do programa de computador.

Conforme sublinha José Alberto Vieira, a estrutura do programa forma, juntamente com a forma externa, o conjunto de obra protegida pelo direito de autor, sendo que é esta a melhor interpretação do artigo 2.º do DL n.º 252/94, de 20-10 à luz da Diretiva 91/250/CEE.

(Cf. ob. cit., p. 355 e 356)

Nesta conformidade, sendo a estrutura do programa de computador constituída por módulos, isto é, pelas partes autónomas em que o programador, no seu trabalho de conceção e construção, divide o programa, num processo de decomposição progressiva, com vista a que essas partes desempenhem determinadas tarefas e subtarefas, o desenvolvimento desses módulos, constituindo expressão do programa, revela a “escrita” do seu autor.

Ora, incidindo o juízo de originalidade sobre a dita expressão e estando provado que o programa (SIGMA), desenvolvido pela Autora, tem oito novos módulos, forçoso é concluir que tal programa é original, no sentido de ser o resultado da criação intelectual do seu autor.

Em consequência, tendo as partes estipulado, no contrato celebrado, que os direitos de autor relativos ao dito programa pertencem à Autora – convenção que, como se viu, é válida (artigo 3.º, n.º 3, do DL n.º 252/94, de 20-10) – tanto mais que só assim fazia sentido o seu posterior licenciamento à Recorrente, tal é quanto basta para que improcedam, nesta parte, as conclusões desta última.

Não merece, por isso, censura a conclusão a que chegou a Relação, no Acórdão recorrido, no sentido de os programas em causa nos autos serem qualitativa e substantivamente diferentes e de o SIGMA, face à criação de oito novos módulos, ter originalidade, sem que a Recorrente tenha logrado demonstrar o contrário, isto é, factos que excluiriam a criatividade da sua expressão.

Refira-se, por último, que a matéria de facto provada não permite fazer um juízo seguro acerca da invocada questão de se estar, ou não, perante uma obra derivada – o que bem se compreende dado que, tratando-se de questão que apenas em sede de apelação foi suscitada pela Recorrente, não foi selecionada matéria capaz de preencher o dito conceito sobre a qual a prova tivesse incidido.

Na verdade, conforme acima se aflorou, apenas relevaria para o dito efeito a transformação da expressão protegida do programa de computador e já não o eventual aproveitamento de elementos não expressivos do anterior programa para a produção do novo programa, como o uso das ideias, dos processos (algoritmos, data structures, etc.), dos métodos de operação ou até das mesmas ou de novas funcionalidades, posto que este aproveitamento não constitui transformação juridicamente relevante.

 - Neste sentido: José Alberto Vieira, ob. cit., p. 612 e 613 -

Ora, no caso sub judice, apenas se extrai da factualidade provada que o SIGMA é uma evolução do SIGRes3e com novas funcionalidades e oito novos módulos, sem que se retire, em concreto, dessa factualidade em que é que consistiu essa evolução, designadamente, se foram ou não aproveitados para o desenvolvimento do novo programa os elementos expressivos do anterior.

Seja como for e conforme bem concluiu o Tribunal da Relação, considerando que a obra transformada, desde que corresponda a uma criação intelectual, é protegida por via do direito de autor (conforme decorre expressamente do artigo 5.º, al. b), in fine, do DL n.º 252/94, de 20-10) - o mesmo decorrendo da Convenção de Berna, na qual se consagra a proteção como obras originais das traduções, adaptações, arranjos musicais e outras transformações de uma obra literária ou artística, sem prejuízo dos direitos de autor da obra original (artigos. 1.º, e 2.º, n.ºs 1 e 2) -, em virtude da conclusão a que acima se chegou, tal qualificação sempre seria indiferente para a questão da originalidade e da consequente proteção.

 

Pela mesma razão, não se vislumbra que se mostre necessário o reenvio prejudicial, o qual, de resto, foi requerido pela Autora para o caso de existirem dúvidas quanto à questão da proteção do programa de computador em questão por via do direito de autor e tais dúvidas, in casu, inexistem.

 

4. Da transformação do programa de computador SIGRes3e à revelia da autorização da ré e da falta de documento escrito

Sustenta, neste particular, a Recorrente que, mesmo que se entenda que se está perante uma obra derivada, tal transformação não merece proteção jurídica por não ter sido objeto de autorização por parte da Recorrente e que, por isso, foi errado o juízo presuntivo feito pelo Tribunal da Relação, no Acórdão recorrido, no sentido de tal autorização decorrer implícita ou tacitamente dos factos provados uma vez que o mesmo ofende as mais basilares regras da experiência da vida, pois nenhum homem médio e razoável concordaria em celebrar um negócio jurídico oneroso com o fito de exercer um direito sobre um bem, sabendo de antemão que este é uma réplica de um que já possui.

Acrescenta, ademais, que, ainda que se retirasse dos factos provados a dita autorização, não se retirando deles a existência de um documento escrito, em claro desrespeito pela formalidade legal aplicável à autorização – que, nos termos dos artigos 41.º, n.º 1, e 169.º, n.º 2, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, está sujeita a forma escrita – tal culminaria na sua nulidade.

Acontece que a conclusão a que acima se chegou no sentido de a matéria fáctica dada como provada não permitir formar um juízo seguro acerca da existência ou não de uma obra derivada, faz, por si só, cair por terra a invocada questão da suposta falta de autorização, fosse ela verbal ou por escrito, já que apenas a transformação que se traduza no aproveitamento dos elementos expressivos do programa carece de autorização do titular do programa originário, o mesmo não sucedendo com o aproveitamento das suas funcionalidades, ideias, processos ou métodos de operação.

Acresce que, ainda que assim não fosse, a questão da necessidade de autorização e da sujeição a forma escrita não poderia ser objeto de apreciação nesta sede já que não foi oportunamente invocada nos autos, não tendo, portanto, os factos a ela concernentes sido objeto de contraditório e de prova.

Era, pois, nos articulados que a Recorrente, em cumprimento do ónus da concentração da defesa, deveria ter alegado os factos relativos à suposta falta de autorização por escrito que apenas agora vem invocar em sede de recurso, sendo que, não o tendo feito oportunamente, precludida ficou a possibilidade de tais factos serem considerados nesta sede, desde logo, porque a parte contrária não teve possibilidade de os contraditar.

Com efeito, não tendo tal matéria sido expressa e oportunamente alegada, não foi selecionada qualquer factualidade relacionada com a dita autorização ou com a falta dela e, em consequência, não recaiu sobre a mesma qualquer prova e nem o tribunal sobre ela expressamente se pronunciou, seja em sentido afirmativo ou negativo.

Sublinhe-se, aliás, que, tal como refere acertadamente o Tribunal da Relação, no Acórdão impugnado, o que a Recorrente alegou, em sua defesa, foi factualidade substancialmente diversa e até incompatível com a que agora pretende trazer à colação.

Repare-se que foi a Recorrente (e não a Autora) que alegou, na sua oposição, que o software, designado por SIGRes3e se tratava de um sistema feito à medida dos seus interesses, satisfazendo as suas necessidades de gestão e que, por isso, constituía uma ferramenta de gestão auxiliar essencial do seu escopo principal (cf. artigos 63.º e 64.º), bem como que, posteriormente, contratou a evolução deste seu sistema informático com a Autora, sendo que o contrato celebrado com esta pressupunha a disponibilização pela Requerida do sistema existente para que a Requerente procedesse ao seu desenvolvimento, aperfeiçoamento e melhoramento (cf. artigos 65.º e 66.º - sublinhados nossos).

Aí acrescentando que esse processo contratual não significou uma ruptura com o sistema informático denominado SIGRes3e utilizado pela Requerida, atendendo à natureza continuada, sem interrupções, da sua atividade, que exigia, não uma descontinuação – que impediria que prosseguisse a sua atividade – mas aperfeiçoamentos e melhoramentos do sistema que tinha implementado, ainda que tenha vindo a constatar, posteriormente, que os “melhoramentos” foram devidos, não a um efetivo melhoramento ou desenvolvimento do software, mas sim devido à aquisição de dois novos servidores, aptos a imprimir maior velocidade e capacidade de processamento as utilizadores (cf. artigos 67.º e 78.º da referida peça processual).

Concluiu, assim, a Recorrente que teria sido apenas por força da atuação e manipulação do seu então Diretor Financeiro, em seu manifesto e deliberado prejuízo, que ficou a constar do contrato celebrado com a recorrida que o SIGMA seria propriedade exclusiva desta e que os direitos de autor sobre esse programa lhe pertenciam, pois que, se não fosse essa atuação e o conluio com os seus legais representantes, face ao disposto no artigo 3.º do DL n.º 252/94, de 20-10, não haveria lugar a discussão sobre a titularidade dos direitos sobre o software que a Requerente desenvolveu e tentou fazer seu (vejam-se, além do mais, os artigos 80.º a 84.º da oposição).

Ora, conforme se extrai claramente da dita alegação, a divergência das partes no processo sempre se centrou na questão da titularidade do software – cujo desenvolvimento e implementação constituiu objeto do contrato entre ambas firmado –, sustentando a Autora que o programa SIGMA, por si desenvolvido, é da sua titularidade e defendendo a Ré que, não passando tal programa de uma mera adaptação do software SIGRes3e, que forneceu à Autora, os direitos sobre esse programa são seus, sem que, por isso, a Autora lhe possa cobrar o preço da licença de um programa que, afinal, lhe pertence.

Foi, portanto, essa a factualidade que foi discutida no processo, contraditada e objeto de prova e foi sobre ela que o tribunal se pronunciou e não sobre uma suposta autorização, fosse ela verbal ou por escrito, para a transformação do programa anterior – transformação que, aliás, a Recorrente sempre negou existir.

Na verdade, o que decorre cristalinamente da posição assumida pela recorrente nos autos é que foi só depois de ter visto soçobrar as suas pretensões, primeiramente em 1.ª instância e depois no Tribunal da Relação, que a Recorrente foi introduzindo novas questões – que, inclusive, tal como se observa no Acórdão recorrido, colidem com a versão dos factos que foi apresentada na oposição.

E se é certo que a circunstância de estarem em causa questões que seriam de conhecimento oficioso (nulidades) permitiria a sua invocação apenas em sede recursória, não é menos certo que, na sua apreciação, não pode o tribunal socorrer-se de factos que não foram oportunamente alegados ou adquiridos para o processo e sujeitos a contraditório.

É, pois, neste sentido que tem decidido o STJ em casos em tudo similares, concluindo que a circunstância de a invocação se fundar em factos somente invocados em sede de revista impede a cognição dessas questões.

- Cf. Acórdão do STJ de 04-12-2014, Revista n.º 2606/07.8TJVNF.P1.S1; podendo ver-se, no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 16-11-2006, Revista n.º 3459/06, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, de 10-11-2011, Revista n.º 3628/03.3TBBCL.G1.S1, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2011.pdf, e de 06-06-2019, Revista n.º 639/13.4TBOAZ.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt -

Esta conclusão em nada sai beliscada pela circunstância de esta questão ter sido abrangida pela decisão da Formação de Juízes a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de processo Civil no sentido de apresentar relevância jurídica bastante para justificar a intervenção do STJ, porquanto, ficou, desde logo, aí ressalvado o facto de a referida Formação não se poder imiscuir no mérito do recurso, nem mesmo para saber se as questões suscitadas tinham ou não sido suscitadas oportunamente, já que essa tarefa compete apenas e tão só à conferência julgadora.

Tudo para concluir que a revista tem também de improceder nesta parte, mantendo-se a obrigação de a Recorrente pagar à recorrida a quantia em que foi condenada.

 

5. Da reforma do acórdão quanto a custas (dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente)

Sustenta a Recorrente, neste particular, que, para além de a causa não revestir especial complexidade, as partes procederam de boa fé, esforçando-se pela resolução do litígio, pelo que o pagamento adicional, em face do valor da causa (€997 587,00), de €8 874,00 que as partes ainda terão de pagar – perfazendo o total de €10 506,00 – é excessivo e manifestamente desproporcional aos serviços prestados, violando os princípios da proporcionalidade e da justiça.

Pede, por isso, a reforma do Acórdão nesta parte, com a consequente dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do RCP.

O Tribunal da Relação pronunciou-se, por acórdão de 21-05-2020, indeferindo o requerido por o montante da taxa de justiça remanescente a satisfazer não se mostrar desproporcionado face à utilidade económica da causa, à complexidade do processado e ao comportamento das partes, tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da igualdade.

Dispõe o artigo 6.º, n.º 1, do RCP que A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela i-A, que faz parte integrante do presente Regulamento; acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que Nos recursos, a taxa de justiça é sempre fixada nos termos da tabela i-B, que faz parte integrante do presente Regulamento.

Decorre, por sua vez, da tabela I anexa ao RCP, que dele faz parte integrante, que, para além dos €275 000 (valor máximo do último escalão da tabela), acresce, a final, ao valor da taxa de justiça, por cada €25 000 ou fração, 3 UC, no caso da col. A, 1,5 UC, no caso da col. B, e 4,5 UC, no caso da col. C.

Nessa conformidade, preceitua o artigo 6.º, n.º 7, do RCP que Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento (sublinhado nosso).

Decorre do exposto que, embora a regra seja a fixação da taxa de justiça em função do valor e da complexidade da causa, da mesma forma que o juiz pode corrigir os valores que resultam da tabela I-A e I-B para os valores constante da tabela I-C quando as ações e os recursos revelem especial complexidade, pode também determinar a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça quando a especificidade da situação o justificar, designadamente quando, apesar do valor da causa ser superior a €275 000,00, o valor da taxa de justiça a pagar seja manifestamente desproporcionado ao custo ou utilidade do serviço prestado face à simplicidade da causa.

Nesta matéria, importa levar em conta que, para efeitos de condenação em custas, se consideram de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que: a) contenham articulados ou alegações prolixas; b) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas (artigo 530.º, n.º 7, do CPC).

A este propósito, já o STJ se pronunciou em múltiplos casos, afirmando repetidamente que os critérios de cálculo da taxa de justiça devem pressupor e garantir um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado a quem recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efetivamente lhe foi prestado na resolução de interesses privatísticos.

Ora, no caso sub judice, não pode afirmar-se, contrariamente ao sustentado pela Recorrente e tal como demonstra a dinâmica processual, que a causa não reveste especial complexidade.

Com efeito, não obstante o processo ter tido origem num requerimento de injunção, a verdade é que se transmutou em ação declarativa de condenação por força da oposição deduzida, sendo que esta, para além de ter integrado defesa por exceção, comportou reconvenção, tendo sido por este motivo que foi fixado à causa o valor €1 138 186,20.

Acresce que houve réplica e tréplica, foi produzida abundante prova testemunhal e documental, realizou-se inclusive prova pericial e houve recurso, não apenas de direito, mas também da decisão da matéria de facto (com impugnação de vários pontos) sendo que as peças processuais, para além de extensas e prolixas, submeteram à apreciação do tribunal questões de âmbito muito diverso.

Por outro lado, foi a própria Recorrente que inseriu no recurso de apelação e, depois, no recurso de revista, questões complexas que nem sequer haviam sido suscitadas em momento anterior e que em nada se ajustam à concessão do benefício previsto no artigo 6.º, n.º 7, do RCP.

Refira-se, de resto, que se, por um lado, a Recorrente defende que a causa não reveste especial complexidade para justificar a concessão do indicado benefício em matéria de custas, já defende, por outro, a manifesta complexidade das questões fundamentais de direito que se suscitam no processo e a sua difícil resolução para justificar a admissibilidade da revista excecional – o que evidencia, quanto a este aspeto, a sua falta de razão.

Face ao exposto, é de concluir, sufragando o entendimento adotado pelo STJ no acórdão de 11-07-2019 (Incidente n.º 639/13.4TBOAZ.P1.S2, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/civel_sumarios_2019.pdf.), que, num modelo processual em que o pagamento da taxa de justiça visa remunerar, ao menos em parte, os custos da administração da justiça na resolução de interesses privatísticos, não se justifica a dispensa, nem sequer a redução, da taxa de justiça remanescente que é da responsabilidade da recorrente, Ré, enquanto parte totalmente vencida, quando está em causa uma ação declarativa de condenação, na qual aquela deduziu um pedido reconvencional de uma quantia elevada em resultado da alegação de um relacionamento contratual complexo, inserindo ainda, no recurso de apelação e, depois, no recurso de revista, questões complexas que, antes não havia suscitado e que em nada se ajustam à concessão do benefício previsto no artigo 6.º, n.º 7, do RCP.

 

Tudo para concluir que, não merecendo o Acórdão recorrido censura, também nesta parte, terá a revista de improceder.

 

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 25 de maio de 2021

 

Pedro de Lima Gonçalves (relator)   

Fátima Gomes           

Fernando Samões

 

Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos Fátima Gomes e Fernando Samões.