Processo nº 89359/10.7YIPRT.L2.S1
7.ª Secção (Cível)
Recurso de Revista
Decisão Texto Integral
I. Relatório
1. Sigma – Soluções Integradas de
Gestão do Meio Ambiente, Unipessoal, Lda. instaurou procedimento de
injunção, transmutada em ação declarativa com forma ordinária, contra “Amb3e
– Associação Portuguesa de Gestão de Resíduos de Equipamentos Eletrónicos,
pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €164.112,60, acrescida de
€2.131,66, a título de juros de mora, já vencidos.
Alegou, em
síntese, que se dedica à consultoria na área das tecnologias de informação e
comunicação, à venda e locação de programas e serviços de informática e de
telecomunicações, sistemas de computadores, incluindo hardware e software,
e que celebrou, em 22/08/2008, com a requerida um contrato de prestação de
serviços na área da informática, designadamente serviços de implementação e
manutenção de software e hardware, helpdesk e
formação, tendo prestado diversos serviços, no montante de €164.112,60 e que a
Ré, apesar de instada, não pagou.
2. A Ré deduziu oposição e reconvenção,
alegando, em síntese, que:
- Na petição
inicial, a Autora não identifica a concreta relação contratual que fundamenta a
sua pretensão, pelo que a petição inicial é inepta, por falta de causa de
pedir.
- A Ré foi vítima
de diversos ilícitos criminais praticados por um seu ex-diretor, os quais se
encontram em averiguação no DIAP, sendo que a relação contratual estabelecida
com a ora Autora é uma das situações em averiguação naquele processo-crime. Por
se configurar a existência de causa prejudicial, deve ser suspensa a instância
até ser proferida decisão com trânsito em julgado no processo que corre no foro
criminal.
- A Ré dedica-se à
gestão de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos, tendo implantado
uma rede de centros de receção para a receção, separação e armazenagem de
resíduos. Para tal estabeleceu parcerias com operadores de gestão e resíduos e
parceiros operacionais que asseguram a prestação dos serviços necessários.
- A Ré celebrou um
contrato com a empresa “I…, Lda.” visando a criação de um sistema informático
denominado “SIGRes3e”, especialmente desenvolvido para a Ré, de acordo com as
suas necessidades específicas.
- Posteriormente,
por influência do seu então diretor financeiro, a Ré celebrou um contrato com a
empresa “CITI”, atualmente denominada “SIGMA”, ou seja, a ora Autora.
- Este contrato
visava aperfeiçoar, desenvolver e melhorar o sistema existente, ou seja, o
“SIGRes3e”, cabendo ainda à Autora disponibilizar serviços de helpdesk e de
formação. Esses serviços foram prestados pela A…, sociedade controlada pelo
então diretor financeiro da Ré.
- A Ré delegou no
seu diretor financeiro a coordenação e acompanhamento da execução deste
contrato. Este, porém, como a Ré veio posteriormente a apurar, não defendeu os
interesses da Ré, tendo aceitado que a Ré ficasse na total dependência técnica
da Autora e autorizado o pagamento de faturas de janeiro de 2008 a outubro de
2009, no valor total de €2 216 884,00, sem estar comprovado que os respetivos
serviços tenham sido prestados, e sem que a autorização de pagamento contivesse
assinatura de um membro do conselho de administração da Ré ou por valores
superiores aos do mercado.
- Por outro lado,
entre 2007 e 2009, por serviços de consultoria, projetos de desenvolvimento
aplicacional e de formação, a Ré pagou €1 207 929,00, sendo que este valor
representa uma diferença de €374 584,00 face aos preços de mercado.
- Além disso,
apenas por efeito da atuação ilícita do ex-diretor da Ré, ficou clausulado que
a titularidade dos direitos sobre o software (que a requerente desenvolveu) lhe
pertence.
- Sendo assim,
pelo licenciamento do sistema SIGMA, a Ré pagou indevidamente à Autora €597
358,00. Ainda que se entenda que o custo do licenciamento do SIGMA deveria ser
suportado pela Ré, ainda assim, a Autora cobrou esse serviço em duplicado, o
que representa um prejuízo para a Ré de €192 500,00.
A Ré invoca a
nulidade do contrato por ser contrário à ordem pública e aos bons costumes
(artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil). Ou, se assim não for entendido, a sua
anulabilidade, por se tratar de negócio usurário (artigo 282.º, n.º 1, do
Código Civil). Afirma ainda que o negócio é anulável, por ter sido celebrado
com base em erro na formação da vontade (artigo 251.º, do Código Civil).
Conclui, pedindo
que:
a) Seja declarada
a ineptidão da petição inicial e a Ré absolvida da instância;
b) Caso assim não
se entenda, seja ordenada a suspensão da instância até ao trânsito em julgado
do acórdão a proferir no processo-crime, instaurado contra o ex-diretor da ré;
c) Seja declarado
nulo o contrato celebrado com a Autora;
d) Subsidiariamente,
seja anulado o dito contrato;
e) Seja, em
consequência, determinada a restituição de todas as prestações efetuadas e
reconhecida a titularidade da Ré sobre o software de base e ainda de todas as
aplicações operacionais correspondentes ao atual sistema informático;
f) Se assim não se
entender, e se considerar o contrato válido, seja a Autora condenada a
reconhecer a titularidade da Ré sobre o software de base e ainda de todas as
aplicações operacionais correspondentes ao atual sistema informático;
g) Em
reconvenção, seja a Autora condenada:
- A pagar à Ré, a
título de compensação, a quantia de EUR 971.942,00, correspondente à diferença
entre o montante que a Autora deve restituir à Ré e o valor dos serviços ao
preço de mercado prestados pela autora à Ré, até 31/12/2009,
acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a apresentação da
oposição e vincendos até integral pagamento;
- A pagar à Ré a
quantia que se vier a liquidar posteriormente, correspondente à compensação
entre as quantias a restituir pelas partes, relativas aos serviços faturados
pela Autora e os que sejam indevidamente pagos pela Ré, após 31/12/2009;
- A reconhecer o
direito de acesso da Ré ao código-fonte do software de base e de todo o
software aplicacional.
3. A Autora apresentou réplica, tendo, ainda,
ampliado o pedido. Neste âmbito, alegou que desde a apresentação do
requerimento de injunção até à data da apresentação da réplica se venceram
outras faturas no valor global de €253.152,00 que a Ré não pagou.
Concluiu, pedindo
a condenação da ré a pagar-lhe (também) esta quantia, acrescida dos respetivos
juros de mora, já vencidos e vincendos.
Pediu, ainda, a
condenação da ré com litigante de má fé.
4. A Ré treplicou.
5. Foi proferido despacho que indeferiu a
suspensão da instância.
6. Na audiência preliminar, foi admitida
a reconvenção, bem como a ampliação do pedido e julgada improcedente a
ineptidão do requerimento de injunção. Foi selecionada a matéria assente e
organizada a base instrutória.
7. Realizado o julgamento, foi proferida
sentença que:
a) - Julgando a
ação procedente, condenou a ré “a pagar à autora a quantia de €415.428,00,
acrescida de juros de mora sobre o valor de cada uma das faturas – a primeira
deduzida da nota de crédito – discriminadas nos pontos 1º e 2º dos factos
provados, contados 60 dias após a data de emissão de cada uma delas, às taxas
supletivas legais que resultam da aplicação da Portaria 597/2005, de 19/07, até
integral pagamento”;
b) - Julgando a
reconvenção improcedente, absolveu a autora do pedido reconvencional;
c) - Julgou
inverificados os pressupostos da litigância de má-fé.
8. Não se conformando com esta decisão, a ré
interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
9. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a
julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão proferida pelo
Tribunal de 1ª instância.
10. Inconformada com tal decisão, a Ré
veio interpor o recurso de revista, tendo sido proferida decisão sumária,
determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para
que fossem supridas as contradições que aí se apontaram em
determinados pontos da matéria de facto.
11. Por Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa 13-07-2017, foi anulada a sentença e determinada a baixa dos
autos ao tribunal de 1.ª instância a fim de se repetir o julgamento na parte
viciada por estar em causa matéria não impugnada no recurso de apelação em
relação à qual havia a necessidade de renovar a produção de prova.
12. Repetido o julgamento quantos aos pontos
7.º, 8.º, 16.º, 17.º, 21.º e 35.º da base instrutória, foi, em 28-12-2018,
proferida sentença com segmento decisório igual ao da
anterior, isto é, (i) julgando procedente a ação e,
consequentemente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de € 415 428,00,
acrescida de juros de mora até integral pagamento; (ii) julgando improcedente
a reconvenção, absolvendo a Autora do pedido reconvencional; e (iii) não
condenando a Ré como litigante de má fé.
13. Por Acórdão de 11-12-2019, o
Tribunal da Relação de Lisboa confirmou, sem voto de vencido, tal
decisão.
14. Inconformada com esta decisão a Ré veio
interpor recurso de revista excecional.
Verificada a
existência da dupla conformidade de decisões (artigo 671.º, n.º 3, do Código de
Processo Civil), foram os autos remetidos à Formação de Juízes a que alude o
n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, que admitiu a revista
excecional, com fundamento no facto de as questões suscitadas no recurso –
relacionadas com os direitos de autor no âmbito dos programas informáticos –
apresentarem relevo jurídico bastante para superar a barreira da dupla
conforme, estando justificada a necessidade da excecional intervenção do STJ
com vista à obtenção de uma solução orientadora e clarificadora sobre a
matéria.
15. A Ré, nas alegações de
recurso de revista que interpôs, formulou as seguintes (transcritas)
conclusões:
1ª. O Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 11.12.2019, não consignou
a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, como assim
impunha o n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, perante as
características próprias do presente litígio.
2ª. Em
18.02.2019, a Recorrente, não se conformando com a Sentença proferida apresentou
recurso de apelação peticionando a alteração à matéria de facto, designadamente,
quanto aos pontos 7, 8, 16, 17, 21 e 35 da Base Instrutória, matéria sobre a
qual versou a renovação do julgamento e a revogação da sentença sendo a mesma
substituída por outra que absolvesse a Ré e condenasse a Autora no pedido
reconvencional formulado, o que fez concluindo em 83 pontos (A a EEEE).
3.ª Em
01.04.2019, a Recorrida apresentou contra-alegações peticionando a improcedência
do recurso apresentado pela Recorrente, o que fez concluindo em 37
pontos (A a KK).
4.ª Por
sua vez, em 11.12.2019, o Tribunal da Relação proferiu Acórdão decidindo negar
provimento ao recurso, tendo elaborado relatório com 3 pontos, decidiu a impugnação
da decisão de facto no ponto IV -1 a 5, o que fez em 11 páginas, e tendo
decidido de direito no ponto IV – 6 a 11, dedicando ao enquadramento jurídico
13 páginas.
5.ª Da
leitura do Acórdão ressalta à vista que para o Tribunal da Relação a causa não
revestiu especial complexidade, além disso, as Partes procederam de boa-fé,
esforçando-se pela resolução do litígio.
6.ª Caso
não seja dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, atento o
valor da causa (€ 997.587,00), as partes deverão ainda pagar, além do valor
acima referido, o montante de € 8.874,00, num total de € 10.506,00.
7.ª Resulta,
assim, evidente que a cobrança de tal valor excessivo é manifestamente desproporcional
face aos serviços prestados e viola os princípios da proporcionalidade
e da Justiça.
8.ª Neste
mesmo sentido concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa60, referindo que “ainda
que não em termos absolutos, deve existir correspectividade entre os serviços
prestados e a taxa de justiça cobrada aos cidadãos que recorrem aos tribunais
designadamente da taxa de justiça, de acordo com o princípio da
proporcionalidade, consagrado no artigo 2º CRP, e do direito de acesso à
justiça acolhido no artigo 20º CRP”,
9ª. Razão pela
qual se requer a reforma ou, caso assim não se entenda, a revogação do Acórdão,
nessa parte, determinando-se a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de
justiça, nos termos previstos no artigo 6.°, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais.
10º. O douto
Tribunal recorrido escusou-se de analisar a questão suscitada pela Ré nas
conclusões CCCC.e DDDD.das suas alegações derecurso relativa à nulidade parcial
do negócio e sua redução por entender, que se trata de uma questão nova.
11.ª Porém, a
referida questão suscitada pela Recorrente é do conhecimento oficioso do
julgador e tem quer ser apreciada, mesmo sem que tal lhe haja sido pedido, pois
como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.01.2015: O
princípio da conservação dos negócios jurídicos conduz ao aproveitamento do
negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte
viciada (artigo 292.º do Código Civil). Como salienta Pedro Pais de
Vasconcelos, " no caso de nulidade parcial, de conhecimento oficioso, o
tribunal não pode deixar de conhecer a nulidade e, segundo o preceito do artigo
292.º, só deve deixar de reduzir quando se convença de que as partes não teriam
celebrado o negócio sem a parte viciada".
12.ª Assim, caso
se conceba que o contrato de licenciamento objeto dos presentes autos é
parcialmente válido, pelo menos no que concerne ao licenciamento dos
desenvolvimentos realizados pela Autora sobre o SIGRes3e - já
que a Ré não logrou demonstrar que não celebraria o negócio se este tivesse
apenas por objeto o licenciamento dos desenvolvimentos realizados sobre o SIGRes3e -impõe-se
concluir pela respetiva redução do preço na proporção correspondente ao preço
do licenciamento cobrado pelo software que era e é pertença da Ré e que esta
nunca transmitiu à Autora.
13.ª E não se diga
que “inexistem factos provados para fundamentar o pretendido - nomeadamente no
que respeita aos valores de licenciamento respeitarem à utilização dos módulos
constantes do programa originário da titularidade da R.”, pois resulta do facto
provado em 5.º que “(…) o preço da Licença ora concedida e dos serviços contratados no seu âmbito é de EUR: 90.000, devidos em quatro tranches de
22.500 Euros, a pagar mensalmente, nos meses de Setembro a Dezembro de 2008.
2. Adicionalmente,
será devido um valor mensal por utilizador comprovadamente registado na
aplicação,variável em funçãodo tipo de utilização nos termos indicados
no quadro abaixo a facturar, pelo Segunda Contratante, nas condições previstas
na Cláusula Terceira do Contrato
Utilizadores
Custo Mensal / Utilizador
Intranet
Financeira 85,00€
Comercial 85,00€
Gestão de Resíduos 85,00€
Extranet
Aderentes 85,00€
Centros de Recepção 85,00€
Operadores Logísticos 85,00€
Unidades de Tratamento e Valorização
85,00€
14.ª Por outro lado, resulta manifestamente
provado nos autos que a componente variável respeita à utilização dos módulos constantes do programa originário da titularidade da Ré
conforme é referido no relatório pericial onde se lê que o SIGRes3e já
continha tais módulos que eram utilizados pelos utilizadores, a saber:
• “Aderente”
•
“Amb3E” (composto pelo módulo financeiro, o módulo comercial e
o módulo de gestão de resíduos)
•
“CR” (Centros de Receção)
•
“OL” (Operadores Logísticos)
• “UTV” (Unidades de Tratamento e Valorização) (cfr. fls. 1202 verso do relatório perician( �o:p>
15.ª Quer isto
dizer que a redução do preço se operaria, designadamente, através da eliminação
da componente do preço que se refere à (i) disponibilidade do software SIGMA que
à data do contrato era uma réplica do SIGRes3e (EUR 90.000,
acrescido de IVA, num total de €108.000,00 - valor a que alude a alínea g) do
facto provado em 25.º), e (ii) utilização por utilizador dos módulos que já
constavam do SIGRes3e que era e é da titularidade da Ré (cujo
valor resulta, ainda que indiretamente, do facto provado em 33.º como sendo de
€474.159 = €582.159-€108.000).
16.ª Nestes
termos, uma vez que se trata de uma questão de conhecimento oficioso, competia
ao douto Tribunal recorrido dela conhecer, sob pena de nulidade de tal acórdão,
por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) primeira parte do n.º 1, do
artigo 615.º e do n.º 3, do artigo 613.º, ambos do Código de Processo Civil.
17.ª Razão pela
qual deve ser revogado o aresto recorrido e ordenada a baixa do processo para o
Tribunal da Relação de Lisboa a fim de ser suprida tal nulidade, devendo, em
qualquer caso, a questão da redução do preço do contrato de licenciamento em
crise, ser julgada procedente nos termos peticionados.
18.ª A Recorrente
interpõe o presente recurso de revista excecional, tendo como fundamento as
situações elencadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, uma
vez que considera que estão em causa duas questões fundamentais de direito de
manifesta complexidade, de difícil resolução e para cuja subsunção jurídica se
impõe um detalhado exercício de exegese e interpretação, a saber:
(i) o que se deve
entender por programa original; e
(ii) se a autorização
para transformação de um programa de computador concedida
pelo seu titular a terceiro está sujeita ao cumprimento de
alguma formalidade legal sob pena de nulidade.
19.ª A primeira
questão de direito sob apreço atinente ao conceito de programa original
mostra-se de acentuada pertinência e deveras fundamental uma vez que para que
uma obra autoral, como o programa de computador, tenha proteção jurídica, é
necessário que obedeça ao requisito da originalidade e a este
propósito, conforme bem refere o Acórdão recorrido, “nem a Diretiva n.º 91/250/CEE,
nem o DL n.º 252/94 de 20 de outubro “(…) indicam o que seja um
programa «original, no sentido em que é o resultado da criação intelectual do
autor», ou o que seja um programa de computador com «carácter criativo»”.
20.ª Acresce que,
tal conceito de “originalidade”, por demais primordial para efeitos de
reconhecimento da proteção jurídica dos programas de computador, prevista no
Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, não tem sido detalhadamente tratado
pela jurisprudência, constituindo questão com relevância jurídica a justificar
pronúncia pelo Supremo Tribunal de Justiça.
21.ª A segunda
questão fundamental de direito em apreço, objeto de controvérsia doutrinal e
jurisprudencial, prende-se em saber se a autorização para transformação de um
programa de computador concedida pelo seu titular a terceiro está sujeita deve
ser reduzida a escrito e a este propósito, refere o Acórdão recorrido que
“ainda que não resulte dos factos provados uma autorização expressa da R. no
sentido de a A. utilizar e transformar o SIGRes3e, depreende-se
desses factos que implicitamente essa autorização foi concedida”.
22.ª Em
causa esta a apreciação do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de
outubro, em especialoseun.º2,aqual tem gerado divergências interpretativas,
nomeadamente sobre se o elenco de disposições legais do Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos para os quais remete é um:
(i) elenco
fechado, como sustenta Luiz Francisco Rebello, excluindo, por esse motivo, do
universo de normas aplicáveis aos negócios relativos a direitos sobre programas
de computador, os artigos 41.º e 169.º do CDADC que exigem a forma escrita para
a autorização concedida pelo titular do direito de autor para efeitos de
utilização e transformação da obra autoral; ou se, pelo contrário,
(ii)o elenco
meramente exemplificativo, como sustenta Tiago Bessa uma vez que o Código do
Direito de Autor e dos Direitos Conexos se aplica de forma transversal aos
negócios relativos a direitos sobre programas de computador.
23.ª As
consequências legais associadas à inobservância do formalismo associado aos
negócios jurídicos de autorização para efeitos de utilização, divulgação,
publicação, exploração e transformação por terceiro de obras autorais não são
pacificas na jurisprudência e doutrina portuguesas.
24.ª Para autores
como Luiz Fernando Rebello e António de Macedo Vitorino a exigência de forma
escrita ínsita nos artigos 41.º, n.º 2 e 169.º, n.º 2, ambos do CDADC, para os
negócios jurídicos de autorização a terceiro tem uma mera eficácia ad probandum e
não ad substantiam.
25.ª Por sua vez,
autores como Maria Victória Rocha61 e Tiago Bessa são da opinião
dequecomooartigo220.º do Código Civil estabelece que “a declaração
negocial que careça a forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”, e,
concomitantemente, os artigos 41.º, n.º 2, e 169.º, n.º 2, do CDADC impõe a
forma escrita para as autorizações concedidas a terceiros, então há que
concluir que caso a declaração negocial não respeite esta formalidade o negócio
jurídico encontra-se ferido com o vício da nulidade.
26.ª Posto isto, a
relevância jurídica desta segunda questão de direito e do seu impacto numa
melhor aplicação do direito resulta, desde logo, do dissenso verificado na
doutrina quanto à interpretação jurídica que os supramencionados artigos
merecem a respeito não só do formalismo legal associado ao ato de autorização a
terceiro para efeitos de transformação de programa de computador, como também
das consequências jurídicas associadas ao eventual não cumprimento da referida
formalidade legal, o que, por sua vez, se afigura claramente indiciador do
surgimento de jurisprudência contraditória acerca desta temática.
27.ª Resulta do
exposto que as questões em apreço assumem relevância jurídica que
padece de um tratamento doutrinal e jurisprudencial de molde a se lograr
atingir um consenso em termos de servir de orientação para as pessoas que
participam e lidam com o tráfego comercial de obras autorais, mormente, de
programas de computador, a fim de tomarem conhecimento dos requisitos e
exigências definidos, o que também reveste ainda particular relevância social uma
vez que as questões têm interesse comunitário significativo que ultrapassa a
dimensão inter partes do presente caso concreto,
motivo pelo qual deverá ser admitido o presente recurso em respeito pelas
alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.
28.ª De acordo com
o entendimento do Tribunal recorrido vertido no aresto ora impugnado o facto de
o programa SIGMA se configurar como uma evolução do SIGRes3e, com as mesmas
funcionalidades do SIGRes3e, mas, a par disso, com “novas funcionalidades e oito
novos módulos” permite concluir que se trata de uma “obra derivada”, não
resultando da matéria de facto julgada provada nos presentes autos que o SIGMA
“não tenha na sua expressão uma transformação criativa por parte do A.”.
29.ª Salvo o
devido respeito, o que não resulta dos factos provados é que o SIGMA, uma
evolução, ou antes, uma réplica do SIGRes3e – que é
propriedade da Ré -“feito por encomenda à medida das necessidades da Ré” tenha
na sua expressão uma transformação criativa por parte da Autora.
30.ª O conceito de
“criatividade” não está por demais desenvolvido nem na doutrina nem na
jurisprudência, não havendo também noções legais que possam ser utilizadas de
forma acrítica; assim sendo, e atendendo às especificidades do caso, torna-se
importante que tal densificação seja feita pelos técnicos na matéria que, aqui,
são os peritos (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07.10.2007).
31.ª Ora, no
caso sub judice o recurso à prova pericial, e bem
assim, à demais prova produzida em julgamento, permitiu apurar que a Autora, ao
contrário do acordado, trabalhou sobre o programa de base que era da Ré, ao
qual apenas acrescentoualguns módulos em jeitode atualização eredenominoude “SIGMA”,
de tal modo que o SIGMA é uma réplica do SIGRes3e!
32.ª Réplica essa
que, não obstante eventuais desenvolvimentos verificados entre o programa SIGRes3e analisado
na versão de 02.07.2007 (anterior à data do contrato) e o programa SIGMA analisado
na versão posterior a agosto de 2010 (2 anos posterior à data do contrato),
apresenta cerca de 80% de correspondência ao
nível do código fonte e identificadores únicos do SIGRes3e.
33.ª Código fonte
e identificadores únicos esses que representam o código genético da aplicação e
que revelam sem margem para dúvidas que o SIGMA tem o código
genético do SIGRes3e.
34.ª Com efeito,
da perícia que procede à análise comparativa dos programas SIGMA e SIGRes3e resultou
que:
• «O SIGRes3e apresenta-se dividido em 6 módulos, estando presentes no SIGMA módulos de igual nome» (fls. 1202 v.);
• «74,8% dos ficheiros do SIGRes3e têm correspondente, em nome, no SIGMA» (fls. 1202 v.);
• «(...) no
universo de ficheiros relevantes para análise de conteúdo, 88,0% de ficheiros
do SIGRes3e têm correspondente, em nome, no SIGMA” (fls. 1203);
• «Ou seja,
O 73,5% dos ficheiros relevantes no código fonte do SIGRes3e tem o seu conteúdo replicado total ou parcialmente no SIGMA;
O 83,3% dos identificadores únicos dos módulos do SIGRes3e estão presentes nos módulos de igual nome do SIGMA;
o 94,6% do conteúdo visual do SIGRes3e está presente no SIGMA;
o 88,9% do conteúdo documental do SIGRes3e está presente no SIGMA, total ou parcialmente.» (fls. 1203 v.);
• «A análise permitiu verificar que 100% dos objetos estão presentes no SIGMA, total ou parcialmente.
No caso das Tabelas, 91 (100%) têm a sua estrutura (colunas, índices, constraints, chaves primárias e chaves secundárias) replicada no SIGMA
No caso dos procedimentos, 264 (58,7%) apresentam-se inalterados no SIGMA, e 186 (41,3%) apresentam pequenas alterações.
No caso das Funções, 100% apresentam-se inalteradas no SIGMA» (fls. 1204)
35.ª Em sede de
conclusões da perícia é ainda salientado que:
«Os identificadores únicos (e universais) de 5 dos 6 módulos do SIGRes3e são
os mesmos dos módulos de igual nome
no SIGMA, oque permite concluir que estes módulos serviram de base no desenvolvimento do SIGMA. Caso
se tratasse de um novo desenvolvimento, os identificadores únicos
seriam forçosamente diferentes.
A ocorrência de grandes semelhanças na estrutura dos ficheiros e diretorias, bem como a total
replicação dos objetos de Base de Dados no SIGMA, têm também um peso relevante no resultado da perícia.
Relativamente aos ficheiros de conteúdo visual (apesar
de este ser um tipo de conteúdo que é comum encontrar replicado em diversas
aplicações), a total replicação dos ficheiros do SIGRes3e no
SIGMA, em termos de quantidade e localização dos ficheiros, é também um
facto relevante para a perícia.
Por último, nos ficheiros de tipo de conteúdo
documental, importa referir que nos 8 ficheiros cujo conteúdo se encontra
replicado no SIGMA, em 5 deles o ficheiro é o mesmo (e que incluem
todos em rodapé o logótipo da I...), e nos restantes 3, o logótipo
da I... foi removido ou substituído pelo da SIGMA.» (fls. 1204 e 1204
v.)
36.ª Se tal não
bastasse para concluirmos que, comparadas as propriedades dos programas, não há
margem para originalidade, criatividade ou novidade do SIGMA,
atentemos nas respostas que os peritos deram aos seguintes quesitos:
d. Queiram os
Senhores Peritos esclarecer se a implementação do SIGMA representou um
aperfeiçoamento e melhoramento do SIGRes3e ou se, pelo contrário, se trata de
um sistema completamente novo de raiz? (arts.16º, 17º, e 31º da Base
Instrutória).
Resposta: é um aperfeiçoamento e melhoramento.»
«e. Queiram os Senhores Peritos esclarecer se o software de base do SIGME era o do SIGRes3e? (arts. 16º e 17º da Base Instrutória)
Resposta: Sim»
n. Queiram os
Senhores Peritos esclarecer se o SIGMA, enquanto software aplicacional de
desenvolvimento do SIGRes3e, foi encomendado como tal e foram efetuados
posteriormente desenvolvimentos à medida das necessidades da Ré – adjudicados e
contratados separadamente? (arts. 2º e 14.º da Base Instrutória)
Resposta: A
pergunta parece-nos estar mal formulada, devendo ser substituída a referência
“software aplicacional de desenvolvimento do SIGRes3e” por “software
aplicacional de desenvolvido com base no SIGRes3e”, dado que a pergunta tal
como está formulada indica que o SIGRes3e foi baseado no SIGMA, o que não é
correcto.
Considerando esta correção, apenas podemos responder à
parte “e foram efetuados posteriormente desenvolvimentos à medida das necessidades da Ré”, sendo a resposta
sim.»XI O software SIGMA da Autora é uma cópia do programa SIGRes3e de 2007 ou anterior?
Resposta. O SIGMA não é uma cópia, mas sim uma evolução da versão do SIGRes3e analisada, que foi atualizada pela última vez em 2007.
37.ª Importa
também salientar que foi realizado um desenvolvimento aplicacional sobre o
software SIGRes3e entre 02.07.2007 (data da versão analisada)
e 22.08.2008 (data do contrato referido no facto provado em 5.º) correspondente, a pelo menos, à criação de 4 novos módulos (“WS
authentication’, “utilizadores”; “avisos” e “reports Amb3e”).
38.ª Tal, por sua
vez, resulta devidamente demonstrado nos presentes autos por via dos
esclarecimentos prestados pelos peritos, em sede de primeiro julgamento, por
referência à data da versão do SIGMA analisada, que:
Perito 1: Ora…
Portanto, relativamente aos 8 novos módulos introduzidos pelo Sigma, um a
um, temos que o… o módulo ‘avisos’ teve desenvolvimentos entre Maio de 2008
e Maio de 2010, portanto, começou, portanto, o mais antigo que nós temos,
que começou a ser feito foi então em Maio 2008, o…
Advogado: A Maio de 2010…
Perito 1: Maio de 2008. O
‘help interactivo’ entre Agosto de 2009 e Agosto de 2010; o ‘inquéritos
gráficos’ entre Março de 2010 e Maio de 2010, o ‘inquéritos P…’
Advogado: Inquéritos?
Perito 1: ‘P’…
Advogado: ‘P’?
Perito 1: ‘P’, só a letra ‘P’ mesmo. Entre Abril de 2010 e Maio de 2010. O ‘LR’, letras ‘LR’…
Advogado: Não estou a perceber…
Juiz: L de Lima…
Advogado: L…
Juiz: … R de Romeu.
Advogado: Ah, de Romeu, R…
Perito 1: … entre Dezembro de 2009 e Março de 2010.
Advogado: Já me…
Perito1: Oiça, portanto, o ‘LR’ entre Dezembro de 2009 e Março de
2010; o ‘utilizadores’ entre Abril de 2008 e Março de 2010; depois
temos ainda o ‘WS authentication’ entre Fevereiro de 2008 e Março de 2010;
e, por último, o ‘reports Amb3e’ entre Agosto de 2008 e Março de 2010.
(cfr. minuto 00:00 a 02:31 da Gravação
Áudio do depoimento dos peritos na Audiência de Discussão e Julgamento
realizada no dia 15.11.2013, com início às 11:17:14 horas)
39.ª Ficou, assim,
pericialmente comprovado que a versão do software SIGRes3e que
foi analisada à data de 02.07.2007, não correspondia à versão do SIGRes3e em
funcionamento (supostamente, até) à data do contrato 22.08.2008, e sobre o qual
como vimos haviam efetuados, pelo menos, os seguintes desenvolvimentos aplicacionais:
(i) a partir de
fevereiro de 2008 foi criado o módulo “WS authentication’;
(ii) a
partir de abril de 2008 foi criado o módulo “utilizadores”;
(iii) a partir de
maio de 2008 foi criado o módulo “avisos”; e
(iv) a partir de
agosto de 2008 foi criado o módulo “reports Amb3e”.
40.ª Sucede que o
Tribunal recorrido ignorou o referido desenvolvimento aplicacional o que é
grave, se tivermos em conta que, nesse período, o SIGRes3e sofreu uma evolução, correspondente, pelo menos, à criação de 4 novos módulos (“WS
authentication’, “utilizadores”; “avisos” e “reports Amb3e”).
41.ª Esses 4
módulos foram criados sobre o software SIGRes3e – e não sobre
o SIGMA – muitos meses antes da celebração do contrato relativo
ao software “SIGMA”, como decorre do exposto e resulta, aliás, dos
factos provados em 19 e 25.
42.ª Por outro
lado, como vimos dos esclarecimentos prestados pelos peritos, à data do contrato (22.08.2008) o “SIGMA”, não continha os restantes 4 novos módulos identificados na perícia,
isto porque, como acima vimos:
(i)
“HelpInteractivo” foi criado a partir de agosto de 2009;
(ii) “LR”
foi criado a partir de dezembro de 2009;
(iii)
“Inqueritos/Graficos” foi criado a partir de março de 2010;
(iv) “InqueritosP”
foi criado a partir de abril de 2010
43.ª Sintetizando,
à data do contrato (22.08.2008):
(i) o SIGRes3e -
software sobre o qual a Autora começou a laborar ainda em 2007, cabendo-lhe
elaborar software aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações
feitas por encomenda à medida das necessidades da Requerida – já continha 4 dos 8 “novos” módulos identificados na perícia,
a saber “Avisos”, “Utilizadores” “WSAuthentication” e “ReportsAmb3e”; e
(ii) o SIGMA não continha ainda os restantes 4 dos 8 “novos” módulos identificados
na perícia, a saber “HelpInteractivo”, “Inqueritos/Graficos”, “InqueritosP” e
“LR”.
44.ª Não deixa de
ser curioso notar que a versão do SIGMA que foi analisada
pelos peritos reporta-se a 2010, quando o contrato foi celebrado em 22.08.2008,
não tendo sido possível analisar uma versão anterior uma vez que, convenientemente,
o CD depositado pela Autora na ASSOFT – Associação Portuguesa de
Software não continha o código fonte do programa (cfr.
relatório pericial a fls. 1202), que deveria ter sido depositado junto da
referida entidade, tal como contratualmente previsto de acordo com a Cláusula
8.ª, n.º 2,doAnexo I ao contrato de 22.08.2018.
45.ª Mais curioso
ainda é que as especificações e o diagrama constante do contrato junto aos
autos relativo ao SIGMA eram exatamente as mesmas do SIGRes3e que
a I... Business Solutions – Soluções Informáticas, Lda. havia criado para a
Ré, não havendo qualquer espaço para dar asas à imaginação, levando à criação de inovações inéditas, conforme
referiu a testemunha AA, ……. da I... Business Solutions – Soluções
Informáticas, Lda., criador do software SIGRes3e -
confrontado, em repetição do julgamento, com o Anexo Adicional A)
“Especificações SIGMA” do contrato celebrado entre a Autora e a Ré
em 22.08.2008 (documento n.º 3 junto à Oposição à Injunção, a fls. 143):
Mandatária: eu queria que dentro destas especificações me identificasse
aquilo que considera, se as reconhece, como sendo especificações do SIGRes3e.
AA: isto são
especificações, posso mostrar este diagrama que está aqui faz parte
integrante da proposta inicial que eu fiz para a AMB3E de fevereiro de 2006
em que este diagrama está aqui, quer ver, isto é a proposta que eu fiz.
Mandatária: é exatamente... é o mesmo diagrama?
AA: é o mesmo diagrama, exatamente.
Mandatária: O mesmo desenho?
AA: Os mesmos nomes exatamente a mesma coisa.
(cfr. minuto 28:25 a 29:09 da Gravação Áudio do depoimento de AA na Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 25.05.2018)
46.ª Posto
isto não pode a Ré conformar-se com o facto de o Tribunal recorrido ter feito
tábua rasa da prova produzida nos presentes autos, concluindo pelo carácter
original e criativo do programa de computador SIGMA,
47.ª Ainda
para mais quando deu como provado que as alterações ao software
eram feitas por encomenda e de acordo com as necessidades específicas
da Ré.
48.ª Segundo afirma Maria
Victória Rocha62 o conceito de originalidade, não obstante não exigir a
verificação de uma especial criatividade, não se basta apenas com a existência de esforço, trabalho ou investimento,
sendo necessário a existência de um espaço de liberdade para o autor desenvolver a sua atividade intelectual.
49.ª Como
decorrência desta exigência, se a forma adotada for imposta pela função
a atingir, não há qualquer espaço de liberdade para a individualidade
do autor. Conclui, nesta senda, que tudo o que resulta de condicionamentos técnicos não será uma obra63.
50.ª Partindo da
factualidade vertida nos presentes autos interpretada à luz do conceito de
originalidade acima vertido mostra-se, por demais, evidente, que o
programa SIGMA não se configura como uma obra protegida que
mereça proteção jurídica, isto porque, por um lado, não é um programa novo e
original, e, por outro lado, embora represente uma transformação, melhoramento
ou aperfeiçoamento de um programa pré-existente SIGRes3e, não é
criativo, logo não se qualifica como programa/obra derivado.
51.ª Comece por se
referir que, sendo o SIGMA uma evolução do SIGRes3e,
conforme assumido pelo Tribunal a quo no ponto
30.º da matéria de facto dada como provada, então ilógico seria afirmar que
este é um “programa novo”, pois que o próprio conceito de evolução – enquanto
processo de desenvolvimento de uma realidade pré-existente – supõe a prévia
existência de um trabalho base, do qual os subsequentes partirão.
52.ª Mais, ainda
que se considere que o SIGMA passou a correr numa framework mais
evoluída de 2.0 em vez de 1.1 – o que cremos não ter resultado provado em
especial, à data do contrato referido no facto provado em 5.- resulta manifesto
que não estamos perante um programa “novo”, mas sim perante uma transformação
do SIGRes3e que mais não é do que uma modificação,
melhoramento e atualização do mesmo.
53.ª Não havendo
obra, o SIGMA não é mais do que o SIGRes3e sujeito
a algumas alterações, conforme confirmado pelos peritos quando afirmaram inequivocamente que «É um aperfeiçoamento e melhoramento64».
54.ª Não
obstante, caso o SIGMA pudesse constituir uma obra,
seria premente analisar o regime legal das alterações efetuadas a
obras protegidas pelo direito de autor, porquanto dúvidas não
restam de que o SIGMA consiste numa alteração e melhoramento do programa pré-existente SIGRes3e.
55.ª Ora, as
alterações de obras encontram-se reguladas na Diretiva do Conselho n.º
91/250/CEE, de 14 de maio, relativa à proteção jurídica dos programas de
computador, designadamente na alínea b) do artigo 4.º, onde se estabelecem três
vicissitudes relativas aos programas de computadores: (i) tradução; (ii)
adaptação; e (iii) ajustamentos ou outras modificações.
56.ª No plano
nacional, prevê a alínea b) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de
outubro, que o titular do programa pode fazer ou autorizar “qualquer transformação do programa e a reprodução do programa derivado”, sem prejuízo dos direitos de quem realiza a transformação.
57.ª José Alberto
Vieira, acima citado, ensina que não há diferença material entre as redações
dos normativos supramencionados, sendo que a expressão “transformação
do programa de computador” contempla toda e qualquer modificação do mesmo,
seja tradução, adaptação ou outro, sem limite de extensão da modificação
operada.
58.ª Sucede,
porém, que nem todas as transformações dão origem a obras derivadas que merecem tutela jurídica.
59.ª Ainda segundo
José Alberto Vieira, a correção de erros, os melhoramentos do programa, as atualizações e as novas versões do
mesmo consubstanciam transformações que não deverão, per si, dar origem a uma obra derivada,
logo, a uma obra nova e, em consequência, uma obra original.
60.ª Até porque
as novas versões e outras transformações não constituem uma nova obra para
efeitos de proteção jurídica pelo direito de autor,
61.ª Mais,
conforme já esclareceu, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão acima
citado, “O carácter criativo da “obra”, a que alude o art. 1º do CDADC, depende
de não constituir cópia de outra obra (requisito mínimo), não constituir o resultado da aplicação unívoca de critérios pré – estabelecidos,
nomeadamente de natureza técnica, em que estejam ausentes verdadeiras escolhas ou opções do autor e
traduzir um resultado que não seja óbvio, banal, e que, portanto, permita distingui-lo
de outros, reconhecer-lhe uma individualidade própria, enquanto
obra, independentemente do suporte material que a encerra.
62.ª De facto,
como ensina José de Oliveira Ascensão, na obra acima citada, “a criação do
programa de computador é uma tarefa de imaginação, inteligência e
persistência”.
63.ª Em face do
exposto, enquanto evolução do SIGRes3e, resultante apenas de meras
transformações do SIGRes3e feitas por encomenda e de acordo
com as necessidades específicas da Ré, o “SIGMA” não consubstancia um programa
original, nem tão pouco uma obra derivada, uma vez que não contém carácter
criativo, não merecendo, portanto, qualquer proteção jurídica.
64.ª Mesmo que se
entenda que o SIGMA constitui uma obra derivada do SIGRes3e por
exprimir uma transformação criativa - o que não se concebe mas por mera cautela
de patrocínio se pondera – sempre se dirá que tal transformação não merece
proteção jurídica uma vez que não foi objeto de autorização por parte da Ré.
65.ª Isto porque,
não sendo a Autora titular do programa base “SIGRes3e, mas, ao invés, a
Ré só poderia empreender quaisquer alterações ou transformações sobre o
programa SIGRes3e sob a autorização da Ré ( cfr. artigo 5.º,
al. b), do Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de outubro) – o que não sucedeu como se
demonstrará em seguida.
66.ª A este
respeito, entendeu o Tribunal a quo no aresto
de que ora se recorre que a Autora procedeu à transformação do programa de
software SIGRes3e, tendo para tal obtido autorização da Ré, a qual,
mesmo que não resulte de forma expressa do contrato de licenciamento objeto dos
presentes autos, decorre de forma implícita dos pontos de facto provados 43, 9,
19 e 37, ou seja, segundo o Tribunal a quo é
possível retirar uma autorização implícita, isto é, uma declaração negocial
emitida pela Ré sob a forma tácita com valor autorizante.
67.ª Em primeiro
lugar, cumpre, desde já, adiantar que a referida autorização a que o Tribunal
faz alusão nunca se poderia retirar da factualidade provada sob os pontos 43,
9, 19 e 37 uma vez que a referida factualidade não integra quaisquer
comportamentos concludentes de uma vontade negocial de natureza autorizante
para efeitos de transformação do programa de computador.
68.ª Note-se:
i) Facto 43 -
refere que “O SIGRes3e foi desenhado de acordo com as necessidades específicas
da actividade da ré e mediante encomenda.
Porém, conforme
resulta do facto 32.º o SIGRes3e não foi desenhado
pela Autora, foi antes desenhado pela I... e pela A...-Consulting – em 2006!
ii) Facto 9 -
refere que “aquando da celebração do contrato referido em A), com a Requerente,
disponibilizou-lhe um sistema informático desenvolvido por uma terceira”, porém
o
iii) Facto 19 -
refere que “A Requerente começou a laborar no sistema informático da Requerida
ainda em 2007 e cabia-lhe elaborar software aplicacional no sentido de serem
disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das necessidades da
Requerida”,
Ou seja, o
programa foi disponibilizado pela Ré à Autora pelo menos em
2007 e para fins de desenvolvimento de “software aplicacional no
sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das
necessidades da Requerida.”
iv) Facto 37 -
refere que “O SIGMA tinha de ter as mesmas funcionalidades do sistema anterior,
o SIGRes3e”.
O que não pode ser
servir de desculpa para que a Autora tenha feito a Ré crer que esta tinha
criado um programa original que afinal mais não era do que uma
transformação/réplica não autorizada do programa da Ré, muito menos, tal poderá
fundamentar qualquer autorização da Ré nesse sentido.
69.ª Como está bom
de ver, de tais factos não é possível concluir pela existência de uma
autorização, antes pelo contrário.
70.ª Conforme
resulta dos factos provados, no contrato celebrado entre as partes,
no qual a Ré referiu que era titular de um software denominado “SIGMA” e
licenciando o mesmo à Autora – quando o SIGMA afinal era o SIGRes3e “camuflado”
pela Autora - ao invés de qualquer autorização as partes acordaram,
antes, que “os direitos de autor do software já utilizados por
qualquer das Partes Contratantes, bem como quaisquer marcas que já
tenha registadas a seu favor, são da sua exclusiva titularidade,
obrigando-se a outra Parte Contratante a respeitá-las, salvo se diferente
decorrer nos termos da legislação vigente aplicável” (Cláusula 4.º do contrato
reproduzido no facto provado em 5.º).
71.ª Por força do
exposto, é manifesto que a Ré nunca concedeu a referida autorização à Autora,
muito menos para transformar o SIGRes3e que é da titularidade
da Ré com vista a que a Autora, camufladamente, o rebatizasse de SIGMA, se
arrogasse titular do mesmo e o passasse a explorar cobrando indevidamente à Ré
valor a título de licenciamento de um programa que afinal mais não era do que o
programa de que a Ré é a titular ou, pelo menos, a titular do programa
originário SIGRes3e.
72.ª Apurar se os
comportamentos vertidos nos pontos 43,9,19 e 37 da factualidade julgada
comoprovada integram ounãouma declaraçãonegocialtácita équestão de direito,a
resolver em sede de interpretação,ao abrigo da teoria da impressão do
destinatário,por referência aos artigos 236.º, 237.º e 238.º, n.º 1, do Código
Civil.
73.ª Ora, com o
devido respeito pela conclusão a que se chegou no aresto impugnado, dos factos
provados não é possível concluir por qualquer comportamento que traduza ou
revele, com toda a probabilidade, uma intenção de a Ré autorizar a Autora à
criação de um programa através da mera transformação do programa de
computador SIGRes3e que pertencente à Ré.
74.ª Ademais, o
juízo presuntivo elaborado pelo Tribunal recorrido, ofende as mais basilares
regras da experiência da vida, já que, nenhum homem médio e razoável
concordaria em celebrar um negócio jurídico oneroso com o fito de exercer um
determinado direito sobre um certo bem ou coisa, mormente de utilização e
transformação, sabendo, de antemão, que esse bem ou coisa é uma réplica de um
que já possui para além de que, por se tratar de uma réplica, pode lograr
exercer esse direito independentemente do referido negócio jurídico, uma vez
que é titular ou proprietário do referido bem.
75.ª
Consequentemente, ao contrário do entendimento vertido no aresto recorrido, não
se pode dizer que houve uma autorização tácita/implícita da Ré à Autora para
que esta procedesse a uma transformação do programa de software SIGRes3e.
76.ª Nestes
termos, não sendo a Autora titular do programa base SIGRes3e, à
mesma não pode ser reconhecida qualquer proteção legal relativamente
às alterações que efetuou, sem autorização, sob o programa “SIGRes3e.
77.ª Caso
assim não se entenda – o que não se aceita e por mera cautela de patrocínio se
pondera – sempre se diga que os referidos comportamentos concludentes não se
retiram de um documento escrito, em claro desrespeito pela formalidade legal
aplicável à autorização a terceiro para efeitos de transformação de programa de
computador, culminando, assim, na nulidade da autorização.
78.ª O Código do
Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) prevê o exercício do direito de
autorização do autor e suas formalidades legais não só para efeitos de
tradução, arranjo instrumentalização, dramatização, cinematização e, em geral,
qualquer transformação (cfr. artigo 169.º) como também para efeitos de
divulgação, publicação utilização ou exploração da obra (cfr. artigo 41.º).
79.ª Ora, quer o
n.º 2 do artigo169.º, como o n.º 2 do artigo 41.º, ambos do CDADC, exigem a
forma escrita para a autorização concedida pelo titular do direito de autor.
80.ª Daqui se
obtém que, ao abrigo do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, a
autorização para efeitos de transformação por terceiro da obra autoral está
sujeita a forma escrita.
81.ª Sucede,
porém, que, o Tribunal recorrido considera que o regime jurídico especialmente
estabelecido para efeitos de proteção autoral dos programas de computador
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 252/94 de 20 de outubro que prevê no seu artigo
5.º, alínea a) o direito do titular do programa de computador de autorizar “qualquer transformação do programa e a reprodução do programa derivado, sem prejuízo dos direitos de quem realiza a transformação”,
não carece qualquer formalismo legal, nem de forma escrita.
82.ª Sustentando
tal entendimento, o Tribunal refere, em nota de rodapé, que como mencionam
Garcia Marques e Lourenço Martins “parece ter havido um propósito de reduzir as
formalidades nos negócios relativos a direitos sobre programas de computador,
quer no tocante à necessidade de escritura pública quer de simples documento
escrito” – porém, os mesmos não deixam de aduzir à forma escrita
83.ª Com efeito,
na obra acima citada, Garcia Marques e Lourenço Martins a respeito da autonomia
privada e das formalidades legais aplicáveis aos negócios jurídicos que têm por
objeto programas de computador, tomam como ponto de partida o artigo 11.º do Decreto-Lei
n.º 252/94 de 20 de outubro, em especial o seu n.º 2, ao estabelecer que “são
aplicáveis a estes negócios [relativos a direitos sobre programas de
computador] as disposições dos artigos 40.º, 45.º a 51.º e 55.º do Código do
Direito de Autor e dos Direitos Conexos”.
84.ª Para de
seguida afirmarem que “a indicação de certos artigos do CDADC pode inculcar
o juízo fácil da interpretação a contrario. Os preceitos mencionados
neste n.º 2 são aplicáveis aos negócios jurídicos sobre programas de
computador, parecendo ter havido um propósito de reduzir as formalidades nestes
negócios, quer no tocante à necessidade de escritura pública, quer de simples
documento escrito. Repare-se que no Projecto de lei n.º 395/VI a remissão para
o CDACD era mais ampla – incluía também os artigos 41.º, 42.º, 43.º e 44.º - o
que implicava não serem dispensadas aquelas formalidades. Será, a
nosso ver, precipitado extrair o argumento a contrario sensu de que
não se aplicam outras regras do CDADC. Por exemplo, o próprio
regime do artigo 42.º deste Código, na medida em que se reporta a “direitos
morais” consagrados no artigo 9.º deste diploma, será aplicável, ou seja tais
direitos não são transmissíveis nem oneráveis – cfr. também o n.º 3 do artigo 9.º e o n.º
2 do artigo 56.º do CDADC”(sublinhado
e destaques nossos).
85.ª Daqui se
retira que os autores citados pelo Tribunal recorrido não se comprometem nem
aderem expressamente a uma solução com base na qual todas as disposições legais
do CDADC que preveem formalidades e não constam do elenco definido no artigo
11.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, não se aplicam aos
negócios jurídicos que têm por objeto direitos sobre programas de computador –
em especial a exigência de forma escrita para a autorização concedida pelo
titular do direito de autor.
86.ª De tal modo
que a interpretação que o Tribunal recorrido faz das palavras dos mencionados
autores é uma interpretação incorreta e descontextualizada, e, por isso, sem
qualquer valor operativo para efeitos de sustentação da posição de acordo com a
qual a autorização a terceiro para efeitos de transformação de programa de
computador não exige forma escrita.
87.ª Como bem
ensina Tiago Bessa, o elenco de preceitos legais do Código do Direito de Autor
e dos Direitos Conexos para os quais o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 252/94,
de 20 de outubro, remete não é taxativo nem fechado uma vez que “esta remissão até poderia ser dispensável dada a aplicação transversal do CDADC”.
88.ª Veja-se que a
aplicação transversal do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos aos
negócios jurídicos que envolvem direitos relativos a programas de computador
resulta, desde logo, do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20de outubro,
nos termos do qual “aplicam-se ao programa de computador as regras sobre autoria e titularidade vigentes para o direito de autor.”
89.ª Mais, segundo
o mencionado autor, “os artigos 40.º e segs, formam, assim, aquilo que
poderíamos apelidar de parte geral do “Direito Contratual de Autor”.
90.ª Daqui se
retira que o referido elenco de disposições legais do Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos para o qual remete o artigo 11.º,
n.º 2, do Decreto-Lei n.º 252/94, de 20 de outubro, é meramente
exemplificativo, e por isso, de parca utilidade, uma vez que o referido Código
se aplica de forma transversal aos negócios relativos a direitos sobre
programas de computador.
91.ª Impõe-se
assim concluir que o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e, em
especial, a exigência de forma escrita para a autorização para transformação da
obra autoral da obra se mostra plenamente aplicável aos negócios jurídicos de
autorização para transformação de programas de computador, em harmonia com o
disposto no artigo 169.º, n.º 1, do CDADC aplicável ex vi artigo
3.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 252/94.
92.ª Neste
sentido, autores como Maria Victória Rocha e Tiago Bessa são da opinião de
quecomooartigo220.º do Código Civil estabelece que “a declaração
negocial que careça a forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”, e,
concomitantemente, os artigos 41.º, n.º 2, e 169.º, n.º 2,do CDADC impõem a
forma escrita para as autorizações concedidas a terceiros, então há que
concluir que caso a declaração negocial não respeite esta formalidade o negócio
jurídico encontra-se ferido com o vício da nulidade.
93.ª Em suma,
mesmo que se considere que a Ré realizou comportamentos de natureza concludente
dos quais é possível retirar uma autorização à Autora para que esta procedesse
a uma transformação do programa de software SIGRes3e – o que
não se aceita e só por mera cautela de patrocínio se equaciona - sempre se terá
de concluir que, como os referidos comportamentos concludentes não se
materializaram num documento escrito, em claro desrespeito pela formalidade
legal aplicável a este negócio jurídico, não se encontram verificados os
pressupostos para, nos termos dos n.ºs 1e 2 do art. 217.º do Código Civil, se
concluir pela existência legal de uma declaração tácita da Ré de natureza
autorizante, o que, por sua vez, determina a sua nulidade.
94.ª Quer
isto dizer que o alegado SIGMA não merece proteção jurídica, porquanto não
consubstancia um programa original, nem tão pouco uma obra derivada, já que
para se tratar de uma obra derivada, enquanto transformação criativa de uma
expressão de programa anterior, carecia de uma autorização válida e eficaz por
parte da Ré, o que não se verificou.
95.ª Do expendido
supra, impõe-se concluir que o contrato sob análise é nulo, ao abrigo do
disposto no artigo 280.º do Código Civil, não só por ser contrário à lei, como
também por atentar contra a boa fé, a ordem pública, os bons costumes, o
princípio da autonomia privada, e, por fim, por se configurar como legalmente
impossível.
96.ª Como muito
bem aduz o Tribunal recorrido no aresto ora impugnado, “a boa fé aqui aludida
reconduz-se à boa fé objectiva a qual remete para princípios e regras que, como
cláusula geral, devem ser observados. O entendimento das estipulações
contratuais “de maneira conforme à boa fé” aponta para uma equilibrada
ponderação dos interesses das partes na interpretação e integração do contrato,
considerando-se os interesses legítimos de ambas as partes sem sacrifício
injustificado de uma delas”.
97.ª Ora, as
disposições contratuais vertidas no contrato em apreço, entendidas conforme a
boa-fé, apontam para a contratação pela Ré à Autora dum software SIGMA novo
e original pelo qual a Ré teria de pagar o preço da Licença.
98.ª Sucede que,
como já se verteu supra, o programa contratado denominado de SIGMA não
é um programa original, nem tão pouco uma obra derivada, sendo, ao invés, uma
transformação não autorizada do programa SIGRes3e, em nada criativa
e inovadora.
99.ª Ao contrário
do entendimento vertido pelo Tribunal a quo, mostra-se
devidamente demonstrado pela factualidade dada como provada que a Autora, de
forma encapotada e dissimulada (i) utilizou o SIGRes3e,
o qual lhe fora disponibilizado pela AMB3E para desenvolvimento aplicacional do
software; (ii) atualizou o SIGRes3e introduzindo-lhe
outras funcionalidades e depois redenominou-o de SIGMAfazendo crer
à Ré que havia criado um programa novo que foi objeto do contrato de
licenciamento aqui em apreço, quando, na realidade, não passava de uma mera
modificação, melhoramento e atualização do mesmo.
100.ª Quer isto
dizer que o SIGMA e o SIGRes3e são, afinal,
apenas uma obra, um e apenas um programa de computador, não sendo
autonomizáveis, pelo que o titular dos direitos de autor destes dois softwares
mantém-se o mesmo, a Ré.
101.ª Assim
sendo, a admitir-se válido o objeto do contrato de licenciamento sob análise,
teríamos de admitir que a Autora estaria a licenciar à Ré um programa cuja
titularidade já era da Ré na sua maior parte.
102.ª Ora, repugna
à consciência jurídica geral que o exercício pela Ré de uma das faculdades
inerentes à qualidade que dispõe enquanto titular do programa de computador
SIGMA, mais precisamente, o direito à sua utilização, fique subordinada ao
recebimento de uma contrapartida por parte da Autora, sob a forma de preço de
Licença, quando a Autora não dispõe de quaisquer direitos de autor sobre o
SIGMA que lhe confiram uma qualquer proteção legal.
103.ª
Efetivamente, a generalidade das pessoas corretas, sãs e de boa fé tem a
perfeita noção de que há determinados comportamentos que se encontram à margem
do comércio jurídico por não poderem ser objeto de relações obrigacionais (cfr.
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2004).
104.ª Pelo
exposto, impõe-se concluir que o contrato de licenciamento objeto de análise
nos presentes autos é nulo ao abrigo do disposto no artigo 280.º do Código
Civil, por ser contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes,
excedendo flagrantemente os limites se impõem à própria autonomia privada e
liberdade contratual, violando de modo grosseiro as regras da boa fé e as mais
elementares regras éticas adotadas na vivência de uma sociedade honesta,
respeitadora e que faz pautar como matriz fundamental e nuclear da sua vivência
diária a boa fé e a tutela da dignidade humana.
105.ª Por
fim, cumpre ainda referir que, ao
contrário do entendimento firmado pelo Tribunal recorrido, o negócio jurídico sob apreço é também nulo por contrário à lei e por impossibilidade legal.
106.ª Em primeiro
lugar, cumpre referir que o negócio jurídico em apreço é contrário à lei pois
(i) viola as regras legais sobre autoria e titularidade dos programas de
computador, nomeadamente, o direito de autor da Ré sobre o software de
base SIGRes3e e (ii) consubstancia uma transformação não
autorizada do referido programa.
107.ª Em segundo
lugar, o negócio em causa é legalmente impossível porquanto a Autora não tem
qualquer direito a licenciar à Ré um programa de computador que pertence a esta
última.
108.ª Como já se
referiu supra, o SIGMA e o SIGRes3e são, afinal, apenas uma
obra, um e apenas um programa de computador, não sendo autonomizáveis, pelo que
o titular dos direitos de autor destes dois softwares mantém-se o mesmo, a Ré.
109.ª De facto, é
um princípio geral nos negócios que ninguém pode transferir para outro um
direito que o não tenha como seu. Este princípio traduz a impossibilidade de o
adquirente obter qualquer direito quando nenhum direito pertence ao
transmitente, nem obter mais direitos do que este detém.
110.ª Nesta
conformidade e porque desde o início do negócio a Autora não era titular de
direitos de autor sobre o SIGMA existia a impossibilidade
legal de a Autora lograr transmitir a faculdade inerente à utilização e
disponibilização do programa de software à Ré, gerando-se, assim e desde logo,
impossibilidade objetiva da prestação da Autora, o que, por sua vez, dada a
relação sinalagmática entre as prestações, gera a consequente nulidade do
contrato (nulidade originária).
111.ª Razão pela
qual se impõe concluir que o contrato de licenciamento objeto dos presentes
autos deve ser declarado nulo, nos termos e para os efeitos do artigo 280.º,
n.º 1 do Código Civil, por impossibilidade legal originária.
112.ª Nestes termos, deverá a Ré AMB3E ser totalmente absolvida do pedido e,
consequentemente, a Autora ser condenada no pedido reconvencional formulado na alínea f), reduzido ao valor das faturas liquidadas pela AMB3E
E conclui:
a) “Deverá ser o
Acórdão recorrido reformado, ou, caso assim não se entenda, revogado, quanto a
custas, determinando-se a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de
justiça, nos termos previstos no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas
Processuais.
b) Deverá ser
declarada a nulidade do douto Acórdão recorrido por omissão de pronúncia, nos
termos e com as consequências legais previstas nos artigos 615.º, n.º 1, alínea
d), primeira parte e 617.º, aplicáveis ex vi artigo
666.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil e;
c) Deverá ser
revogado o Acórdão recorrido, sendo substituído por outro que (i) declare a
nulidade do objeto e respetivo negócio jurídico, (ii) absolva a Ré, ora
Recorrente, do pedido; (iii) condene a Autora, ora Recorrida, no pedido
reconvencional formulado na alínea f), reduzido ao valor as faturas liquidadas
pela Recorrente por conta do licenciamento do SIGMA, que totalizam
€ 582.159,00; (iv) reconheça o direito da Ré Recorrente sobre o software”.
16. A Recorrida Sigma – Soluções
Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unipessoal, Lda. contra-alegou, pugnando
pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. Importa, antes
de mais, ter em consideração que estes autos já se prolongam há cerca de 10
anos, tendo já sido objecto de 5 decisões judiciais distintas (4 das quais
totalmente favoráveis à Autora)!
2.ª A Ré tem
utilizado todos os expedientes possíveis (invertendo a sua defesa e alterando
sucessivamente a sua linha argumentativa) no sentido de adiar o cumprimento das
suas obrigações e sobrecarregar a Autora com despesas excessivas, tentando
vencê-la pelo cansaço e pela esgotamento financeiro.
3.ª Assim, deverá
este Tribunal superior analisar a evolução do presente processo, apreciar a
posição que tem vindo a ser assumida pela Ré ao longo de todos estes anos e
colocar um ponto final neste litígio, obrigando a Ré a cumprir – em definitivo
– as obrigações que assumiu e a pagar o que deve à Autora.
4.ª Os argumentos
ora esgrimidos pela Ré, nas suas doutas alegações, alteram substancialmente a
posição que foi inicialmente assumida nos presentes autos e contradizem o que
foi declarado por si em sede de contestação/reconvenção.
5.ª Se
inicialmente a Ré assume ter contratado à Autora a «evolução do seu sistema
informático» (artigo 65.º da contestação), pretendendo que fossem executados
pela Autora «aperfeiçoamentos e melhoramentos» no programa SIGRes3e (artigo
67.º da contestação), agora pretende fazer crer que o que foi contratado à
Autora foi a criação de um programa de raiz, totalmente independente e distinto
do programa SIGRes3e.
6.ª A Ré sempre
pugnou por que lhe fosse reconhecida a propriedade ou a titularidade do
programa SIGMA, o que, naturalmente, pressupõe o entendimento de
que o mesmo tem originalidade suficiente para ser objecto de protecção legal,
isto é, para poder ser objecto de propriedade / direitos de autor.
7.ª Sucede que a
Ré, percebendo a evolução que o presente processo teve, a posição assumida pelo
Tribunal de 1.ª Instância sobre esta matéria, os esclarecimentos pretendidos
pelo Supremo Tribunal de Justiça e o malogro da sua linha argumentativa
inicial, muda de direcção, colocando enfoque num aspecto que entende lhe poderá
ser mais favorável: fazer crer que a Autora deveria ter criado um programa
informático a partir do zero, sem qualquer relação com o anterior que colocou à
sua disposição.
8.ª Em lado algum
resulta provado (ou indiciado sequer) que a Autora alguma vez se tivesse
obrigado a entregar à Ré um programa informático radicalmente novo, elaborado a
partir do zero, cem por cento original e protegido pelo Direito de Autor, sob
pena de nada ter a receber pelo conjunto dos serviços informáticos
comprovadamente prestados e facturados à Ré.
9.ª Ao contrário
do que alega a Ré, o Tribunal a quo pronunciou-se
sobre a nova argumentação tecida pela Ré nas suas conclusões CCCC e DDDD do
recurso de apelação interposto, tendo esclarecido, de forma fundamentada, que a
mesma não podia ser, nesta fase, tida em consideração pelo Tribunal de recurso,
o qual não tem legitimidade para apreciar questões novas.
10.ª Assim, não
existe qualquer omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo,
o qual, fundamentadamente, esclareceu as razões que o levaram a não apreciar
esta nova questão levantada pela Ré.
11.ª Ademais, é um
facto que a Autora e Ré acordaram no pagamento de um valor fixo pelos serviços
prestados no âmbito do desenvolvimento do programa SIGMA e no pagamento de um
valor por utilizador que variava em função dos módulos utilizados, pelo que tais
valores são efectivamente devidos pela Ré à Autora.
12.ª A presente
acção tem como causa pedir o não pagamento de
vários serviços informáticos prestados pela Autora à Ré (ponto 19.º dos factos
provados), os quais foram efectivamente prestados (ponto 25.º dos factos
provados).
13.ª Em
conformidade, o pedido consiste apenas na exigência do
pagamento da parte do respectivo preço que não foi confessadamente pago pela Ré
(pontos 4.º e 15.º dos factos dados como provados), acrescido dos respectivos
juros de mora.
14.ª O recurso não
é o lugar apropriado para se alterar a causa de pedir da reconvenção (que
passaria do erro na celebração de um contrato para a inexistência de protecção
jurídica do programa SIGMA) e o próprio pedido dessa reconvenção (que passaria
da anulação, por erro, do contrato celebrado para a inexistência jurídica do
direito objecto desse contrato.
15.ª Este
comportamento errático da Ré revela bem a fragilidade da sua posição e falta de
sustentação dos seus argumentos, devendo ser tido em consideração pelo
Tribunal ad quem na reapreciação da decisão
adoptada pelo Tribunal a quo, que se limitou a decidir
tendo em conta a posição assumida pela Ré na sua contestação/reconvenção e não
sobre os novos argumentos ora formulados.
16.ª Não se
encontram verificados os pressupostos que fundamentem o recurso excepcional de
revista ora interposto pela Ré.
17.ª A Ré não
invoca expressamente as concretas divergências jurisprudenciais e doutrinais
que diz existirem, relativamente ao conceito de programa original ou à
necessidade de autorização escrita para a transformação de um programa de
computador, divergências suficientemente profundas para serem capazes de
justificar a necessidade do recurso excecional que pretende interpor.
18.ª Assim,
concluímos que não estão verificados (ou, pelo menos, não foram alegados) os
pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso excecional de revista,
pelo que a pretensão da Ré deve ser indeferida liminarmente, tal como dispõe o
n.º 2 do art.º 672º do CPC.
19.ª O STJ é, como
sabemos, um Tribunal de revista, que tem competência para conhecer apenas
matéria de direito (artigos 6.º da LOSJ e 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 2 do CPC),
pelo que deverão ser desconsiderados todos os pontos em que a Ré questiona a
matéria de facto dada como provada e em que invoca, para sustentar a sua
posição, o que foi dito pelas testemunhas ou o que consta do relatório de
inspecção.
20.ª O presente
recurso assenta basicamente no argumento de que o programa desenvolvido e
licenciado pela Recorrida à Recorrente (o SIGMA) não consubstancia
um programa original, nem tão pouco uma obra derivada protegível pelo Direito
de Autor (cfr. nº 183, p. 47 das doutas alegações de recurso).
21.ª Como
explicita a doutrina, uma obra derivada é, por
definição, uma obra original (em relação àquela de que deriva,
naturalmente), na medida em que resulta da transformação (alteração substantiva
e substancial) de uma obra preexistente, resultando numa nova criação, que goza
de perfeita autonomia para efeitos de protecção pelo Direito de Autor.
22.ª A correcção
de erros, a adição de módulos e introdução de novas funcionalidades, etc. num
programa de computador é um exemplo típico da introdução de alterações substanciais em
obras desta natureza (prática e não artística).
23.ª Mesmo que se
entenda a obra derivada como uma modalidade da obra compósita (artº
20º CDADC), que incorpora, no todo ou em parte, uma obra preexistente, com
autorização, mas sem a colaboração do autor desta (no caso, a Ré disponibilizou
à Autora o programa anterior SIGRes3e, para que esta criasse um
novo programa – o SIGMA –, não disruptivo em relação àquele,
que veio substituir), a solução no nosso caso concreto seria, ainda
assim, exactamente a mesma.
24.ª Os programas
de computador, minimamente complexos, são sempre, hoje em dia, obras compósitas
ou derivadas, na medida em que não podem prescindir da utilização de numerosos
elementos (“ferramentas”,
“bibliotecas”, “rotinas”, bases de dados, linhas de código, etc.) que já
existem e que não faria sentido voltar a elaborar a partir do zero.
25.ª Qualificado
como obra derivada, o programa SIGMA teria de ser sempre considerado como uma obra original,
em virtude do disposto no artº 3º, nº 1 do CDADC.
Acresce que
26.ª O TJUE tem
reiteradamente afirmado que a originalidade de um programa de computador,
para efeitos de protecção pelo Direito de Autor, se manifesta sempre que o
mesmo, em todo ou em parte, possa ser imputado a um ou mais autores em
concreto. Ou seja, quando a actividade que levou à sua elaboração tenha origem
na pessoa do autor e não seja uma mera cópia, um lugar comum ou uma
trivialidade, não se exigindo o cumprimento de qualquer outro requisito de
mérito, qualidade ou esforço (vd. casos “Infopaq”, C-5/08, de 16.07.2009;
“Painer”, C-145/10, de 07/03/2013, “Football Dataco”, C-604/10, de 01/03/2012 e
Ac. “Nintendo”, C-355/12, de 23.01.2014).
27.ª A
transformação de um programa será ou não criativa (obra original) consoante a
individualidade que, no caso concreto, apresente relativamente ao programa
anterior, que lhe serviu de «base». Bastará uma «originalidade mínima» para se
dever entender que se está perante um programa merecedor de protecção jurídica.
28.ª Ora, um
programa que desenvolveu, corrigiu, modificou e que acrescentou novos módulos e
novas funcionalidades, como foi o caso do programa SIGMA em
relação ao SIGRes3e (30 dos factos provados / perícia), e que,
por via disso, permitiu resolver, de forma original e criativa, os inúmeros
problemas / insuficiências que o programa anterior, que veio substituir,
irremediavelmente apresentava (36 dos factos provados), acrescentando módulos
que vieram a emprestar um conteúdo qualitativo (“evolução”) muito superior ao
software anteriormente disponível (30 dos factos provados), sempre terá de considerar-se um programa substancialmente diferente daquele do qual partiu (o SIGRes3e),
reflectindo uma actividade criativa e original dos seus autores.
29.ª Só a
exasperada obsessão da Ré em não pagar a quantia que ainda deve à Autora pelos
serviços prestados ou de protelar o seu pagamento, poderá levar à defesa de
semelhante negação da realidade profusamente documentada nos presentes autos!
30.ª Por todas
estas razões, concluímos também que não se verifica – ao contrário do que alega
a Recorrente – nos termos do disposto no artigo 280.º do Código Civil, qualquer
impossibilidade legal – originária ou superveniente – do objecto do contrato aqui
em causa, não estando o mesmo ferido de qualquer vício que o invalide,
soçobrando, em absoluto, o argumento errático da Recorrente, que invoca agora a
nulidade do contrato «por impossibilidade legal do objeto uma vez que a Autora
nunca obteve autorização da Ré para alterar o programa desta redenominando-o
com vista à sua exploração, sendo assim nulo o objeto negocial e o respetivo
negócio jurídico»!
31.ª E, como
decidiu e bem, o Tribunal a quo, tal argumento
contraria em absoluto a posição vertida pela Autora na sua contestação (artigos
65 e 66 da contestação), já que esta admitiu ter disponibilizado à Autora o
programa SIgRes3e para que esta o desenvolvesse, aperfeiçoasse e melhorasse.
32.ª A sentença
recorrida fez uma correcta apreciação, factual e jurídica, das questões a
decidir, pelo que deve ser integralmente confirmada, improcedendo, em absoluto,
as alegações de recurso ora apresentadas pela Ré.
17. A Recorrida Sigma – Soluções
Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unip., Lda. veio requerer que se
procedesse ao reenvio das questões de direito europeu que fundamentaram a
admissibilidade do recurso de revista excecional para decisão prejudicial do
Tribunal de Justiça da União Europeia, se não for entendido que já esteja
esclarecida pela jurisprudência do TJUE o que deve entender-se por programa do
computador original.
18. A Recorrente veio responder.
19. Cumpre apreciar e decidir.
II. Delimitação
do objeto do recurso
Como é
jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º,
nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, decorre que o
objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
a) Saber
se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia;
b) Saber se o SIGMA é ou não um programa
de computador original;
c) Saber se o programa de computador SIGRes3e
foi transformado pela Autora à revelia da autorização
da Ré e se tal autorização estava sujeita à forma escrita;
d) Saber se o Acórdão recorrido deve
ser reformado quanto a custas no sentido de ser dispensado
o pagamento da taxa de justiça remanescente.
*
Já não poderá constituir objeto do recurso a alegada nulidade do contrato de
licenciamento em causa nos autos nos termos do artigo 280.º do Código Civil uma
vez que se trata de questão que não se mostra abrangida pela “excecionalidade”.
A Recorrente
interpôs recurso de revista excecional ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1,
alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.
Para tanto, elegeu
apenas duas questões fundamentais de direito em relação às quais sustentou
verificar-se a necessidade de intervenção do STJ por, apesar de existir dupla
conforme, tais questões serem de manifesta complexidade e de difícil resolução,
impondo-se, na respetiva subsunção jurídica, um detalhado exercício de exegese
e interpretação, a saber: (i) o que deve entender-se por programa original; e
(ii) se a autorização para transformação de um programa de computador concedida
pelo seu titular a terceiro está sujeita ao cumprimento de alguma formalidade
legal sob pena de nulidade.
Foi, portanto,
sobre estas questões que recaiu o juízo da Formação de Juízes a que alude o
n.º3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil no sentido de as mesmas
revestirem relevância jurídica bastante para ultrapassar a barreira da dupla
conforme, ficando, assim, justificada a intervenção, a título excecional, do
STJ.
Em consequência, o
objeto do recurso está limitado à apreciação dessas questões em relação às
quais se verifica um ou mais dos fundamentos previstos no n.º 1 do artigo 672.º
do Código de Processo Civil – e quando muito, às nulidades da decisão e à
eventual reforma quanto a custas (artigos 615.º, n.º 4, e 616.º, n.º 3, do
Código de Processo Civil) – não podendo alargar-se a outras em relação aos
quais esses fundamentos não se mostram preenchidos, porquanto só em relação às
primeiras se justifica, não obstante a dupla conformidade de decisões, a
intervenção do STJ.
Tal como o STJ
afirmou, no Acórdão de 11 de abril de 2019 (Revista n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1),
no caso de admissão excecional da revista, os poderes cognitivos da
conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso
relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação
preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos
específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do art. 672.º do
CPC.
Ora, no caso, as
questões que a Formação (a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do Código de
Processo Civil) considerou apresentarem relevo jurídico bastante para superar a
barreira da dupla conforme foram apenas as que a Recorrente indicou, isto é, as
de saber se o programa desenvolvido pela Autora é ou não suscetível de ser
protegido por via do direito de autor e se o contrato celebrado entre as partes
deve ser interpretado no sentido de implicar, necessariamente, a autorização
para a autora desenvolver, aperfeiçoar e melhorar o sistema informático que já
pertencia à recorrente.
Em consequência,
não estando a questão da invocada nulidade do contrato nos termos do artigo
280.º do Código Civil abrangida pela dita excecionalidade, a dupla conformidade
impede que dela se conheça (artigo 671.º, n.º 3, do Código Civil).
III
Fundamentação
1. É a seguinte
a factualidade dada como provada:
1.1. A Requerente emitiu à Requerida as
seguintes faturas que as recebeu:
- Fatura n.º 38/……, emitida a 30.09.2009, com vencimento
em 29.11.2009, no valor de € 39.954,00;
- Fatura n.º 42/……, emitida a 31.10.2009, com vencimento
em 29.12.2009, no valor de €41.108,40;
- Fatura n.º 46/……, emitida a 2.12.2009, com vencimento
em 30.01.2010, no valor de €41.607,60;
- Fatura n.º ……02, emitida em 8.01.2010, com vencimento
em 9.03.2010, no valor de € 41.442,00. (Alínea AA) dos Factos Assentes)
1.2. A Requerente emitiu e enviou à Ré as
faturas, que as recebeu:
- Fatura n.º ………07, de 01/02/2010, no valor de €
46.832,40;
- Fatura n.º ………14, de 04/03/2010, no valor de €
49.225,20;
- Fatura n.º ……...17, de 05/04/2010, no valor de €
50.419,20;
- Fatura n.º ……...21, de 03/05/2010, no valor de €
52.675,20;
- Fatura n.º ……24, de 01/06/2010, no valor de €
54.000,00 (BB)
1.3. A requerente emitiu e enviou à
requerida a nota de crédito n.º 2 de 30/09/09, no valor de 1 836,00€. (CC)
1.4. A Requerida não pagou as faturas
referidas em AA) e BB). (DD)
1.5. Com data de 22/08/2008, entre a
requerida e a requerente, então denominada CTCI – Consultoria e Tecnologia de
Comunicação Informações, Ld.ª, foi celebrado um contrato, do qual constam,
entre outras, as seguintes cláusulas:
“Cláusula 1.ª (Objeto)
1. Pelo presente contrato, adiante designado como
Contrato, a primeira Contratante adjudica à Segunda Contratante a prestação de
serviços na área de informática, designadamente serviços de desenvolvimento,
implementação e manutenção de software e hardware, helpdesk e formação, nos
termos definidos nos Anexos ao Contrato que dele fazem parte na data da
celebração ou venham a ser aditados, sendo as condições específicas de tais
serviços objeto de aditamento ao Contrato, sob a forma de Anexo.
2. Os termos e condições da prestação dos serviços
objeto do presente Contrato, bem como as obrigações, responsabilidades e
exclusões, são especificamente reguladas nos respectivos Anexos, sem prejuízo
da legislação vigente aplicável.
3. As Partes Contratantes reconhecem e delegam no
Departamento Financeiro da Primeira Contratante a coordenação, acompanhamento e
controlo da prestação de serviços da Segunda Contratante, efetuada ao abrigo do
presente Contrato.
Cláusula 2. (Preço)
1. O preço da prestação dos serviços objeto do presente
Contrato a pagar pela Primeira à Segunda Outorgante será o definido em sede do
respectivo Anexo que, especificamente, regular os termos da prestação de
serviços.
Cláusula 3.ª (Faturação e Condições de Pagamento)
1- A faturação do preço anual dos serviços prestados
objeto do presente Contrato será feita em duodécimos, no primeiro dia do mês
seguinte ao do mês da prestação dos serviços.
3. As faturas emitidas pela segunda Contratante serão
liquidadas pela Primeira Contratante no prazo máximo de 60 (sessenta dias) a
contar da respectiva emissão, por meio de transferência bancária para conta a
indicar pela Segunda Contratante, considerando que a receção das mesmas pela
Primeira Contratante não exceda 5 (cinco) dias úteis da respectiva data de
emissão, caso em que a data de vencimento passará a ser contada a partir da
efetiva receção.
5. Em caso de mora da Primeira Contratante na liquidação
das faturas, a Segunda Contratante poderá suspender a prestação dos serviços
objeto do presente Contrato, dependendo o seu reinício da efetiva cobrança dos
valores em dívida, acrescidos de juros de mora à taxa legal.
Cláusula 4.ª (Direitos de Autor e Marcas)
1.Os direitos de autor do software já utilizados por
qualquer das Partes Contratantes, bem como quaisquer marcas que já tenha
registadas a seu favor, são da sua exclusiva titularidade, obrigando-se a outra
Parte Contratante a respeitá-las, salvo se diferente decorrer nos termos da
legislação vigente aplicável.
3. Sem prejuízo do dever de confidencialidade, a
Primeira Contratante reconhece que a Segunda Contratante poderá adquirir
conhecimentos técnicos na área de informática durante a vigência do presente
Contrato, e que os poderá aplicar no decorrer da sua atividade na medida em que
não colida com os direitos da Primeira Contratante.
4. Os eventuais direitos de autor que decorram das obras
produzidas pela Segunda Contratante na execução do presente Contrato, para além
das metodologias e ferramentas que já se encontram na titularidade desta, são
propriedade exclusiva da Segunda Contratante, nos termos em que tal se
verifique legítimo ao abrigo da legislação vigente aplicável e salvo disposição
em contrário no Anexo correspondente ao serviço e/ou obra especificamente
contratada.
Cláusula 11.ª (Resolução do presente Contrato)
2. Sem prejuízo do disposto na Cláusula Décima, qualquer
das Partes Contratantes poderá resolver o contrato nos seguintes casos:
…
e) - Se o Conselho de Administração da Primeira
Contratante deliberar, nos termos estatutariamente definidos, na resolução do
presente contrato, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3. A resolução do presente Contrato nos termos do número
anterior não prejudicará os direitos adquiridos e as obrigações contraídas
pelas Partes Contratantes durante a vigência do mesmo e não impedirá a Parte
Contratante não faltosa de reclamar da Parte Contratante faltosa quaisquer
pagamentos em mora e indemnizações de qualquer espécie que lhe sejam devidas,
incluindo reparações de danos emergentes, lucros cessantes ou aplicações de
qualquer penalidade, multa ou sanção pecuniária, podendo a Parte não faltosa
reter quaisquer quantias já recebidas.
4. A resolução do presente Contrato nos termos previstos
na alínea e) do número 2 da presente Cláusula confere à Segunda Contratante o
direito de ser indemnizada num montante nunca inferior ao equivalente do valor
das prestações médias vincendas até ao final do período de vigência do presente
Contrato, inicial ou de renovação, no momento da resolução unilateral.
Cláusula 15.ª (Relações comerciais)
1. Atendendo à especificidade da atividade desenvolvida
e em respeito pelas regras da leal concorrência, as Partes Contratantes
reciprocamente acordam e reconhecem que a Segunda Contratante abster-se-á,
durante a vigência do presente Contrato, de prestar os serviços objeto do
Presente Contrato e outros similares que, pela sua natureza, constituam
potencial risco de lesar o dever de confidencialidade, a qualquer entidade
concorrente da Primeira Contratante.
2. Para os efeitos previstos no número anterior, as
Partes Contratantes consideram como entidade concorrente da Primeira
Contratante e entidade que detenha Licenciamento para a atividade de gestão de
REEE, atribuída pelo Governo Português, ou que assuma esse encargo em nome e
por conta da Licenciada.
3. As Partes Contratantes reciprocamente acordam e
reconhecem que a Primeira Contratante abster-se-á, durante a prestação de cada
serviço específico contratado, de contratar, simultaneamente, a qualquer
entidade concorrente da Segunda Contratante, a prestação de serviço específico
que pela sua natureza constitua potencial risco de comprometer a boa execução
do presente Contrato por parte da Segunda Contratante.
Anexo I
Licenciamento do Software «SIGMA»
Cláusula 1.ª (Objeto)
1.A Segunda Contratante, assumindo-se com plenos poderes
para o efeito, licencia o direito de utilização do SIGMA, cuja Ficha de
Especificações faz parte integrante do Anexo Adicional A, à Primeira
Contratante para a gestão da sua atividade, adiante designada por Licença, nos
termos e condições adiante acordados.
2.Sem prejuízo do n.º 2 da Cláusula 5.ª, a Segunda
Contratante compromete-se a garantir, durante a vigência do Contrato e Anexo
(s) e prestação dos respectivos serviços, sob qualquer circunstância a
legitimidade para conferir a Licença à Primeira Contratante nos exatos termos
ora contratados e livre de quaisquer ónus para com terceiros.
3. A Segunda Contratante prestará à Primeira Contratante
os seguintes serviços, conexos e diretamente relacionados com a Licença ora
cedida:
a) Organização da informação relativa à base de dados da
Primeira Contratante, bem como o processamento da informação que lhe seja
comunicada;
b) Administração da segurança interna do SIGMA;
c) Correção de todas as anomalias relacionadas com o
funcionamento do SIGMA, originadas por causas diretamente imputáveis ao SIGMA
ou ao seu normal funcionamento;
d) Disponibilização de novas versões ou atualizações das
funcionalidades atualmente existentes, sempre que existam e conquanto sejam
relevantes para a prestação dos serviços objeto do presente Contrato;
e) Esclarecimento de questões relacionadas com a
utilização ou resolução de erros ou deficiências do SIGMA, através de um
help-desk;
f) Serviço informativo relativo ao SIGMA, sobre
melhoramentos e atualizações;
g) Fornecimento de atualizações e melhoramentos do
SIGMA, quando estejam disponíveis;
3. A Segunda Contratante, durante o período de vigência
da Licença, poderá trocar ou modificar os serviços contratados no âmbito da
Licença, de forma a se adaptar aos avanços ou melhoramentos tecnológicos que se
verificarem.
4. As partes expressamente reconhecem que a Licença, ora
conferida, é extensível aos funcionários e demais colaboradores da Primeira
Contratante e por esta legitimados para o acesso à respectiva área restrita.
5. Para os efeitos do número anterior, a Segunda
Contratante acionará e atribuirá palavra-chave para o login dos utilizadores
identificados pela Primeira Contratante através da respectiva Ficha de Pedido
de Utilizador.
Cláusula 4.ª (Preço, faturação e condições de pagamento)
1. Nos termos das
Cláusulas Segunda e Terceira do Contrato, o peço da Licença ora concedida e dos
serviços contratados no seu âmbito é de EUR: 90.000, devidos em quatro tranches
de 22.500 Euros, a pagar mensalmente, nos meses de Setembro a Dezembro de 2008.
2. Adicionalmente,
será devido um valor mensal por utilizador comprovadamente registado na
aplicação, variável em função do tipo de utilização, nos termos indicados no
quadro abaixo a faturar, pela Segunda Contratante, nas condições previstas na
Cláusula Terceira do Contrato.
Utilizadores Custo
Mensal / Utilizador
Intranet
Financeira 85,00 €
Comercial 85,00 €
Gestão de Resíduos
85,00 €
Extranet
Aderentes 4,00 €
Centros de Receção
85,00 €
Operadores
Logísticos 85,00 €
Unidades
Tratamento e Valorização 85,00 €
3. No sentido do
número 2 da Cláusula 1.ª, em circunstância alguma serão considerados devidos
quaisquer valores a pagar pela Primeira Contratante a qualquer entidade que não
seja a Segunda Contratante.
Cláusula 5.ª
(Direitos de Autor e Marcas)
1. Sem prejuízo do
disposto na Cláusula Quarta do Contrato, as Partes Contratantes expressamente
reconhecem que:
a) O SIGMA é da
propriedade exclusiva da Segunda Contratante;
b) Os Servidores e
todos os seus componentes, documentação ou outros equipamentos que sejam
disponibilizados e identificados à Primeira Contratante como parte da Licença
são da propriedade exclusiva da Segunda Contratante;
c) Para efeitos da presente cláusula não são
considerados quaisquer relatórios e demais documentos retirados ou processados
pelo SIGMA que são da exclusiva propriedade e utilização da Primeira
Contratante.
2. A Segunda Contratante deverá comunicar à Primeira,
todas as alterações jurídicas a que seja sujeito o SIGMA, designadamente
alienação e registo.
Cláusula 8ª (Cópia de segurança)
1. Nos termos da Licença ora concedida, a Primeira
Contratante efetuará uma cópia de segurança do SIGMA, para fins de arquivo e
desde que tal cópia seja realizada sob a supervisão da Segunda Contratante e
contenha expressamente a referência aos direitos de propriedade e de
distribuição do SIGMA dados a conhecer à Primeira Contratante pelo presente
Anexo.
2. Não obstante os direitos de titularidade do SIGMA, a
Segunda Contratante compromete-se a depositar na ASSOFT – Associação Portuguesa
de Software, ou noutra entidade equiparada, uma cópia integral do Código-Fonte
do SIGMA, que deverá ser substituída pela Segunda Contratante por uma versão
atualizada de seis em seis meses.
3. Simultaneamente ao depósito previsto no número
anterior, a Segunda Contratante compromete-se a admitir o acesso da Primeira
Contratante ao Código-Fonte do SIGMA em caso de incumprimento definitivo do
Contrato por parte da Segunda Contratante ou caso a Segunda Contratante encerre
a sua atividade, devendo as demais condições ser definidas em contrato
tripartido a celebrar para o efeito entre as Partes Contratantes e a ASSOFT –
associação Portuguesa de Software, ou outra entidade equiparada, na qual seja
efetuado o referido depósito.” (A)
1.6. A Requerida é uma associação, sem fins
lucrativos, que se dedica à atividade de gestão de resíduos de equipamentos
elétricos e eletrónicos e recolha, tratamento, reciclagem e eliminação dos
resíduos de pilhas e acumuladores, em todo o território nacional, tendo para o
efeito implementado uma rede de centros para receção, separação seletiva e
armazenagem de resíduos, tendo ligação a cerca de 90 operadores de gestão de
resíduos. (B)
1.7. Neste contexto, o sistema informático
utilizado e disponibilizado pela Requerida, constitui um mecanismo
imprescindível para a prossecução da sua atividade e objetivos. (C)
1.8. Entre muitas outras valências, os
Produtores acedem ao sistema informático para efetuarem as suas declarações
trimestrais, sendo que as declarações trimestrais são confidenciais e estão à
guarda da Requerida, numa base de dados informáticos concebida e
especificamente desenvolvida para esse efeito. (D)
1.9. A Requerida, aquando da celebração do
contrato referido em A), com a Requerente, disponibilizou-lhe um sistema
informático, desenvolvido por uma terceira, por solicitação da Requerida, para
tratamento informático integrado da gestão de resíduos elétricos e eletrónicos,
de acordo com as necessidades específicas da atividade da Requerida. (E)
1.10. A “CTCI” foi registada em 22.01.2008,
tinha como sócios com quotas de igual valor, de 2.000,00 euros cada, BB, CC e
A... Consulting; em 15.07.2008, “A...” passou a deter a totalidade das quotas;
em 12.09.2008, passou a ser gerente EE; em 10.10.2008, a totalidade das quotas
passou para EE. (F)
1.11. CC é tio do ex-diretor Financeiro da
Ré, o DD, ambos sócios fundadores da A... Consulting, Lda. (G)
1.12. Em 12.09.2008, o Sr. CC renunciou à
gerência da empresa, assumindo tais funções a Sra. D. EE, com relação de grande
amizade com o DD, que, a partir de 10.10.2008, se tornou sócia única e gerente
única da sociedade, data em que a Autora se passou a designar como “SIGMA –
Soluções Integradas de Gestão do Meio Ambiente, Unipessoal, Lda”. (H)
1.13. Em 25.02.2009, a mulher do ex-diretor
Financeiro da Ré, FF, tornou-se Gerente da Autora. (I)
1.14. A Requerente, em 24.11.2008, requereu
junto do INPI registo da marca SIGMA, o que lhe foi concedido em 13.03.2009.
(J)
1.15. Desde Novembro de 2009 que a Requerida deixou de pagar à Requerente todas as faturas relativas ao licenciamento SIGMA. (N( �o:p>
1.16. A Requerida interpôs uma providência
cautelar que correu os seus termos no …. Juízo de Competência Cível do Tribunal
Judicial ……., sob o n.º 1201/10…….. e foi julgada, em 16.04.2010, improcedente.
(N)
1.17. Nesse procedimento pretendia obter
cópias dos códigos fonte do Software do programa “Sigma” existentes na sede da
requerida, a fim de compará-los com os que estavam depositados na Assoft e que
o tribunal ficasse depositário desses códigos códigos-fonte. (R)
1.18. A A... Consulting, Lda. (atualmente em
liquidação) foi matriculada em 27.07.2007, tinha como sócios fundadores, com
uma quota de €3.500,00 cada, BB, CC e DD. Em 20.12.2007, o sócio CC passou a
deter a totalidade das quotas. Em 19.09.2008, EE passou a deter a totalidade
das quotas. (O)
1.19. A Requerente começou a laborar no
sistema informático da Requerida ainda em 2007 e cabia-lhe elaborar software
aplicacional no sentido de serem disponibilizadas aplicações feitas por
encomenda à medida das necessidades da Requerida. (P)
1.20. Foi por sugestão do então Diretor
Financeiro, DD, que a ré contratou com a autora, então CTCI, o sistema
informático a que se reporta o contrato referido em A). (Resposta ao ponto 1º
da Base Instrutória).
1.21. Entre Setembro de 2007 e Fevereiro de
2008 foram prestados à Ré serviços de helpdesk e de formação, pela sociedade
A..., da qual o ex-diretor financeiro da ré, DD, foi sócio. (3º BI)
1.22. A Requerida não tinha quadros ou
dirigentes com conhecimento na área informática. (4º BI)
1.23. Uma das componentes do preço a pagar
mensalmente à Requerente é o licenciamento do software de base. (7º BI)
1.24. Outra componente do preço é o
licenciamento do software aplicacional desenvolvido para a Requerida no âmbito
do contrato referido em A). (8º BI)
1.25. Entre Janeiro de 2008 e Outubro de
2009, a autora cobrou à ré, por vários serviços a seguir discriminados, o valor
total de 2 110 767,46€ (IVA incluído):
a) - Licenciamento
de utilizadores Extranet e Intranet, de Agosto de 2008 a Outubro de 2009, o
valor de 553 386€;
b) - Projeto
Sigma, de Agosto de 2008 a Outubro de 2009, o valor de 385 173,60€;
c) - Formação na
aplicação Sigma para aderentes e UTV’s, Dezembro de 2008, o valor de 183
806,97€;
d) - Serviços de
helpdesk e gestão de infraestruturas, de Dezembro de 2007 a Dezembro de 2008, o
valor de 171 160€;
e)- Software –
desenvolvimento aplicacional incluindo reestruturação do SI, de Março a Julho
de 2008, o valor de 135 950€;
f) - Outsourcing
TI e Consultoria SI, de Janeiro a Outubro de 2009, o valor de 180 000€;
g)- Licença da
instalação do Sigma Digital, de Setembro a Novembro de 2008, o valor de 108
000€;
h) - Software
(standard + desenvolvimento aplicacional), Janeiro e Fevereiro de 2008, o valor
de 87 120€;
i) - Business
Continuity Environment, de Maio a Julho de 2008, faturação totalmente anulada;
j) -
Parametrização do sistema de informação, Maio a Julho de 2008, no valor de 57
920€;[1]
k) - Business
(Impact Analysis + Continuity Plan) de Janeiro a Abril de 2008, o valor de 34
730€;
l) - Sistema de
Monitorização de Segurança, de Abril a Julho de 2008, o valor de 36 250€;
m) - Formação
Sigma, Setembro de 2009, 23 930,18€;
n) - Serviços de
desenvolvimento aplicacional, Dezembro de 2007, no valor de 12 100€;
o) - Outros
serviços, no valor de 141 240,71€. (10º BI)
1.26. O acompanhamento das relações da ré e
a autora estava sob a alçada do ex-diretor Financeiro da ré. (11º BI)
1.27. Alguns dos pagamentos efetuados pela
ré à autora não indicavam a que faturas se reportavam. (12º BI)
1.28. Parte dos pagamentos efetuados pela ré
à autora através de transferência bancária foram por valores superiores a 10
000€ e, não obstante apresentarem autorização conjunta do diretor financeiro e
do diretor geral da ré não continham a assinatura de um membro do conselho de
administração da ré. (13º BI)
1.29. Entre 2007 e 2009, foram faturados à
Ré pela A... Consulting e pela autora serviços de SI/TI, de consultoria, de
projetos de desenvolvimento aplicacional e de formação um valor de, pelo menos,
€1.204.197,00. (14º BI)
1.30. O “SIGMA” é uma evolução do SIGRes3e,
com novas funcionalidades e oito novos módulos. (16.º e 17º BI)
1.31. (integrado no ponto anterior face à
resposta conjunta aos pontos 16.º e 17.º da BI – perante a repetição do
julgamento da matéria de facto)
1.32. Foi a ré que encomendou e forneceu
todas as especificações de negócio necessárias aos serviços de desenvolvimento
e manutenção aplicacional, os quais foram adjudicados e pagos, desde 2006 até à
data da assinatura do Contrato celebrado com a autora, a várias empresas: I...
e A...-Consulting. (19º BI)
1.33. Por licenciamento do SIGMA a ré pagou
à autora €582.358,00. (21º BI)
1.34. Os custos informáticos suportados pela
ré junto da autora quintuplicaram no ano de 2008 e quadruplicaram no ano de
2009, em relação a 2006/2007, anos em que esses serviços foram prestados por
terceiros. (22º BI)
1.35. A autora não entregou à ré o
código-fonte da aplicação SIGMA. (27º BI)
1.36. O sistema SIGRes3e tinha limitações
face às crescentes e cada vez mais complexas necessidades da ré. (30º BI)
1.37.O SIGMA tinha de ter as mesmas
funcionalidades do sistema anterior, o SIGRes3e, para que, quando implementado,
tivesse o menor impacto nos utilizadores. (32º BI)
1.38. O contrato referido em A) foi objeto
de negociações, durante vários meses, envolvendo um advogado da requerente e,
pelo menos, uma jurista da requerida. (33ª BI)
1.39. A indemnização prevista na Cláusula
11.ª, n.º 4, resultou de circunstâncias do acordo de exclusividade estabelecido
na Cláusula 15.ª. (34º BI)
1.40. A autora criou um novo manual para o
novo programa, um manual online, interativo e user friendly que foi
disponibilizado aos interessados em 2009. (35º BI)
1.41. O ex-Diretor Financeiro da Requerida,
por referência ao exercício de 2007 e de 2008, apôs a sua assinatura nas
Declarações de Responsabilidade conducentes à Certificação Legal de Contas da
Requerida, nas quais consta, além do mais:
“Não existem relações ou transações da AMB3E com
Entidades Especiais ou Relacionadas. Para este efeito, entendemos como partes
em relação de dependência as definidas como tal na Norma Internacional de
Contabilidade nº 24 e que são designadamente as seguintes entidades:
a)…….
b)……
c) ……
d) Pessoal chave da Direção ou Administração, isto é, as
pessoas que tendo autoridade e responsabilidade pelo planeamento, direção e
controlo das atividades da empresa que relata, incluindo administradores e o
pessoal superior de empresas e membros íntimos das famílias de tais indivíduos.
e)…e empresas que tenham um membro chave da gerência em
comum com a empresa que relata”.
(36º BI)
1.42. A ré integrou as faturas referidas em
AA) e BB) na contabilidade e deduziu o respectivo IVA. (Por confissão em
depoimento de parte).
1.43. O SIGRes3e foi desenhado de acordo com
as necessidades específicas da atividade da ré e mediante encomenda. (38º BI).
2. Da nulidade
do acórdão recorrido por omissão de pronúncia
Sustenta a
Recorrente, a este propósito, que, ao não ter conhecido da nulidade parcial do
negócio em causa nos autos e da sua redução, com fundamento no facto de se
tratar de questão nova, a Relação omitiu pronúncia sobre essa questão, que
havia sido suscitada nas conclusões da apelação e que é de conhecimento
oficioso, sendo, como tal, o acórdão nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1,
al. d), do Código de Processo Civil.
A Relação
pronunciou-se no sentido de não se verificar a arguida nulidade já que,
contrariamente ao alegado, se debruçou sobre a enunciada questão, acrescentando
que o facto de a Recorrente poder entender que o fez erradamente se poderá
traduzir num erro de julgamento, mas não na invocada omissão de pronúncia.
E, de facto,
afigura-se ser acertada esta conclusão.
É que, não
obstante se ter consignado, no Acórdão recorrido, que a Recorrente não aludiu,
na fase dos articulados, à questão concernente à existência de uma componente
fixa e de uma componente variável a pagar em função da utilização dos módulos
do programa de computador e que, por isso, estava em causa argumentação nova,
que não foi tida em conta na sentença e que foi acrescentada tardiamente, a
questão acabou por ser apreciada, tendo a Relação concluído, a esse propósito,
que inexistindo factos provados para fundamentar o pretendido, nomeadamente no
que respeita à circunstância de os valores de licenciamento respeitarem à
utilização dos módulos constantes do programa originário da titularidade da Ré,
as conclusões da Recorrente tinham de soçobrar.
Ou seja,
independentemente da referência feita quanto à falta de invocação no momento
próprio, o certo é que a questão acabou por ser apreciada, decorrendo a sua
improcedência da inexistência de factualidade provada que a permitisse
sustentar. Já a questão de saber se a conclusão a que se chegou, a esse
propósito, no acórdão recorrido foi ou não acertada – isto é, se existem (ou
não) factos provados no sentido pretendido pela Recorrente – poderia, quando
muito, traduzir-se, como bem afirmou a Relação, em erro de julgamento, mas não
em omissão de pronúncia.
É, pois, neste
sentido que o STJ tem decidido em casos em tudo similares, afirmando
repetidamente que a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão, não
se confunde com o erro de julgamento, não sendo, por isso, a invocação de
nulidades o meio processualmente adequado para veicular a discordância
relativamente à solução encontrada.
3. Da
falta de originalidade do programa de computador SIGMA
O Tribunal da
Relação de Lisboa concluiu, neste particular e em sentido coincidente com a 1.ª
instância, pela originalidade do programa SIGMA.
Ancorou-se, para
tanto, no facto de o aludido programa, apesar de ser uma evolução do anterior
programa (SIGRes3e), ter novas funcionalidades e oito novos módulos e de,
portanto, ter na sua expressão uma transformação criativa por parte da Autora,
bem como na circunstância de a Ré também não ter logrado demonstrar nenhum dos
factos que excluiriam a criatividade dessa expressão, quer se encare o programa
como uma “transformação” de um programa anterior, quer como um programa novo.
Já a Ré,
continuando inconformada com a conclusão conforme a que as instâncias chegaram,
sustenta que o SIGMA é uma réplica do SIGRes3e, uma vez que a Autora se limitou
a trabalhar sobre o programa de base da Ré, a acrescentar a este alguns módulos
em jeito de atualização e a redenominá-lo, sem que haja margem para
originalidade, criatividade ou novidade.
Invoca, em abono
da sua tese, a prova pericial (trazendo à colação as respostas constantes do
relatório pericial e os esclarecimentos prestados pelos peritos em sede de
audiência de julgamento), assim como a prova testemunhal, para procurar, dessa
forma, demonstrar, que o Tribunal fez tábua rasa da prova produzida nos autos e
que decidiu de forma errada ao ter concluído pelo carácter original e criativo
do programa de computador SIGMA.
Ou seja, o que a
Recorrente, na realidade, pretende impugnar, ainda que de forma encapotada e a
pretexto do conceito de originalidade, é a decisão da matéria de facto, com a
qual não se conforma. É, pois, isso que revelam as conclusões da revista, das
quais se extrai claramente o inconformismo e a discordância da Recorrente no
que concerne à forma como o Tribunal analisou e valorou a prova produzida e à
convicção que, com base nessa prova, formou para dar como provada e não provada
a matéria de facto que permanecia controvertida (Vejam-se as conclusões 31.ª a
46.ª nas quais a recorrente transcreve parte das respostas constantes do
relatório pericial e as respetivas conclusões, bem como partes dos
esclarecimentos dos peritos e de um depoimento testemunhal prestados em
audiência de julgamento, discorrendo sobre essa prova com vista a demonstrar o
desacerto da decisão da matéria de facto).
Sucede, porém, que
tal não lhe é permitido.
Com efeito, é
pacífico que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista, em
regra, apenas conhece de matéria de direito – aplicando definitivamente o
regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal
recorrido –, não lhe cabendo sindicar o erro na apreciação das provas e a
matéria de facto apurada pelas instâncias, a não ser que se verifique ofensa de
uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a
existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigos
682.º, n.ºs 1 e 2, e 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Tal como refere, a
este propósito, Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª
edição, p. 398.), a atividade do Supremo não se preocupa com as
possíveis alternativas sobre o julgamento dos factos relevantes, mas
exclusivamente com a determinação da solução jurídica adequada para os factos
apurados pelas instâncias, já que na função atribuída ao Supremo
prevalecem os interesses gerais de harmonização na aplicação do direito sobre a
averiguação dos factos relativos ao caso concreto e a concentração
dos seus esforços na determinação da norma aplicável e no controlo da sua
interpretação e aplicação pelas instâncias.
- No mesmo
sentido, entre outros, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em
Processo Civil, 8.ª edição, p. 270 -
Ou seja, ainda
que, face ao disposto no artigo 674º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o STJ
não fique totalmente paralisado no que concerne ao controlo da decisão da
matéria de facto, a verdade é que a sua intervenção se circunscreve a aspetos
em que se tenha verificado a violação de normas de direito probatório material
(por, nessa hipótese, estarem em causa verdadeiros erros de direito), já não
abrangendo, porém, questões inerentes à decisão da matéria de facto quando esta
foi precedida da formulação de um juízo assente na livre apreciação da prova
formulado pela 1.ª instância ou até pela Relação.
Ora, no caso sub
judice, não se estando perante qualquer caso de prova vinculada, mas antes
no domínio da prova sujeita à livre apreciação do julgador (artigos 389.º, e
396.º do Código Civil), não se verifica qualquer violação de direito probatório
material que seja suscetível de ser sindicada pelo STJ em sede de revista
(artigo 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Em consequência,
será (apenas) à luz da factualidade dada como provada – que está
definitivamente fixada – que a suscitada questão da originalidade do programa
de computador em causa nos autos terá de ser apreciada e não à luz da matéria
de facto que a Recorrente, em face da prova produzida, entende que devia ter
ficado provada (mas não ficou).
Vejamos, então, o
quadro legal aplicável ao caso.
Em matéria de
programas de computador, a Diretiva n.º 91/250/CEE, do Conselho, de 14-05,
movida pelo objetivo de harmonizar as legislações dos Estados-membros entre si,
determinou que estes deviam estabelecer uma proteção jurídica dos programas de
computador, mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras
literárias, na aceção da Convenção de Berna para a Protecção das Obras
Literárias e Artísticas (cf. artigo 1.º, n.º 1, da Diretiva), que foi aprovada,
para adesão, pelo Decreto n.º 73/78 de 26-07, compreendendo todas as produções
do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu modo ou
forma de expressão (artigo 1.º, e 2.º, n.º 1, da Convenção de Berna - De
09-09-1886, completada em Paris a 04-05-1896, revista em Berlim a 13-11-1908,
completada em Berna a 20-03-1914 e revista em Roma a 02-06-1928, em Bruxelas a
26-06-1948, em Estocolmo a 14-07-1967 e em Paris a 24-07-1971).
Nessa senda, prevê
a Diretiva que a proteção abrange a expressão, sob qualquer forma, de um
programa de computador, incluindo o material de conceção; mas exclui as ideias
e os princípios subjacentes a qualquer elemento do programa, designadamente os
que estão na base das respetivas interfaces (artigo 1.º, n.ºs
1 e 2, da Diretiva n.º 91/250/CEE - A Diretiva foi alterada e posteriormente
codificada através da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 23-04-2009, porém, atendendo à data do contrato em causa nos autos
(22-08-2008), considerar-se-á a versão inicial).
Conforme refere
José Alberto Vieira, A Protecção dos Programas de Computador pelo
Direito de Autor, Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídicas,
Outubro de 2002, Lex, Lisboa, 2005, p. 43, a propósito desta norma, a Diretiva,
partindo da tradicional dicotomia ideia/expressão, de raiz anglo-americana,
pretende excluir que a protecção de um programa de computador recaia
nas ideias e princípios a que o autor do programa haja recorrido para a
elaboração do mesmo. Por isso, afirma-se que a protecção abrange unicamente a
expressão.
Embora a diretiva
não defina o que seja a expressão de um programa de computador, dir-se-á,
acompanhando José Alberto Vieira (Ob. cit., p. 43), que há duas
indicações fundamentais no preceituado no diploma que nos permitem alcançar a
compreensão do que é a expressão de um programa de computador para efeitos da
directiva: (i) a referência constante do n.º 2 do artigo 1.º a que a
proteção dos programas de computador abrange a expressão “sob qualquer forma”;
(ii) o disposto no n.º 1 do artigo 1.º no sentido de que, para efeitos da
diretiva, a expressão programas de computador inclui o material de conceção.
Ora, sendo o
processo de elaboração de um programa de computador constituído por várias
etapas ou fases, desde a sua conceção e desenho, passando pela sua redação em
linguagem humana de programação (código fonte), até à sua conversão final em
código máquina ou objeto, em cada uma destas fases é produzido trabalho
intelectual expressivo. É a expressão deste trabalho que é objeto de proteção
(Cf. José Alberto Vieira, ob. cit., p. 43).
Não basta, no
entanto, determinar o que seja a expressão do programa de computador, já que a
diretiva estabelece como requisito básico de proteção da expressão dos
programas de computador a originalidade.
Dispõe o artigo
1.º, n.º 3, da diretiva que Um programa de computador será protegido se
for original, no sentido de que é o resultado da criação intelectual do autor,
sem que sejam considerados quaisquer outros critérios para determinar a sua
suscetibilidade de proteção, não havendo, designadamente, de recorrer a testes
dos seus méritos qualitativos ou estéticos (cf. n.º 3 da mesma norma e
considerando iniciais da diretiva em questão).
Dito de outro modo
e conforme ensina o referido autor (Na ob. cit., p. 65, que se vem seguindo de
perto), na decisão sobre se um programa de computador satisfaz ou não o
requisito básico de proteção, o juiz não atenderá ao facto do programa exteriorizar
uma estética de mau gosto ou até não ostentar qualidade estética alguma, se ele
é, na sua arquitectura ou redacção, um programa simples ou complexo, de pouca
extensão ou de grande dimensão, se envolveu perícia técnica ou alto grau de
conhecimentos tecnológicos do seu programador ou se estava ao alcance de
qualquer programador médio com os conhecimentos usuais de computação, se denota
um grande investimento e muito trabalho ou se envolveu recursos modestos,
antes lhe cabendo avaliar tão só e apenas a sua originalidade.
Para além disso,
importa sublinhar que, incidindo a proteção somente sobre a expressão dos
programas de computador, só no respeitante a esta terá lugar o juízo de
originalidade (e não quanto a todos os seus elementos componentes).
Nesta conformidade
e considerando que a expressão de uma programa de computador contempla apenas
elementos formais e não de conteúdo – já que estes, face ao princípio da
liberdade das ideias e dos princípios que constitui um dos pilares deste
sistema de proteção, caem fora do âmbito de proteção da diretiva – será apenas
sobre a forma do programa de computador que incidirá o juízo de originalidade,
seja ela a forma externa ou a interna, a estutura do programa, isto é, o modo
como o programador seleciona e organiza no programa os módulos e as subrotinas.
Dito de outro
modo, a proteção de um programa de computador incidirá exclusivamente na
expressão criativa que o programador utilizou na realização do programa,
ficando de fora da proteção pelo direito de autor as ideias, métodos de
operação, processos e algoritmos.
- Neste sentido:
José Alberto Vieira, ob. cit., p. 72, 73 e 269 -
A Diretiva n.º
91/250/CEE foi transposta para a ordem jurídica interna através do DL n.º
252/94, de 20-10 (Alterado pela Retif. n.º 2-A/95, de 31-01 e pelo DL n.º
334/97, de 27-11).
Com efeito, ao
invés de integrar a proteção conferida pela diretiva no Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, procedendo às alterações que se mostrassem
necessárias, o legislador nacional optou por criar um diploma próprio onde
condensou todas as normas específicas de proteção dos programas de computador.
Para tal opção relevou o facto de ter entendido, tal como resulta do preâmbulo
do mencionado diploma legal, que os conceitos nucleares de proteção dos
programas de computador transportam novas realidades que não são facilmente
subsumíveis às existentes no direito de autor, ainda que a equiparação a obras
literárias possa permitir, pontualmente, uma aproximação.
Entretanto, foi
aprovado, em 1994, o acordo TRIPS/ADPIC no âmbito da Organização Mundial do
Comércio e, em 1998, o Tratado da OMPI sobre Direito de Autor, consagrando-se
tanto num, como no outro desses diplomas internacionais – que, por força do
artigo 8.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, integram o
sistema de fontes da nossa ordem jurídica –, a proteção dos programas de
computador como obras literárias no sentido da Convenção de Berna (cf. artigo
10.º, n.º 1, do citado acordo, e artigo 4.º do Tratado).
Dispõe o artigo
1.º, n.º 2, do DL n.º 252/94, de 20-10 que Aos programas de computador
que tiverem carácter criativo é atribuída protecção análoga à conferida às
obras literárias, equiparando-se àqueles o seu material de concepção
preliminar (n.º 3).
Acrescenta, por
sua vez, o artigo 2.º, n.º 1, do DL n.º 252/94, de 20-10, em consonância com o
estipulado na directiva, que A protecção jurídica atribuída ao programa
de computador incide sobre a sua expressão, sob qualquer forma, sem que
esta tutela prejudique a liberdade das ideias e dos princípios que estão na
base de qualquer elemento do programa ou da sua interoperabilidade, como a
lógica, os algoritmos ou a linguagem de programação (n.º 2).
O objeto de
proteção é, nesta sede, similar à proteção concedida pelo Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos às obras do domínio literário, científico e
artístico já que também aí se prevê que serão protegidas as obras que consistem
na exteriorização de uma criação intelectual, isto é, as que resultem de um
esforço intelectual desenvolvido no campo das letras, das artes ou das
ciências, e sejam a expressão, por qualquer modo obtida, da personalidade do
seu autor.
- Cf. Luiz
Francisco Rebelo, Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, 3.ª edição
revista e atualizada, Âncora Editora, Lisboa, 2002, p. 30 -
Todas as
expressões de programas de computador, material de conceção preliminar e código
fonte, têm uma forma externa, porém, não esgotando esta todo o domínio formal
da expressão, também a forma interna faz parte dessa expressão (artigo 2.º, n.º
1, do DL n.º 252/94, de 20-10)
- cf. José Alberto
Vieira, ob. cit. P.355 e 356
Ora, conforme
acima se aflorou, a forma interna mais não é do que a estrutura do programa de
computador.
Na verdade, um
programa de computador é composto por vários subprogramas – que se designam por
rotinas, procedimentos, funções ou subrotinas, consoante as diversas linguagens
de programação – ou, mais genericamente, por módulos.
- Um módulo
é um subprograma de pouca extensão, composto por algoritmos e estruturas de
informação, que executa de modo independente uma função determinada (cf. José
Alberto Vieira, ob. cit., p. 359) -
De forma a facilitar a conceção e a construção do
programa de computador, bem como a sua posterior manutenção, o programador, uma
vez definida a função geral do programa, pode abordar a sua realização partindo
o programa em partes autónomas, que executarão tarefas e subtarefas
determinadas num processo de decomposição progressiva que termina quando é
possível que uma parte perfeitamente distinta e independente do programa
desempenhe uma única função. Essa parte do programa constitui um módulo. É depois da interação e funcionamento
conjugado de cada um dos módulos que o programa cumprirá a função geral para o
qual foi desenhado.
O modo como os
módulos são combinados, selecionados e estão dispostos no programa, isto é, a
forma como nele são organizados, constitui a sua estrutura: a expressão do
programa está, assim, no modo como o programador seleciona os módulos –
subprogramas, rotinas, subrotinas – e os organiza.
A estrutura do
programa (forma interna), juntamente com a forma externa, forma o conjunto de
obra protegida pelo direito de autor.
Por outro lado, ao
longo do ciclo do desenvolvimento do programa, vão sendo produzidos vários
trabalhos intelectuais, desde a análise de sistemas, passando pela
especificação e pelos múltiplos diagramas, até ao código fonte, apresentando
cada um desses trabalhos expressão própria, que é autónoma em relação às
demais, ainda que resulte da transformação de uma expressão anterior.
- Neste sentido:
José Alberto Vieira, ob. cit., p. 384 e 385 -
Mesmo nos casos em
que ocorre essa transformação de uma expressão anterior, tal não basta para que
se possa falar em obra derivada, uma vez que, para tanto, será necessário que
se mostrem preenchidos dois requisitos cumulativos: (i) que haja transformação
de uma expressão anterior; e (ii) que essa transformação seja realizada
criativamente por alguém.
Todavia, em regra,
as transformações ocorrem em relação aos elementos não expressivos do programa
– algoritmos, métodos de operação, sistemas, etc. – sem que, por isso, a
expressão anterior seja utilizada pelo programador. Ora, a apropriação de
elementos não expressivos constantes de outros trabalhos anteriores sem uma
utilização efetiva da expressão na transformação não origina uma obra derivada.
- cf. José Alberto
Vieira, ob. cit., pp. 385 e 386 -
No que concerne ao
carácter criativo a que alude o DL n.º 252/94, de 20-10 ou à originalidade a
que alude a Diretiva, o que importa é que o programa, ou, mais rigorosamente, a
sua expressão (no sentido que acima se dilucidou) seja o resultado da criação intelectual
do autor ou, dito de outro modo, que seja o resultado de uma atividade do
engenho humano, que revele o trabalho do programador.
Considerando que,
face ao princípio da interpretação conforme, o intérprete e aplicador do
direito nacional, está vinculado a atribuir às disposições constantes do
direito interno um sentido conforme e compatível com o Direito da União,
importa ter em consideração que o Tribunal de Justiça da União Europeia já se
pronunciou sobre a interpretação do artigo 1.º da Diretiva 91/250/CEE, sendo
que é à luz desta que as normas do DL n.º 252/94, de 20-10 devem ser
interpretadas.
Afirmou o TJUE, no
Acórdão da Terceira Secção, de 22-12-2010 (processo C‑393/09) que, não
definindo a Diretiva 91/250/CEE o conceito de «expressão, sob qualquer forma,
de um programa de computador», tal conceito deve ser definido atendendo
aos termos e ao contexto das disposições do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva
91/250 em que se insere, bem como à luz tanto dos objectivos de toda a
directiva como do direito internacional (v., por analogia, acórdão de 16 de
Julho de 2009, Infopaq International, C-5/08, Colect., p. I-6569, n.º 32).
31 De acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, da
Directiva 91/250, os programas de computador beneficiam de protecção jurídica,
mediante a concessão de direitos de autor, enquanto obras literárias, na
acepção da Convenção de Berna. O n.º 2 deste artigo alarga essa protecção à
expressão, sob qualquer forma, de um programa de computador.
32 A primeira frase do sétimo considerando da Directiva
91/250 indica que, para efeitos desta directiva, a expressão «programa de
computador» inclui qualquer tipo de programa, mesmo os que estão incorporados
no equipamento.
33 A este respeito, há que mencionar o artigo 10.º, n.º
1, do acordo ADPIC, que prevê que os programas de computador, quer sejam
expressos em código fonte ou em código objecto, serão protegidos enquanto obras
literárias ao abrigo da Convenção de Berna.
34 Daqui decorre que o código fonte e o código
objecto de um programa de computador são formas de expressão deste, que
merecem, por isso, beneficiar da protecção de direitos de autor conferida aos
programas de computador, ao abrigo do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva
91/250
35 Por conseguinte, o objecto da protecção
conferida por esta directiva inclui o programa de computador em todas as formas
de expressão deste, que permitem reproduzi-lo em diferentes
linguagens informáticas, tais como o código fonte e o código objecto.
36 Importa também salientar a segunda frase do sétimo
considerando da Directiva 91/250, nos termos da qual a expressão «programa de
computador» inclui igualmente o trabalho de concepção preparatório conducente à
elaboração de um programa de computador, desde que esse trabalho preparatório
seja de molde a resultar num programa de computador numa fase posterior.
37 Assim, o objecto da protecção da Directiva 91/250
abrange as formas de expressão de um programa de computador e o trabalho de
concepção preparatório susceptível de conduzir, respectivamente, à reprodução
ou à elaboração posterior de tal programa (negrito e sublinhados nossos).
- Cf. Acórdão do
TJUE (Terceira Secção), de 22-12-2010, processo C‑393/09 -
Este entendimento
foi, posteriormente, reiterado pelo TJUE, no Acórdão da Grande Secção, de
02-05-2012 (processo C‑406/10), aí se afirmando que o código fonte e o
código objeto de um programa de computador são formas de expressão deste, que
merecem, por isso, a proteção de direitos de autor conferida aos programas de
computador, ao abrigo do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 91/250/CEE.
Em contrapartida,
o TJUE clarificou que existem outros elementos de um programa de computador que
já não são objeto de proteção por não constituírem uma forma de expressão desse
programa na aceção da diretiva, como sucede com a interface gráfica (que constitui
simplesmente um elemento através do qual os utilizadores exploram as
funcionalidades do programa), com a sua funcionalidade, com a linguagem de
programação e com o formato de ficheiro de dados utilizados.
- Cf.
Acórdãos do TJUE (Terceira Secção), de 22-12-2010, processo C‑393/09 e do
TJUE (Grande Secção), de 02-05-2012, processo C‑406/10 -
Tal como observa o
TJUE, citando as conclusões do advogado-geral, admitir que a funcionalidade
de um programa de computador possa ser protegida pelo direito de autor equivale
a oferecer a possibilidade de monopolizar as ideias, em detrimento do progresso
técnico e do desenvolvimento industrial.
Por outro lado, o ponto 3.7 da exposição de motivos da
Proposta de Diretiva 91/250 [COM (88) 816] refere que a proteção dos
programas de computador pelo direito de autor tem como principal vantagem o
facto de abranger unicamente a expressão individualizada de uma obra, possibilitando
uma flexibilidade suficiente que permite a outros autores criarem programas
similares ou mesmo idênticos, desde que não se trate de cópias.
42 Quanto à linguagem de programação e ao formato de
ficheiro de dados usados no âmbito de um programa de computador para
interpretar e executar programas de aplicações escritos por utilizadores e para
ler e escrever dados num formato de ficheiros de dados específico, trata-se dos
elementos deste programa por intermédio dos quais os utilizadores exploram
certas funções do referido programa.
Nesta
conformidade, concluiu o TJUE que artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva 91/250 deve
ser interpretado no sentido de que nem a funcionalidade de um programa de
computador nem a linguagem de programação e o formato de ficheiros de dados
usados no âmbito de um programa de computador para explorar algumas das suas
funções constituem uma forma de expressão desse programa e não estão, nessa
medida, protegidos pelo direito de autor sobre os programas de computador na
aceção desta diretiva, sem prejuízo de uma determinada linguagem de programação
e de um específico formato de ficheiro de dados poderem beneficiar, enquanto
obras, da proteção do direito de autor, por força da Diretiva 2001/29, se forem
uma criação intelectual própria do seu autor.
- Cf.
Acórdão do TJUE (Grande Secção), de 02-05-2012, processo C‑406/10 e
Acórdão do TJUE (Terceira Secção), de 22-12-2010, processo C‑393/09 para
o qual o primeiro remete -
Dito de outro modo
e conforme esclarece o Advogado-geral nas conclusões de 29-11-2011,
apresentadas no processo C-406/10 (no âmbito do qual foi proferido o Acórdão
supra citado), ainda que a funcionalidade de um programa não seja protegida em
si mesma pelo direito de autor – por tal equivaler a monopolizar as ideias em
detrimento do progresso técnico e do desenvolvimento industrial – já poderá ser
protegida a expressão dessa funcionalidade, assim como os demais elementos que
integrem o programa que constituam expressão da criação intelectual do autor.
Vejamos, então, o
caso dos autos à luz das considerações expendidas.
Conforme se afirma
no Acórdão recorrido, o direito que a Autora pretende fazer valer na ação
funda-se num contrato de prestação de serviços na área de informática celebrado
entre as partes e no incumprimento deste por parte da Ré por esta ter deixado
de pagar as faturas referentes aos serviços de licenciamento prestados.
Ou seja, tal como
bem refere o Tribunal da Relação no Acórdão posto em crise, a Autora não se
apresentou em juízo para fazer valer contra a Ré um direito de autor, mas antes
um direito derivado do contrato celebrado, in casu, o direito ao
recebimento de quantias que a Ré se obrigou a entregar-lhe como contrapartida
do licenciamento de um programa informático.
Foi, pois, a Ré,
aqui Recorrente, que veio invocar, a título de defesa por exceção e de
reconvenção – com vista, além do mais, a impedir o direito da Autora ao
recebimento do preço e a ter acesso ao código fonte do programa que lhe foi
licenciado –, que esse licenciamento incidia, afinal, sobre um programa que lhe
pertencia e não à Autora, uma vez que esta se tinha limitado a aperfeiçoar um
programa que já havia sido feito por uma outra sociedade e que a Recorrente lhe
disponibilizou, bem como que o contrato está ferido de invalidade,
designadamente erro, por não se ter apercebido de que a Autora ficaria titular
do software.
Assim sendo,
competia à Autora provar que cumpriu as obrigações decorrentes do contrato que
sobre si recaíam (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), ao passo que cabia à
Ré demonstrar, em face da defesa por exceção que invocou e do pedido
reconvencional deduzido, que o programa de computador desenvolvido por aquela
(SIGMA) mais não era do que uma mera cópia ou reprodução de um anterior
programa (SIGRes3e), desenvolvido para a Ré, por um terceiro, não sendo,
portanto, um programa novo que pudesse, ao abrigo do contrato, ser licenciado e
objeto de cobrança pela prestação desse serviço, tanto mais que o contrato é
inválido (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
A verdade, porém,
é que a recorrente não logrou provar essa sua versão dos factos, designadamente
que o programa SIGMA desenvolvido pela Autora seja uma mera cópia ou reprodução
do anterior, que tenha o software de base do SIGRes3e, que mais não seja do que
um aperfeiçoamento do anterior programa, que as melhorias registadas no
programa se tenham devido apenas à aquisição de dois novos servidores, sem que
tenham sido feitas alterações ao software e que, em geral, não tenha havido
espaço para a criação de um programa novo e muito menos que o contrato
celebrado esteja ferido dos vícios que a Recorrente lhe apontou – tendo, ao
invés, ficado provada factualidade bem diversa.
Provou-se, com
relevância, para a apreciação desta questão que as partes celebraram entre si
um acordo, através de documento escrito datado de 22-08-2008, através do qual a
Autora se obrigou a prestar à Ré, mediante contrapartida pecuniária que esta
lhe entregaria, com os valores, a periodicidade e o vencimento aí definidos,
serviços de na área de informática, designadamente: (i) serviços de
desenvolvimento e implementação de software; (ii) serviços de manutenção de
software e hardware; (iii) serviços de helpdesk; e (iv) serviços de formação,
tudo nos termos definidos nos Anexos ao Contrato que dele fazem parte (cf.
facto provado sob o ponto 5.).
Mais ficou provado
ter ficado estipulado nesse acordo – que foi objeto de negociações, durante
vários meses, envolvendo advogado da Autora e uma jurista da Ré – que os
eventuais direitos de autor que decorressem das obras produzidas pela Autora na
execução desse contrato, para além das metodologias e ferramentas que já se
encontravam na sua titularidade, eram propriedade exclusiva da Autora, nos
termos em que tal se verificasse legítimo ao abrigo da legislação vigente
aplicável e salvo disposição em contrário no Anexo correspondente ao serviço
e/ou obra especificamente contratada (cf. n.º 3 da cláusula 4.ª do contrato
dado como provado sob o ponto 5. e facto provado sob o ponto 38.).
Ficou igualmente
demonstrado que, no âmbito desse acordo, a Autora licenciaria à Ré, aqui
recorrente, o direito de utilização do programa SIGMA para gestão da atividade
desta última, nos termos e condições aí ajustadas, e que lhe prestaria os
serviços conexos e diretamente relacionados com essa licença aí descritos,
tendo as partes reconhecido expressamente que o SIGMA era da propriedade
exclusiva da Autora, bem como todos os seus componentes, documentação ou outros
equipamentos que fossem disponibilizados à Ré como parte dessa licença (tudo
nos termos do Anexo I ao referido contrato dado como provado sob o ponto 5.).
Com efeito, sendo
a Recorrente uma associação, sem fins lucrativos, que se dedica à atividade de
gestão de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos e recolha,
tratamento, reciclagem e eliminação dos resíduos de pilhas e acumuladores, em
todo o território nacional, implementou, para esse efeito, uma rede de centros
para receção, separação seletiva e armazenagem de resíduos, tendo ligação a
cerca de 90 operadores de gestão de resíduos.
Nesse contexto, o
sistema por si utilizado e disponibilizado constitui um mecanismo
imprescindível para a prossecução da sua atividade e objetivos, dado que, entre
muitas outras valências, os produtores acedem ao sistema informático para
efetuarem as suas declarações trimestrais, que são confidenciais e estão à
guarda da Recorrente numa base de dados informáticos concebida e
especificamente desenvolvida para esse efeito (tudo conforme consta do acervo
factual provado sob os pontos 6., 7. e 8.).
A relação
contratual estabelecida entre as partes surge porque o anterior programa
informático, denominado SIGRes3e – que havia sido desenvolvido por uma
terceira, por solicitação da Recorrente, para tratamento informático integrado
da gestão de resíduos elétricos e eletrónicos, de acordo com as necessidades
específicas da sua atividade e mediante encomenda – tinha limitações face às
crescentes e cada vez mais complexas necessidades da Recorrente (cf. factos
provados sob os pontos 9., 36. e 43).
Na verdade, a
Autora começou a laborar no sistema informático da Ré, ora Recorrente, ainda em
2007, cabendo-lhe elaborar software aplicacional no sentido de
serem disponibilizadas aplicações feitas por encomenda à medida das
necessidades da recorrente (cf. facto provado sob o ponto 19.)
Em consequência,
como o programa SIGMA, a desenvolver pela Autora, tinha de ter as mesmas
funcionalidades do sistema anterior, para que, quando implementado, tivesse o
menor impacto nos utilizadores, a Ré, aquando da celebração do contrato,
disponibilizou-lhe esse sistema informático denominado SIgRes3e (cf.
factualidade provada sob os pontos 9. e 37.).
Tal como ficou
provado, o programa SIGMA, desenhado pela Autora e licenciado à Recorrente, nos
termos ajustados entre as partes, é, assim, uma evolução do SIgRes3e, com novas
funcionalidades e oito novos módulos, sendo que a Autora também criou um novo manual
para o SIGMA, online, interativo e user friendly que
foi disponibilizado aos interessados (cf. factos provados sob os pontos 30. e
40.).
Dispõe o artigo
11.º, n.º 1 do DL n.º 252/94, de 20-10 que Os negócios relativos a
direitos sobre programas de computador são disciplinados pelas regras gerais
dos contratos e pelas disposições dos contratos típicos em que se integrem ou
com que ofereçam maior analogia.
Vigora, assim,
nesta sede, conforme decorre da epígrafe do mencionado preceito, a autonomia
privada, sendo as partes livres de conformar o conteúdo do contrato da forma
que entenderem conveniente, já que a lei remete a sua disciplina para as regras
gerais dos contratos (artigo 405.º do Código Civil).
Preceitua, por sua
vez, o artigo 3.º, n.º 3, do citado diploma legal – na senda, aliás, do que se
prevê no artigo 2.º, n.º 3, da Diretiva 91/250/CEE – que Quando um
programa de computador for criado (…) por encomenda pertencem ao
destinatário do programa os direitos a ele relativos, salvo estipulação
em contrário ou se outra coisa resultar das finalidades do
contrato (sublinhado nosso).
Pois bem, no caso
dos autos, resulta do acervo factual provado que o contrato celebrado entre as
partes tinha, além do mais, por objeto, na vertente do serviço de
desenvolvimento de software, a prestar pela Autora, uma obra por
encomenda, que consistia no desenvolvimento de um programa informático criado
para a satisfação das necessidades específicas da atividade da Recorrente, que
a Autora depois lhe licenciaria, tendo as partes, desde logo, convencionado
expressamente, que esse programa era da titularidade da Autora.
Conforme refere, a
este propósito, Alexandre Libório Dias Pereira (Das Licenças de Software e
de Bases de Dados, p. 17, disponível em
http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/1265/1/01_ALEXANDRE-PEREIRA.pdf.),
a licença de software feito à medida obtém-se no quadro de um contrato
de encomenda de obra intelectual, que tanto pode traduzir-se na
adaptação de um programa já existente como na criação de um programa novo.
Trata-se de um contrato em que um utilizador contrata uma empresa de software para
escrever um programa com determinadas características técnicas e qualidades
funcionais, em atenção às suas específicas necessidades concretas, acordando os
termos da sua utilização.
Neste tipo de
contrato, a lei atribui os direitos de autor à entidade que encomenda a
obra. Ressalva, todavia, que outra coisa pode resultar do contrato. E na
prática sucede com frequência que a entidade que desenvolve o software retém os
direitos de autor e concede uma licença de utilização à outra parte. Estas
situações configuram uma coligação de contratos, que estão unidos por um nexo
de dependência funcional, no sentido designadamente de que a desistência da
encomenda da obra é causa de cancelamento da licença.
(Mesmo
autor, ob. cit., p. 18)
E foi precisamente
isso que sucedeu no caso dos autos.
Com efeito, a
Autora desenvolveu esse programa, denominado SIGMA, por encomenda da Recorrente
e em função das específicas necessidades da sua atividade, tendo as partes
acordado, desde logo, que o mesmo era propriedade da Autora, bem como as
condições e os termos em que esta o licenciaria à Recorrente.
Tal programa
(SIGMA) é uma evolução do anterior (SIgRes3e) – porque tinha de ter as mesmas
funcionalidades deste, para que, quando implementado, tivesse o menor impacto
nos utilizadores –, com novas funcionalidades e oito novos módulos.
Ora, devendo as
disposições de direito interno, como sucede com os artigos 1.º e 2.º do DL n.º
252/94, de 20 de outubro, ser interpretadas à luz da Diretiva 91/250/CEE e da
interpretação que o TJUE vem fazendo das suas normas, dir-se-á que as
funcionalidades do programa de computador não são objeto de proteção por via do
direito de autor consagrado na dita Diretiva, o que significa que não servem,
por si só, nem para concluir pela existência de criação intelectual por parte
da Autora, nem para concluir pela violação do direito de autor por parte desta,
como pretendia a Recorrente demonstrar.
Todavia, o mesmo
já não sucede no que concerne aos módulos.
É que, incidindo a
proteção atribuída ao programa sobre a sua expressão, sob qualquer forma
(artigo 2.º, n.º 1, do DL n.º 252/94, de 20-10), considerando que a forma
externa do programa, tal como se referiu, não esgota o domínio formal da sua
expressão, desta faz igualmente parte a forma interna, que constitui a
estrutura do programa de computador.
Conforme sublinha
José Alberto Vieira, a estrutura do programa forma, juntamente com a forma
externa, o conjunto de obra protegida pelo direito de autor, sendo que é esta a
melhor interpretação do artigo 2.º do DL n.º 252/94, de 20-10 à luz da Diretiva
91/250/CEE.
(Cf. ob. cit., p.
355 e 356)
Nesta
conformidade, sendo a estrutura do programa de computador constituída por
módulos, isto é, pelas partes autónomas em que o programador, no seu trabalho
de conceção e construção, divide o programa, num processo de decomposição
progressiva, com vista a que essas partes desempenhem determinadas tarefas e
subtarefas, o desenvolvimento desses módulos, constituindo expressão do
programa, revela a “escrita” do seu autor.
Ora, incidindo o
juízo de originalidade sobre a dita expressão e estando provado que o programa
(SIGMA), desenvolvido pela Autora, tem oito novos módulos, forçoso é concluir
que tal programa é original, no sentido de ser o resultado da criação
intelectual do seu autor.
Em consequência,
tendo as partes estipulado, no contrato celebrado, que os direitos de autor
relativos ao dito programa pertencem à Autora – convenção que, como se viu, é
válida (artigo 3.º, n.º 3, do DL n.º 252/94, de 20-10) – tanto mais que só
assim fazia sentido o seu posterior licenciamento à Recorrente, tal é quanto
basta para que improcedam, nesta parte, as conclusões desta última.
Não merece, por
isso, censura a conclusão a que chegou a Relação, no Acórdão recorrido, no
sentido de os programas em causa nos autos serem qualitativa e substantivamente
diferentes e de o SIGMA, face à criação de oito novos módulos, ter
originalidade, sem que a Recorrente tenha logrado demonstrar o contrário, isto
é, factos que excluiriam a criatividade da sua expressão.
Refira-se, por
último, que a matéria de facto provada não permite fazer um juízo seguro acerca
da invocada questão de se estar, ou não, perante uma obra derivada – o que bem
se compreende dado que, tratando-se de questão que apenas em sede de apelação
foi suscitada pela Recorrente, não foi selecionada matéria capaz de preencher o
dito conceito sobre a qual a prova tivesse incidido.
Na verdade,
conforme acima se aflorou, apenas relevaria para o dito efeito a transformação
da expressão protegida do programa de computador e já não o eventual
aproveitamento de elementos não expressivos do anterior programa para a
produção do novo programa, como o uso das ideias, dos processos
(algoritmos, data structures, etc.), dos métodos de operação ou até
das mesmas ou de novas funcionalidades, posto que este aproveitamento não
constitui transformação juridicamente relevante.
- Neste
sentido: José Alberto Vieira, ob. cit., p. 612 e 613 -
Ora, no caso sub
judice, apenas se extrai da factualidade provada que o SIGMA é uma evolução
do SIGRes3e com novas funcionalidades e oito novos módulos, sem que se retire,
em concreto, dessa factualidade em que é que consistiu essa evolução,
designadamente, se foram ou não aproveitados para o desenvolvimento do novo
programa os elementos expressivos do anterior.
Seja como for e
conforme bem concluiu o Tribunal da Relação, considerando que a obra
transformada, desde que corresponda a uma criação intelectual, é protegida por
via do direito de autor (conforme decorre expressamente do artigo 5.º, al.
b), in fine, do DL n.º 252/94, de 20-10) - o mesmo decorrendo da
Convenção de Berna, na qual se consagra a proteção como obras originais das
traduções, adaptações, arranjos musicais e outras transformações de uma obra
literária ou artística, sem prejuízo dos direitos de autor da obra original
(artigos. 1.º, e 2.º, n.ºs 1 e 2) -, em virtude da conclusão a que acima se
chegou, tal qualificação sempre seria indiferente para a questão da
originalidade e da consequente proteção.
Pela mesma razão,
não se vislumbra que se mostre necessário o reenvio prejudicial, o qual, de
resto, foi requerido pela Autora para o caso de existirem dúvidas quanto à
questão da proteção do programa de computador em questão por via do direito de
autor e tais dúvidas, in casu, inexistem.
4. Da
transformação do programa de computador SIGRes3e à revelia da autorização da ré
e da falta de documento escrito
Sustenta, neste
particular, a Recorrente que, mesmo que se entenda que se está perante uma obra
derivada, tal transformação não merece proteção jurídica por não ter sido
objeto de autorização por parte da Recorrente e que, por isso, foi errado o
juízo presuntivo feito pelo Tribunal da Relação, no Acórdão recorrido, no
sentido de tal autorização decorrer implícita ou tacitamente dos factos
provados uma vez que o mesmo ofende as mais basilares regras da experiência da
vida, pois nenhum homem médio e razoável concordaria em celebrar um negócio
jurídico oneroso com o fito de exercer um direito sobre um bem, sabendo de
antemão que este é uma réplica de um que já possui.
Acrescenta,
ademais, que, ainda que se retirasse dos factos provados a dita autorização,
não se retirando deles a existência de um documento escrito, em claro
desrespeito pela formalidade legal aplicável à autorização – que, nos termos
dos artigos 41.º, n.º 1, e 169.º, n.º 2, do Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos, está sujeita a forma escrita – tal culminaria na sua
nulidade.
Acontece que a
conclusão a que acima se chegou no sentido de a matéria fáctica dada como
provada não permitir formar um juízo seguro acerca da existência ou não de uma
obra derivada, faz, por si só, cair por terra a invocada questão da suposta
falta de autorização, fosse ela verbal ou por escrito, já que apenas a
transformação que se traduza no aproveitamento dos elementos expressivos do
programa carece de autorização do titular do programa originário, o mesmo não
sucedendo com o aproveitamento das suas funcionalidades, ideias, processos ou
métodos de operação.
Acresce que, ainda
que assim não fosse, a questão da necessidade de autorização e da sujeição a
forma escrita não poderia ser objeto de apreciação nesta sede já que não foi
oportunamente invocada nos autos, não tendo, portanto, os factos a ela
concernentes sido objeto de contraditório e de prova.
Era, pois, nos
articulados que a Recorrente, em cumprimento do ónus da concentração da defesa,
deveria ter alegado os factos relativos à suposta falta de autorização por
escrito que apenas agora vem invocar em sede de recurso, sendo que, não o tendo
feito oportunamente, precludida ficou a possibilidade de tais factos serem
considerados nesta sede, desde logo, porque a parte contrária não teve
possibilidade de os contraditar.
Com efeito, não
tendo tal matéria sido expressa e oportunamente alegada, não foi selecionada
qualquer factualidade relacionada com a dita autorização ou com a falta dela e,
em consequência, não recaiu sobre a mesma qualquer prova e nem o tribunal sobre
ela expressamente se pronunciou, seja em sentido afirmativo ou negativo.
Sublinhe-se,
aliás, que, tal como refere acertadamente o Tribunal da Relação, no Acórdão
impugnado, o que a Recorrente alegou, em sua defesa, foi factualidade
substancialmente diversa e até incompatível com a que agora pretende trazer à
colação.
Repare-se que foi
a Recorrente (e não a Autora) que alegou, na sua oposição, que o software,
designado por SIGRes3e se tratava de um sistema feito à medida dos seus
interesses, satisfazendo as suas necessidades de gestão e que, por isso,
constituía uma ferramenta de gestão auxiliar essencial do seu escopo principal
(cf. artigos 63.º e 64.º), bem como que, posteriormente, contratou a
evolução deste seu sistema informático com a Autora, sendo que
o contrato celebrado com esta pressupunha a disponibilização pela
Requerida do sistema existente para que a Requerente procedesse ao seu
desenvolvimento, aperfeiçoamento e melhoramento (cf. artigos 65.º
e 66.º - sublinhados nossos).
Aí acrescentando
que esse processo contratual não significou uma ruptura com o sistema
informático denominado SIGRes3e utilizado pela Requerida, atendendo à natureza
continuada, sem interrupções, da sua atividade, que exigia, não uma
descontinuação – que impediria que prosseguisse a sua atividade
– mas aperfeiçoamentos e melhoramentos do sistema que tinha
implementado, ainda que tenha vindo a constatar, posteriormente, que os
“melhoramentos” foram devidos, não a um efetivo melhoramento ou desenvolvimento
do software, mas sim devido à aquisição de dois novos servidores, aptos
a imprimir maior velocidade e capacidade de processamento as utilizadores (cf.
artigos 67.º e 78.º da referida peça processual).
Concluiu, assim, a
Recorrente que teria sido apenas por força da atuação e manipulação do seu
então Diretor Financeiro, em seu manifesto e deliberado prejuízo, que ficou a
constar do contrato celebrado com a recorrida que o SIGMA seria propriedade
exclusiva desta e que os direitos de autor sobre esse programa lhe pertenciam,
pois que, se não fosse essa atuação e o conluio com os seus legais
representantes, face ao disposto no artigo 3.º do DL n.º 252/94, de 20-10, não
haveria lugar a discussão sobre a titularidade dos direitos sobre o software que
a Requerente desenvolveu e tentou fazer seu (vejam-se, além do mais, os artigos
80.º a 84.º da oposição).
Ora, conforme se
extrai claramente da dita alegação, a divergência das partes no processo sempre
se centrou na questão da titularidade do software – cujo desenvolvimento e
implementação constituiu objeto do contrato entre ambas firmado –, sustentando
a Autora que o programa SIGMA, por si desenvolvido, é da sua titularidade e
defendendo a Ré que, não passando tal programa de uma mera adaptação do
software SIGRes3e, que forneceu à Autora, os direitos sobre esse programa são
seus, sem que, por isso, a Autora lhe possa cobrar o preço da licença de um
programa que, afinal, lhe pertence.
Foi, portanto,
essa a factualidade que foi discutida no processo, contraditada e objeto de
prova e foi sobre ela que o tribunal se pronunciou e não sobre uma suposta
autorização, fosse ela verbal ou por escrito, para a transformação do programa
anterior – transformação que, aliás, a Recorrente sempre negou existir.
Na verdade, o que
decorre cristalinamente da posição assumida pela recorrente nos autos é que foi
só depois de ter visto soçobrar as suas pretensões, primeiramente em 1.ª
instância e depois no Tribunal da Relação, que a Recorrente foi introduzindo
novas questões – que, inclusive, tal como se observa no Acórdão recorrido,
colidem com a versão dos factos que foi apresentada na oposição.
E se é certo que a
circunstância de estarem em causa questões que seriam de conhecimento oficioso
(nulidades) permitiria a sua invocação apenas em sede recursória, não é menos
certo que, na sua apreciação, não pode o tribunal socorrer-se de factos que não
foram oportunamente alegados ou adquiridos para o processo e sujeitos a
contraditório.
É, pois, neste
sentido que tem decidido o STJ em casos em tudo similares, concluindo que a
circunstância de a invocação se fundar em factos somente invocados em sede de
revista impede a cognição dessas questões.
- Cf. Acórdão do
STJ de 04-12-2014, Revista n.º 2606/07.8TJVNF.P1.S1; podendo ver-se, no mesmo
sentido, os Acórdãos do STJ de 16-11-2006, Revista n.º 3459/06, ambos
disponíveis em www.dgsi.pt, de
10-11-2011, Revista n.º 3628/03.3TBBCL.G1.S1, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2011.pdf,
e de 06-06-2019, Revista n.º 639/13.4TBOAZ.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt -
Esta conclusão em
nada sai beliscada pela circunstância de esta questão ter sido abrangida pela
decisão da Formação de Juízes a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de
processo Civil no sentido de apresentar relevância jurídica bastante para justificar
a intervenção do STJ, porquanto, ficou, desde logo, aí ressalvado o facto de a
referida Formação não se poder imiscuir no mérito do recurso, nem mesmo para
saber se as questões suscitadas tinham ou não sido suscitadas oportunamente, já
que essa tarefa compete apenas e tão só à conferência julgadora.
Tudo para concluir
que a revista tem também de improceder nesta parte, mantendo-se a obrigação de
a Recorrente pagar à recorrida a quantia em que foi condenada.
5. Da reforma
do acórdão quanto a custas (dispensa do pagamento da taxa de justiça
remanescente)
Sustenta a
Recorrente, neste particular, que, para além de a causa não revestir especial
complexidade, as partes procederam de boa fé, esforçando-se pela resolução do
litígio, pelo que o pagamento adicional, em face do valor da causa (€997
587,00), de €8 874,00 que as partes ainda terão de pagar – perfazendo o total
de €10 506,00 – é excessivo e manifestamente desproporcional aos serviços
prestados, violando os princípios da proporcionalidade e da justiça.
Pede, por isso, a
reforma do Acórdão nesta parte, com a consequente dispensa do pagamento do
remanescente da taxa de justiça nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do RCP.
O Tribunal da
Relação pronunciou-se, por acórdão de 21-05-2020, indeferindo o requerido por o
montante da taxa de justiça remanescente a satisfazer não se mostrar
desproporcionado face à utilidade económica da causa, à complexidade do
processado e ao comportamento das partes, tendo em conta os princípios da
proporcionalidade e da igualdade.
Dispõe o artigo
6.º, n.º 1, do RCP que A taxa de justiça corresponde ao montante devido
pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e
complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na
falta de disposição especial, os valores constantes da tabela i-A, que faz
parte integrante do presente Regulamento; acrescentando o n.º 2 do mesmo
normativo que Nos recursos, a taxa de justiça é sempre fixada nos
termos da tabela i-B, que faz parte integrante do presente Regulamento.
Decorre, por sua
vez, da tabela I anexa ao RCP, que dele faz parte integrante, que, para além
dos €275 000 (valor máximo do último escalão da tabela), acresce, a final, ao
valor da taxa de justiça, por cada €25 000 ou fração, 3 UC, no caso da col. A,
1,5 UC, no caso da col. B, e 4,5 UC, no caso da col. C.
Nessa
conformidade, preceitua o artigo 6.º, n.º 7, do RCP que Nas causas de
valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é
considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o
justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à
complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento (sublinhado
nosso).
Decorre do exposto
que, embora a regra seja a fixação da taxa de justiça em função do valor e da
complexidade da causa, da mesma forma que o juiz pode corrigir os valores que
resultam da tabela I-A e I-B para os valores constante da tabela I-C quando as ações
e os recursos revelem especial complexidade, pode também determinar a dispensa
do pagamento do remanescente da taxa de justiça quando a especificidade da
situação o justificar, designadamente quando, apesar do valor da causa ser
superior a €275 000,00, o valor da taxa de justiça a pagar seja manifestamente
desproporcionado ao custo ou utilidade do serviço prestado face à simplicidade
da causa.
Nesta matéria,
importa levar em conta que, para efeitos de condenação em custas, se consideram
de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que: a)
contenham articulados ou alegações prolixas; b) Digam respeito a questões de
elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise
combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou c) Impliquem a
audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova
complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas (artigo
530.º, n.º 7, do CPC).
A este propósito,
já o STJ se pronunciou em múltiplos casos, afirmando repetidamente que os
critérios de cálculo da taxa de justiça devem pressupor e garantir um mínimo de
proporcionalidade entre o valor cobrado a quem recorre ao sistema público de
administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efetivamente lhe
foi prestado na resolução de interesses privatísticos.
Ora, no caso sub
judice, não pode afirmar-se, contrariamente ao sustentado pela Recorrente e
tal como demonstra a dinâmica processual, que a causa não reveste especial
complexidade.
Com efeito, não
obstante o processo ter tido origem num requerimento de injunção, a verdade é
que se transmutou em ação declarativa de condenação por força da oposição
deduzida, sendo que esta, para além de ter integrado defesa por exceção,
comportou reconvenção, tendo sido por este motivo que foi fixado à causa o
valor €1 138 186,20.
Acresce que houve
réplica e tréplica, foi produzida abundante prova testemunhal e documental,
realizou-se inclusive prova pericial e houve recurso, não apenas de direito,
mas também da decisão da matéria de facto (com impugnação de vários pontos)
sendo que as peças processuais, para além de extensas e prolixas, submeteram à
apreciação do tribunal questões de âmbito muito diverso.
Por outro lado,
foi a própria Recorrente que inseriu no recurso de apelação e, depois, no
recurso de revista, questões complexas que nem sequer haviam sido suscitadas em
momento anterior e que em nada se ajustam à concessão do benefício previsto no
artigo 6.º, n.º 7, do RCP.
Refira-se, de
resto, que se, por um lado, a Recorrente defende que a causa não reveste
especial complexidade para justificar a concessão do indicado benefício em
matéria de custas, já defende, por outro, a manifesta complexidade das questões
fundamentais de direito que se suscitam no processo e a sua difícil resolução
para justificar a admissibilidade da revista excecional – o que evidencia,
quanto a este aspeto, a sua falta de razão.
Face ao exposto, é
de concluir, sufragando o entendimento adotado pelo STJ no acórdão de
11-07-2019 (Incidente n.º 639/13.4TBOAZ.P1.S2, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/civel_sumarios_2019.pdf.),
que, num modelo processual em que o pagamento da taxa de justiça visa
remunerar, ao menos em parte, os custos da administração da justiça na
resolução de interesses privatísticos, não se justifica a dispensa, nem sequer
a redução, da taxa de justiça remanescente que é da responsabilidade
da recorrente, Ré, enquanto parte totalmente vencida, quando está em causa uma
ação declarativa de condenação, na qual aquela deduziu um pedido reconvencional
de uma quantia elevada em resultado da alegação de um relacionamento contratual
complexo, inserindo ainda, no recurso de apelação e, depois, no recurso de
revista, questões complexas que, antes não havia suscitado e que em nada se
ajustam à concessão do benefício previsto no artigo 6.º, n.º 7, do RCP.
Tudo para concluir
que, não merecendo o Acórdão recorrido censura, também nesta parte, terá a
revista de improceder.
IV. Decisão
Posto o que
precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão
recorrido.
Custas pela
Recorrente.
Lisboa, 25 de maio
de 2021
Pedro de Lima
Gonçalves (relator)
Fátima
Gomes
Fernando Samões
Nos termos do
disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se
que têm voto de conformidade os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos Fátima
Gomes e Fernando Samões.